Os advogados e a política monetária
A nova Selic de 13,25% mostra-se bem distanciada da inflação projetada de 6,25%, indicando uma taxa real bruta de juros de 7%, a qual provoca um apetite muito grande pelas aplicações de renda fixa.
segunda-feira, 20 de junho de 2022
Atualizado às 08:41
Ser advogado é um fato que geralmente não combina o direito com a economia, pois a formação dos bacharéis nos bancos acadêmicos não apresenta um enfoque voltado para o estudo das duas ciências e a sua implicação recíproca (do lado dos economistas a situação é inversa, desconhecimento do direito). Quando se trata da apreciação desses dois universos de conhecimento no tocante ao direito bancário o problema se coloca de forma ainda mais grave. Vamos trazer aqui breves notas com o objetivo de demonstrar a necessidade de casamento entre essas duas ciências integrantes dos departamentos jurídicos de empresas ou de escritórios de advocacia que assessoram aquelas nos seus mais diversos projetos.
Em primeiro lugar os advogados precisam estar cientes de que muitos projetos empresariais são realizados dentro de um horizonte de longo prazo e é nessa hora que certo nível de conhecimento de política monetária precisa ser posto em prática (afinal de contas, na vida empresarial os fatores diversos se resumem em dinheiro e no seu custo). Pensemos, por exemplo, em operações de fusão, cisão ou incorporação de sociedades cuja realização implica no relacionamento de diversos fatores, entre os quais a vinculação ao mercado dentro no qual o projeto se realizará ou será desaconselhado. Pensemos na construção de obras de longo porte, que se desdobrará ao longo de muitos anos1.
Ora, sob o ponto de vista acima, verificamos que a política monetária é o instrumento utilizado pelos bancos centrais de todo o mundo com o fim de buscar a estabilidade das moedas nacionais - seu papel principal - considerado o cenário internacional, com a finalidade de dar ao usuário uma moeda de boa qualidade. Sabe-se que o excesso de moeda nas economias provoca inflação e que, de forma muito simples, a solução está em "enxugar" o mercado em tais situações pela diminuição da quantidade de moeda, bem como "irrigá-lo" na situação contrária. E para tanto os bancos centrais se valem de diversos instrumentos. Um desses, ao qual se tem recorrido há décadas, inclusive o Banco Central do Brasil, é o do estabelecimento de metas de inflação, que operam como marcos em vista dos quais será trabalhada a política monetária.
No cenário acima torna-se essencial fazer-se uma projeção economicamente fundamentada da evolução das taxas de juros ao longo do período de solidificação do projeto, para o fim da apuração da dinâmica do seu custo, o que está profundamente ligado ao financiamento da empresa.
O modelo de metas de inflação está fundado no pressuposto de que os agentes econômicos agem de forma racional e que a sua atuação no longo prazo é determinada pela confiança que depositam na política monetária posta em operação, convictos de que quando o fenômeno econômico da inflação se estabelece nas proximidades das primeiras sabe-se que os bancos centrais estão atuando no rumo adequado e que o planejamento de longo prazo pode ser feito pelas empresas na ausência de sobressaltos que possam determinar erros graves os quais, na pior das perspectivas, poderão levá-las à falência.
No entanto, de algum tempo a esta parte, a economia passou a operar dentro de um cenário de choque de oferta segundo um caráter de alguma permanência prevista ao longo do tempo, deixando, portanto, de se mostrar como, digamos, um acidente de percurso2. Essa nova realidade econômica passa por mudanças profundas ocorridas na China, pela guerra da Ucrânia e pela consequente resposta dos diversos governos, que se orientarão em favor de modelos voltados para uma economia fundada segundo um processo de desglobalização, da celebração de acordos minimultilaterais e do fortalecimento das economias internas3.
Conforme pode ser percebido, as causas e efeitos das grandes mudanças que ora se apresentam se mostram extremamente variáveis. Tomemos algumas delas em consideração.
