O combate à banalidade do direito ao luto
O cuidado com o processo da morte, seja com o corpo, seja com os entes queridos, é parte da dignidade que sustenta o ser humano, logo, o compartilhamento de decisões e de informações é ponto vital para a garantia de direitos.
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Atualizado em 14 de junho de 2022 08:00
A vida é elemento indissociável da morte. Não existe a possibilidade de um Estado democrático traçar cuidados essenciais para a garantia de uma vida digna, sem, no entanto, também garantir a dignidade da morte, como preconiza o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, bem como o artigo 12 da convenção americana de direitos humanos.
Isto porque, as subjetividades do direito à uma morte digna - e ao consequente luto - possuem reflexos dos mesmos direitos ligados à vida, como: liberdade de escolha de crença e religião, liberdade sobre o próprio corpo e de consciência, liberdade de ter uma vida privada e familiar, liberdade cultural, liberdade de ter uma memória e poder preservá-la, entre outros.
O justo descanso humano acompanha, culturalmente e de diferentes formas, o direito ao luto dos familiares e da comunidade, por aspectos cognitivos inerentes a compreensão do falecimento em suas múltiplas facetas, inclusive, sobre a garantia do respeito à individualidade do ser e de seus processos internos.
A existência dessas peculiaridades se soma ao fato de que corpo não é apenas um corpo, há um contexto de trama social de sentidos, o que desloca sua realidade de singular para plural.
Neste arco, esclarece Rodrigues e Vieira, (2020, p.7) sobre a obra de Butler: "se é a condição de inelutável que enquadra as vidas que têm e as que não têm valor, então passa a ser preciso, universalizar o direito ao luto como mecanismo político de afirmar o valor de toda vida. É nesse sentido que a reivindicação do direito ao luto se torna, desde a leitura que Butler faz de Antígona, não apenas uma tarefa pessoal e familiar, mas um empreendimento coletivo, um direito, uma exigência e uma política de Estado".
Este direito é tão caro aos indivíduos que, não por menos, é previsto na Consolidação de Leis Trabalhistas (brasileiras) (CLT) que o trabalhador possui o direito de ter 2 (dois) dias consecutivos de ausência legal, sem ser descontado de seu salário, em caso de falecimento de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou pessoa declarada como dependente econômico na Previdência Social.
Há especificações, como no caso dos professores, em que o período de ausência é de 9 (nove) dias, conforme artigo 371, inciso III, da CLT. Na mesma linha, os servidores públicos civis da união, de autarquias e das fundações públicas federais possuem o período de 8 (oito) dias de ausência, conforme a lei 8.112/90.
Ademais, o dia fatídico, apesar de não haver previsão legal, é normalmente abonado em respeito a dor, sem prejuízo de acordos entre trabalhador e empregador.
Desse modo, considerando o tamanho do peso histórico e psicológico - individual e coletivo - que abarca o ritual da morte, durante o período pandêmico suportado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) se pronunciou alertando que o respeito aos direitos humanos, como do luto, deveria ser avaliado e monitorado, a fim de mantê-lo protegido. Por isso mesmo, foi elaborada a resolução 04/20, em que se destaca a seção sobre "Directrices sobre el duelo y los derechos de familiares de las víctimas fallecidas por covid-19".
Apesar disso, inúmeros foram os casos reportados de violência do Estado, e de empresas, sobre o direito ao luto.
Em notório exemplo, em maio de 2020, três mães Sanömas, pertencentes a tribo Yanomami, deslocaram-se até Boa Vista para que seus bebês realizassem tratamento médico. Os três acabaram por falecer. Contudo, sem falar português e distantes de suas redes de apoio, as mães receberam a notícia do falecimento sem as informações do paradeiro dos corpos, ou se havia suspeita de covid.
No entanto, somente após a intervenção de autoridades da tribo, o hospital revelou que os corpos haviam sido enterrados e a exumação poderia ser feita apenas após três anos.
O detalhe, maior violador de direitos humanos do caso, é que os índios da referida tribo não enterram os corpos de seus familiares, pelo contrário, possuem longo e específico ritual para a cremação, sendo que, culturalmente, há advertência de que se o corpo fosse enterrado, o espírito seria torturado por uma entidade.
Ou seja, em grande sofrimento as mães foram impedidas de processar o luto em diversos níveis, pelo desaparecimento dos corpos, pela rejeição de informações, pela ausência de comprovação de que os bebês estariam contaminados pelo covid-19, pelo impedimento do processo de cremação, segundo suas crenças.
Todo o óbice a prestação de homenagem e da preservação da memória é reflexo da ignorância da individualidade e identidade das mães e dos bebês, o que acelera o processo do luto de modo violento, porque nega a humanidade que deveria haver.
Diga-se de passagem, o período de pandemia não deve ser tratado como um período de guerra, mas como um processo sanitário, mas ainda que fosse, cuidados humanitários não possuem brecha para que sejam deixados de lado, em nenhuma hipótese.
Válido dizer, quando uma autoridade gerencia arbitrariamente um direito personalíssimo, como o processo de luto, irrompe a pior das barbáries: banaliza o ser humano impondo um modelo de ação, desprezando as subjetividades compreendidas entre a liberdade e a dignidade humana, legitimando, ainda que por falaciosas burocracias, uma violência - que nada mais é do que a negação de direitos existenciais -.
Assim, por consequência lógica, de garantia do Estado Democrático, estas atitudes são inaceitáveis, o que ensejam também a devida reparação civil, nos termos do artigo 186 e 927, do Código Civil.
Portanto, o cuidado com o processo da morte, seja com o corpo, seja com os entes queridos, é parte da dignidade que sustenta o ser humano, logo, o compartilhamento de decisões e de informações é ponto vital para a garantia de direitos.
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https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/332559/o-direito-de-dizer-adeus-na-perspectiva-da-responsabilidade-civil
https://cdnv2.moovin.com.br/livrariadplacido/imagens/files/manuais/34_direito-ao-luto-como-direito-fundamental-volume-3.pdf
https://repositorio.unifesp.br/xmlui/bitstream/handle/11600/61998/TELES-CALAZANS_GestaoMortes-Mortos_CAAF2021.pdf?sequence=1&isAllowed=y#page=13
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-11/o-coronavirus-esta-quebrando-a-nossa-crenca-o-luto-imposto-aos-povos-indigenas-na-pandemia.html?ssm=TW_BR_CM
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/07/22/interna_gerais,1169231/familia-nao-vela-idoso-por-suspeita-de-covid-19-exames-dao-negativo.shtml?utm_source=hardnews&utm_medium=hardnews&utm_campaign=score&utm_term=addicted
https://abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491572155.pdf https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/221673
https://www.oas.org/pt/cidh/decisiones/pdf/Resolucao-1-20-pt.pdf
https://cdnv2.moovin.com.br/livrariadplacido/imagens/files/manuais/34_direito-ao-luto-como-direito-fundamental-volume-3.pdf
Maria Eduarda Odeli
Colaboradora do escritório Popp Advogados Associados.
Évora Vieira Castanho
Advogada do escritório Popp Advogados Associados. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Pós-Graduanda em Processo Civil pela ABDConst - Academia Brasileira de Direito Constitucional