Direito sucessório atual: aspectos práticos do inventário negativo de bens
Há certos movimentos, inclusive, no viés ideológico mais marxista, que apregoam o fim do direito dos herdeiros que, no entender deste segmento, não fizeram nada para a construção do patrimônio que deveria reverter para o Estado no interesse de todos.
sexta-feira, 3 de junho de 2022
Atualizado em 7 de junho de 2022 11:32
Antes de mais nada, se aponta a importância do tema sucessão (no direito pátrio ao contrário do que se dá, por exemplo no direito continental europeu atual a expressão sucessão tem conotação exclusivamente causa mortis). Isso porque há nítido movimento no sentido de tornar a carga tributária sucessória em algo escorchante, o que está fazendo com que muitos recorreram a planejamento sucessório (com várias opções: usufrutos, cessões, alterações de regimes de bens de uniões estáveis e casamentos, negócios jurídicos em modelo de universal life enquanto investimento e seguro no exterior, holdings urbanas e rurais etc.).
Há certos movimentos, inclusive, no viés ideológico mais marxista, que apregoam o fim do direito dos herdeiros que, no entender deste segmento, não fizeram nada para a construção do patrimônio que deveria reverter para o Estado no interesse de todos. Observe-se o que aponta Emil Asturing Von München:
O Direito de herança possui apenas importância social na medida em que deixa para o herdeiro o poder exercido pelo falecido durante o tempo em que viveu, nomeadamente: o poder de atribuir a si mesmo, por meio da propriedade do de cuius, os frutos do trabalho alheio. Pois, a terra confere ao proprietário vivo o poder de atribuir a si próprio os frutos do trabalho de outros, sob o título de renda fundiária, sem a prestação de um valor equivalente. O capital concede-lhe o poder de fazer o mesmo, sob o título de juros e lucro. A propriedade de títulos de valores do Estado outorga-lhe o poder de, mesmo sem trabalhar, poder viver dos frutos do trabalho alheio etc. A herança não gera esse poder de transferência dos frutos do trabalho de uma pessoa para o bolso de outra. Ela tem a ver apenas com a troca de pessoas que exercem esse poder. Tal como qualquer outra legislação burguesa, as leis sobre herança constituem não a causa, mas sim o efeito, a conseqüência jurídica da organização econômica existente que se funda na propriedade privada dos meios de produção, i.e. a terra, a matéria-prima, as máquinas etc.Desse mesmo modo, o Direito de herdar escravos não constituía a causa da escravidão, senão, pelo contrário, era a escravidão que constituía a causa de os escravos serem herdados. In http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP3Port.htm#:~:text=O%20Direito%20de%20heran%C3%A7a%20possui,os%20frutos%20do%20trabalho%20alheio.
Nem vou entrar no cerne da discussão ideológica, mas quem trabalha e produz o faz ciente de que é mortal e que, se acumula algo, seria para deixar uma vida melhor para quem tenha em sua rede de afeto - talvez se o Estado fosse menos corrupto e mais eficiente, as pessoas tivessem a ideia de que seria melhor deixar algo de bom grado para ser dividido entre todos.
Esse tipo de discussão, no entanto, tem levado a uma alteração de postura em relação aqueles que se preocupam em manter uma vida mais amena aos herdeiros e pessoas com que mantenham vínculos de afeto. O Estado também não colabora para qualquer confiança do cidadão - eleva a carga tributária sucessória, mesmo contra jurisprudência sumulada do STF.
Infelizmente o país vive hoje a crise dos grandes números, como vem sendo apontado pela doutrina, eis que se sabe de antemão que uma postura em demanda isomórfica seria inadequada, mas o interessado (no caso o Estado) mesmo sabendo que a postura é vedada, continua atuando de modo equivocado (abuso de poder, com a devida licença) pois sabe que poucos irão reclamar (por vezes o valor a maior sequer seria de interesse de uma banca de advogados), sabendo ainda que, aqueles que reclamam, demorarão anos e anos para obterem a efetividade do que buscam, eis que os próprios causadores da situação equivocada levam ao assoberbamento dos tribunais, com tais práxis, que devem ser desestimuladas - geram indevido ciclo vicioso.
Num simples exemplo. O imposto progressivo calculado pelo Estado do Rio de Janeiro é considerado inconstitucional, como já reconhecido pelo STF após duas décadas de discussão no âmbito da Corte, isso por conta da diferenciação entre viés pessoal e real (no ITCMD a situação não seria a mesma do IPTU).
Entendeu o E. STF que o critério não pode ser aplicado à questão das heranças, eis que, diversamente do que se dá com o IPTU em que o contribuinte é conhecido e reconhecidamente tem o bem, o mesmo não se daria, mutatis mutandi, em relação ao herdeiro, ou seja, não seria conhecida a real situação econômica do herdeiro, de modo que, de modo objetivo, esta forma de taxação seria vedada, por violar diretamente o princípio da capacidade contributiva, sendo que não se conhece a capacidade financeira do contribuinte.