Veja-se que a China mudou sua política interna de natalidade, tendo permitido que os pais possam ter até três filhos4. Alguém pode perguntar o que isso tem a ver com a política monetária? Muita coisa, como veremos porque, dessa forma, dentro de um lapso de tempo relativamente pequeno haverá uma demanda interna na China, muito forte por todo o tipo de produtos relacionados a novos nascimentos e ao crescimento das crianças que surgirão, o que envolve diversas variáveis como, até mesmo, a busca de uma habitação maior. O efeito cascata na economia chinesa será extremamente relevante em vista do tamanho da população fértil. É claro que tal redução se dará também em setores indiretos da economia daquele país, como o aumento da demanda por alimentos, petróleo e gás. Como consequência será significativamente reduzida a oferta de certos bens vendidos pela China no mercado internacional, que passará para um regime de escassez de maior ou menor abrangência. O aumento da demanda interna deverá provocar, consequentemente, uma elevação nos salários dos chineses, do que resultará que os bens e serviços que serão exportados - em escala menor conforme visto acima - não o serão mais pelos antigos preços, até recentemente tão baratos para adquirentes externos.
Por outro lado, os efeitos globais da guerra da Rússia contra a Ucrânia foram imediatamente acusados pela economia global, entre outros, com o expressivo aumento do preço do petróleo, do gás e dos grãos que eram exportados pelos dois países. Mas o mundo já não passou por outras guerras mundiais e, portanto, não haveria grande novidade a se registrar. Acontece que, no fundo e do ponto de vista econômico, a invasão da Ucrânia pela Rússia seria verdadeiramente a primeira guerra verdadeiramente mundial.
Todas essas mudanças se deram em um ambiente macroeconômico marcado pela pandemia da covid-19, cujos efeitos estão presentes e que se prolongarão durante ainda por um longo tempo. Trata-se, portanto, de uma tempestade perfeita verificada nesse cenário, para ninguém botar defeito.
É diante dessa nova configuração econômica, que as alterações na oferta e na demanda de produtos e de serviços se apresentam em regime de incerteza quanto à sua direção, ao momento em que ocorrem e ocorrerão, em como quanto ao tamanho da sua expressão. Percebe-se que foram rompidas as correntes que seguravam as âncoras nas quais se prendiam as expectativas futuras da economia e, consequentemente, ficou extremamente esgarçado o horizonte segundo o qual eram orientadas as políticas monetárias dos diversos países - cada um deles afetado diferentemente segundo o seu modelo econômico interno -, tendo se enfraquecido os fundamentos fixadores das metas de inflação.
Percebe-se uma elevação significativa da inflação praticamente em todos os países, como efeito do contágio global provocado pela globalização, havendo grande risco para a ineficácia das políticas monetárias, consistentes na elevação das taxas básicas de juros e no enxugamento da liquidez que se entender excessiva.
No Brasil nossa autoridade monetária tem elevado sistematicamente a taxa Selic, de 2% em 20/01/21 até 13,25% em 15/06/21, sendo muito claro verificar que tem estado presente um processo contínuo de sua elevação para o fim de se restringir o volume de moeda em circulação. Quanto mais elevada a Selic em relação à inflação real, maior o incentivo para as aplicações de renda fixa. Veja-se o quadro abaixo de indica as metas de inflação desde 2017, o intervalo de tolerância estabelecido e a inflação medida:
- 2017: 4,5% (meta); 3% a 6% (intervalo de tolerância); 2,95% (inflação medida)
- 2018: 4,5% (meta); 3% a 6% (intervalo de tolerância); 3,75% (inflação medida)
- 2019: 4,25% (meta); 2,75% a 5,75% (intervalo de tolerância); 4,31% (inflação medida)
- 2020: 4% (meta); 2,5% a 5,5% (intervalo de tolerância); 4,52% (inflação medida)
- 2021: 3,75% (meta); 2,25% a 5,25% (intervalo de tolerância); 10,06% (inflação medida)
- 2022: 3,5% (meta); 2% a 5% (intervalo de tolerância); 6,59% (inflação projetada)
- 2023: 3,25% (meta); 1,75% a 4,75% (intervalo de tolerância); 3,75% (inflação projetada)
Como se verifica, a meta de inflação estabelecida para este ano é de 3,5% e a inflação projetada é de 6,59%, inferior à inflação medida de 10,06% no ano de 2021. Enquanto isso para 2023 a meta está no patamar de 3,25% para uma inflação projetada de 3,75% (haja otimismo!).
