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Genivaldo de Jesus [dos] Santos e a herança macabra da escravidão

Freyre e Oliveira Torres lembravam que a superação do binômio "senhor-escravo" dependia intrinsecamente da educação dos brasileiros para a cidadania.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Atualizado em 7 de junho de 2022 10:28

Não vejo TV há muitos anos, como forma de autoproteção, e recebo as notícias, em geral tenebrosas, do que se passa no Brasil, por intermédio das mídias e redes sociais. Foi com imenso pesar, indignação e sensação de "dever descumprido" que soube do caso do rapaz sergipano morto por agentes da PRF. Desnecessário descer a minúcias, como se diria no juridiquês. Um rapaz negro, pai de família, doente mental, até onde se sabe, foi morto sob tortura, em maio de 2022. O mês é o da abolição, é o das mães, é o de Nossa Senhora, no catolicismo. O ano é o do bicentenário da independência do Brasil, mesmo que saibamos e ensinemos que se trata de "independências" e de "Brasis" - aqui já entram os pormenores do "historiquês".

Genivaldo de Jesus [dos] Santos é um brasileiro diretamente descendente dos escravizados. Como se pode ter certeza? Porque os nomes "de Jesus" e "dos Santos", cujas grafias às vezes podem ter perdido a preposição, designam, em genealogia social, nomes devocionais aplicáveis aos escravizados no momento do batismo. No processo de colonização da América pelos europeus, tanto indígenas quanto africanos trazidos nos "tumbeiros" recebiam o batismo católico ganhando o prenome de um santo seguido de pertenças às divinas qualidades ou àquilo que o cientista social não católico chamará de "panteão cristão". Assim, "João dos Santos", "Joze de Arimateia", "Maria da Purificação", "Generoza de Jesus", "Phidelina dos Anjos", "João Baptista", "Manoel do Nascimento" ou "Antonio de Deus", entre milhares de exemplos, eram os prenomes, cuja parte posterior à preposição acabava servindo de nome (sobrenome) quando o indivíduo alcançasse a liberdade, via processo de alforria (manumissão).

É absolutamente terrível que o vaticínio de Nabuco, e que também era proclamado por Rebouças, Patrocinio, Dantas e demais abolicionistas, continue operando em nossa sociedade. Eles diziam que o Brasil permaneceria tendo como marca a escravidão durante séculos, caso a educação e a equiparação social entre descendentes de antigos senhores e descendentes de antigos escravizados não chegasse. Freyre e Oliveira Torres lembravam que a superação do binômio "senhor-escravo" dependia intrinsecamente da educação dos brasileiros para a cidadania. Nesse ponto, aliás, costumo repetir que Freyre (Gilberto) e Freire (Paulo) convergiam plenamente, apesar de hoje termos novamente involuído e apartarmos pessoas por outro binômio, igualmente trágico se nos lembrarmos do século XX, qual seja o de direita-esquerda.

O projeto de "revolução educacional" do professor Darcy Ribeiro não venceu. E como ele mesmo dizia, preferia estar, em virtude disso, ao lado dos que perderam do que dos que venceram e ainda vencem, ou seja, ao lado daqueles que nada fazem pela educação de base dos brasileiros, hoje normativamente denominada de Ensino Fundamental e Médio.

Não sei dizer se o Brasil flertava com o nazismo e agora o "beija na boca", como acaba de escrever o professor Silvio de Almeida em artigo na Folha de São Paulo. Mas sei garantir que o Brasil foi incapaz, até hoje, de superar o escravismo. Sei dizer que os déficits de instrução educacional e de formação cultural dos brasileiros os levam a atos de barbárie, tanto entre policiais - que, em tese, seriam doutos, mas sabemos que não são - como entre os "bandidos favelados".