Pondere-se, em relação a tanto, a existência de súmula 656 do Pretório excelso, que declarou inconstitucional a forma progressiva de se taxar o recurso:
Súmula 656 É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis - ITBI com base no valor venal do imóvel.
Isso, no entanto, continua a ser cobrado e exigido no Estado do Rio de Janeiro, para quem queira fazer um inventário, inclusive, de modo mais gravoso, nos inventários extrajudiciais em que as partes não querem a judicialização de nada. São Paulo vai na mesma linha de raciocínio. Por vezes, julgando o custo e demora de uma ação de inexigibilidade fiscal, o contribuinte se conforme, como um mal menor, em cumprir exigências reconhecidamente inconstitucionais.
Ocorre assim, um estado de coisas inconstitucional nesse tipo de questão, em que há insustentabilidade do modo como o sistema se disponha a corrigir essa situação.
E não é só. Como cediço o direito brasileiro se revela avesso à ideia de um patrimônio (entendido pela generalidade dos autores, a partir de postulados estabelecidos por Pontes de Miranda a partir de Ennecerus, Wolf et Kips, como um conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, suscetíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária) sem um titular determinado, o que em se tratando de pessoas existentes (naturais ou jurídicas) se resolve em termos de tradição e transcrição (registro), enquanto meios de aquisição da propriedade inter vivos.
Mas desde há muito, se encontra superada a ideia romana que, com sua singular pragmaticidade, asseveravam no sentido de que mors omnia solvit, ou seja, em tradução literal, uma ideia de que a morte tudo resolve, de sorte tal que, ao menos hipoteticamente, com o falecimento do de cujus sucessiones agitur, os problemas estariam acabados, tudo estaria resolvido (não obstante os romanos acolhessem a idéia de morte numa acepção mais ampla que a do direito atual - aceitava-se, por exemplo, o conceito de morte civil1).
Culturalmente isso se explicaria porque, no direito romano bastaria que se morresse com um herdeiro homem (mulheres maiores solteiras no jus quiritum perdiam a capacidade ao se casarem sempre tendo que passar da autoridade do pai para o do marido - cultura bélica fundada no patriarcado) que seria responsável pelo culto dos antepassados (deuses lares - vindo daí a expressão "lar" para significar o local do fogo sagrado dentro de uma casa - simbolizando os parentes mortos), para que se impedisse que os mortos de dada estirpe familiar passassem por necessidades no mundo espiritual, com libações anuais nas sepulturas desses entes queridos falecidos (acreditava-se que a vida seguia no túmulo, geralmente localizado nas casas ou lares)2.
Aí já se poderia perceber a gênese dos rituais que empregamos atualmente no dia dos mortos, quando são levadas flores aos jazigos dos entes queridos falecidos.
E, da mesma forma, verifica-se a gênese da proteção ao imóvel de família (no direito romano a propriedade tinha esse caráter sagrado e não era alienada nem para o pagamento de dívidas do pater famílias que seria vendido como escravo se dívida não fosse paga, para que os demais membros da família conservassem o local sagrado)3.
No entanto, como sabido, as coisas nem sempre se dão desse modo eis que, com a morte do indivíduo, um sem número de problemas pode ser destacado, tendo o legislador criado tantas situações polêmicas (basta ver, por exemplo, discussões acerca da concorrência, ou não do cônjuge com descendentes nos vários regimes matrimoniais ou as dificuldades da sucessão do companheiro com filiação híbrida) que hoje não se tem como incomum encontrar-se autores que defendem a necessidade de um verdadeiro planejamento sucessório prévio enquanto conjunto de medidas para preservação patrimonial e da autonomia da vontade.4
Poder-se-ia ter a falsa ideia de que estes problemas surgiriam apenas quando houvesse um patrimônio a ser herdado, ou seja, enquanto o referido conjunto de posições jurídicas do falecido titular tivesse que ser passado a algum herdeiro ou conjunto de herdeiros, ou mesmo legatários.
Assim sempre se pensa no inventário positivo de bens necessário à liquidação patrimonial do extinto para que se afira o quanto cada herdeiro receberia (como ainda se aplica no direito pátrio o princípio da saisine com a própria abertura de sucessão o patrimônio já passaria ao domínio - não mais posse como estabelecia o CC/16 - dos herdeiros - nesse sentido a disposição contida no art. 1784 do CC/02).
Realmente, pode ser que o extinto não estivesse na posse direta dos bens no momento do falecimento, impedindo a imediata transmissão da posse aos herdeiros por força deste princípio de saisine.5
- Confira aqui a íntegra do artigo.