Já estamos na metade do ano e qualquer pessoa pode perceber que a inflação disparou e que dificilmente ela ficará dentro das projeções acima indicadas. E se a economia global e local continuarem em andamento dentro do padrão de grande incerteza acima indicado, duvida-se com boa base de certeza que as metas de inflação deste ano e do próximo possar ser mantidas, dúvida que se estende ao índice de inflação projetada para 2023. E tenha-se em conta que essas metas são fixadas para um futuro relativamente distante (em economia tudo corre muito rápido) e as considerações que têm sido feitas estão presentes no campo de sua estagnação e na demora de resposta a um mundo econômico tão trepidante quanto a montanha russa mais violenta que se conheça.
A nova Selic de 13,25% mostra-se bem distanciada da inflação projetada de 6,25%, indicando uma taxa real bruta de juros de 7%, a qual provoca um apetite muito grande pelas aplicações de renda fixa, em detrimento daquelas orientadas para o risco, como é o caso das realizadas no ambiente do mercado de capitais. Fica evidente também, em consequência, que o risco das operações de crédito se elevará cada vez mais e que as taxas de juros se localizarão em patamares cada vez mais altos, com um custo situado dentro das empresas e, eventualmente a surgindo a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de ser repassado para os seus clientes.
Assim sendo, no tocante à política monetária referenciada às metas de inflação, muito distantes da inflação real do momento e daquela projetada, intui-se que esse modelo pode encontrar-se em situação de desgaste e de consequente ineficácia, reduzidos dessa forma os instrumentos de política monetária à disposição dos bancos centrais, não nos esquecendo de que aqui no Brasil nos encontramos em ano eleitoral, o qual somente agrava o descalabro do atual governo e do Congresso Nacional, ambos responsáveis pela implosão de todos os controles relacionados ao gasto público.
Perceba, caro advogado, como é importante o seu papel nos projetos de longo prazo dos quais participa, que estão sendo desenvolvidos ou cogitados pelas empresas sob os seus cuidados. Você não pode pensar que vive isolado em uma ilha de conhecimentos tão somente jurídicos. E o que fazer? Em consonância com o departamento financeiro, deverão ser utilizados contratos e operações que possam ser suficientemente flexíveis para solucionar desequilíbrios surgidos na sua execução no longo prazo, tais como swaps, hedges, juros flexíveis segundo parâmetros pré-estabelecidos, renegociação parametrizada, sempre dentro de processos de mediação que afastem o máximo possível os litígios, mesmo que a solução correspondente seja colocada no campo da arbitragem etc. E aí, a imaginação é o limite, sabendo-se que melhor do que uma boa briga é um bom acordo possível.
Finalizando, sabemos que o Judiciário precisa fazer parte dessa equação, mas essa é outra novela para outro dia.
1 Sobre política monetária e inflação vide os artigos de minha autoria no Jornal Eletrônico Migalhas "Considerações sobre a Inflação para advogado nenhum botar defeito" (26.11.2022)
2 Sobre esse tema vide o texto "Política Monetária sob Incerteza", in jornal Valor Econômico de 15.06.2022.
3 Vide a esse respeito nosso texto "A Guerra contra a Ucrânia e o Direito Empresarial", jornal eletrônico Migalhas de 21.03.2022.
4 Cf, "China anuncia que casais agora poderão ter até três filhos", jornal "O Estado de São Paulo" de 32.05.2021.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.