No Brasil de 2022, que há quatro anos ateou fogo ao seu próprio Museu da Nação (Museu Nacional), com responsabilidade civil coletiva ululante, para além das demais, continuamos incendiando a brasilidade e desonrando projetos civilizacionais como os de Joze Bonifacio, Gonçalves Lêdo, Januario Barboza, Ernesto Ribeiro, Abilio Borges, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Franklin Doria, Manoel Dantas, D. Isabel do Brasil, Amanda Paranaguá, Machado de Assis, Affonso Celso, Leolinda Daltro, Jeronyma Mesquita, Candido Rondon, Anisio Teixeira, Milton Santos, Camara Cascudo, Ariano Suassuna e tantos outros.

Ou nos engajamos, todos os que temos consciência desse "estado de coisas inconstitucional" - expressão alusiva a uma discussão da Corte Suprema da Colômbia que foi amplamente empregada na ADPF 347-DF no STF, justamente para analisar a putrefação do sistema penitenciário do Brasil -, ou então vamos acabar fomentando a guerra civil entre nós, que em nenhuma hipótese pode ser considerada instância de resolução de conflitos.

Como se sabe, no contexto da abolição da escravidão no Brasil temia-se a guerra civil. Nos Estados Unidos da América, a guerra civil, ou Guerra de Secessão, havia ceifado mais de um milhão de vidas; um dos principais motores do conflito, ocorrido no início da década de 1860, era a abolição do trabalho escravo. Além das tensões raciais, havia clara disputa de primazia entre as antigas colônias inglesas no seio da União. Aqui no Brasil o extermínio da "instituição nefanda" evitou a guerra civil, mesmo que a discursividade dos escravocratas do fim do XIX, que diziam que o abolicionismo era "comunista" ou "socialista", já que defendia o "confisco da propriedade", tivesse provocado uma reação entre fazendeiros, dispostos a formar "guardas patrióticas", em combate contra a "Guarda Negra da Redentora", a milícia isabelista. Nabuco temeu seriamente a guerra civil após a assinatura da Lei Áurea em decorrência disso; mas Osvaldo Orico, o maior biógrafo de José do Patrocinio, lembra que não foi necessária uma guerra civil, para aplacar o ódio dos landlords: "O golpe militar de 15 de novembro operou o milagre desejado: sacudiu o alicerce e fez desabar a cariátide negra que devia servir de coluna mestra do advento do terceiro reinado". Freyre lembra, ainda, que os "ioiôs republicanos" do Brasil pós-abolição formaram quase que uma versão brasílica da Ku Klux Klan, quando relata o célebre caso do "Massacre dos Libertos", durante a chamada "Proclamação da República" em São Luís do Maranhão (1889), hoje objeto de pesquisas e livro do professor Matheus Gato.

Estamos imersos nessa herança macabra. Cabe a todos nós exterminarmos a obra da escravidão. Não se pode ser retórico. Somos todos igualmente responsáveis por isso. Não há "eles" e "nós".

Não caiamos em armadilhas diante de nossa própria sucumbência moral; é necessário nos reconhecermos como sociedade aquém de suas possibilidades. É necessário caminharmos juntos na senda neoabolicionista, revisitando diariamente pais e mães fundadoras da nacionalidade, das ciências e das artes do Brasil. Se não o fizermos, morreremos todos, embanhados no sangue dos inocentes de ontem, de hoje e mesmo nos de amanhã. Neste sentido, recomendo que conheçam um novo movimento político que está surgindo no Rio de Janeiro, em Brasília, Pernambuco, Ceará e diversos outros recantos. Trata-se da Comunhão Popular, grupo de inspiração cristã que visa implementar na prática, e não apenas na teoria, a Doutrina Social da Igreja.

Por fim, oremos para que Genivaldo, que sofreu tortura e morte pelas mãos da soldadesca, tal qual seu homônimo e divino patronímico, possa perdoar o Brasil.

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Texto publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de 31 de maio de 2022. https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/genivaldo-de-jesus-dos-santos-e-a-heranca-macabra-da-escravidao/

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira

VIP Bruno da Silva Antunes de Cerqueira

Advogado, historiador, especialista em Relações Internacionais, indigenista da Funai, gestor cultural.

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