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Quem matou Genivaldo?

A violência policial não pode ser enfrentada por meio da simples punição individual de agentes de segurança pública.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Atualizado às 13:34

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Na semana passada, o Brasil foi arrebatado pelas cenas do assassinato de Genivaldo Jesus dos Santos, asfixiado em uma câmara de gás improvisada por Policiais Rodoviários Federais que o pararam por trafegar em uma motocicleta sem capacete; uma conduta, diga-se de passagem, muitas vezes praticada pelo Presidente do Brasil e seus Ministros ao redor do país. A cena de horror era entremeada pelos gritos de socorro, pelas pernas que se debatiam, pela inclemência dos agentes públicos e pela letargia das pessoas ao redor que assistiam à cena macabra.

Impossível não associar a cena de tortura e morte com a ação do regime nazista da Alemanha. Lá, também, as câmaras de gás foram improvisadas de início, em vagões de trens fechados nos quais eram canalizadas grandes concentrações de monóxido de carbono. A operação se iniciou após a fadiga física e mental dos soldados que compunham os pelotões de fuzilamento. Após a diretriz que ficou conhecida como "Solução Final", grandes alojamentos adaptados a equipamento de extermínio, serviram para canalizar o gás "Zyclon B" pelos chuveiros das câmaras de gás improvisadas.

Assim como Genivaldo, muitos dos vitimados nas câmaras de gás dos campos de concentração morreram iludidos pela ideia de que seus algozes objetivavam, se não, protegê-los. A marcha até as câmaras de gás era comandada a título de limpeza e higienização e, antes de se conhecer o real desiderato do cruel dispositivo, muitos acreditaram nesse subterfúgio. Como muitos ainda confiam no mito de que as polícias servem para resguardar a todos.

As polícias servem, sim, para proteger. Mas resta cada vez mais claro que não se trata de uma proteção generalizada, mas de apenas uma parcela selecionada na população, identificada por sua posição na sociedade e pela cor de sua pele. Para além disso, a proteção primordial dos aparatos repressivos se identifica, sobretudo, com os interesses dos grupos dominantes, que se valem de um sistema dito de justiça para legitimar e justificar o uso da violência. Evidência mais clara disso é o fato de que ao ser flagrado praticando a mesmíssima conduta que a de Genivaldo, o Presidente da República jamais foi abordado ou preso pela mesma Polícia Rodoviária Federal que, ao contrário, o escoltou e o saldou em sua imprudência.

É importante que se observe, no entanto, que o exame que ora se faz suplanta a atuação individual de cada policial. Sempre que episódios horrorosos como esse chegam ao conhecimento da opinião pública, o primeiro impulso é clamar pela punição dos indivíduos diretamente responsáveis pela violência. No caso de Genivaldo, não faltaram aqueles que procuraram estampar seus rostos nos noticiários, pediram suas condenações e até mesmo suas prisões preventivas.

A ilusão do direito penal fica clara em casos como esses. Obviamente, não se advoga aqui pela exculpação dos agentes, cuja responsabilidade criminal deverá ser averiguada pelo Poder Judiciário. Ocorre que o sistema criminal só é capaz de dar uma resposta curta, simples e ineficiente para o problema complexo que se escancara em casos horrendos como a da morte de Genivaldo. Isso porque, além de outros fatores, é da principiologia desse ramo do direito a responsabilidade individual e subjetiva, o que significa que apenas os causadores imediatos de sua morte poderão responder por suas condutas.

Nesse sentido, a punição dos agentes, ainda que devida, afigura-se como o sacrifício do bode expiatório, cuja morte, nas tradições gregas, servia para exculpar todos os pecados de uma comunidade. O enfoque único na criminalização das condutas individuais resta por eclipsar todo o sistema perverso que permite que tantos "Genivaldos" tenha suas vidas ceifadas.

A conduta individual dos agentes, por mais odiosa que possa ser, representa apenas o final de uma cadeia de condutas e comportamentos tolerados e ratificados por diversos agentes estatais, cujos deveres legais e constitucionais são, diuturnamente, descumpridos. Torturas e assassinatos por agentes estatais se proliferam apenas porque, na maioria das vezes, não são sequer objeto de apuração pela polícia investigativa. Note-se que, durante anos, casos semelhantes foram registrados como autos de resistência, semelhante ao que ocorreu inicialmente no caso de Genivaldo. Proliferam-se porque, em muitos casos, o Ministério Público, que deveria exercer seu papel de controle de externo das polícias, requer o arquivamento das investigações que chegam a ser instauradas. E, também, porque desvios de conduta e procedimentos raramente são convertidos em punição aos agentes.

Essa cadeia de comportamentos transmite uma mensagem segura de que os comportamentos violentos dos agentes estatais estarão amparados, se não pela lei, pelo sistema de justiça que deveria coibi-los.

Ao cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hanna Arendt, revelou brilhantemente a banalização do mal e chocou o mundo ao mostrar a pouca responsabilidade que os agentes de campo possuíam em relação à máquina de extinção em massa de seres humanos. Ao invés de monstros impiedosos, no julgamento se apresentaram apenas indivíduos, cada um com suas circunstâncias, cada um deles figurando apenas como uma engrenagem descartável de uma máquina cruel.

Não é diferente do que vemos por aqui. O genocídio das populações marginalizadas continua e vai continuar, independentemente das punições individuais dos agentes, nos limites estritos da responsabilidade criminal. Essa, quando muito, pode apenas afastar algumas engrenagens - que serão rápida e facilmente substituídas - mas não tem qualquer efeito em descomissionar a máquina cada vez mais azeitada de eliminação dos corpos indesejados, majoritariamente negros.

Jamais bastará a eliminação de componentes substituíveis. É preciso reprogramar todo o sistema e para isso necessitamos de soluções complexas e variadas, algumas delas ainda dentro das veredas jurídicas, mas a maioria delas verdejantes em outros campos. Casos como o de Genivaldo deveriam levar à reflexão sobre a responsabilidade administrativa de cada um dos agentes públicos que, no mal desempenho de suas funções, ajudam a acobertar a violência cometida pelo Estado. Deveriam levar à reflexão sobre a responsabilidade política de cada um dos mandatários de cargos públicos que transmitem aos agentes de campo mensagens dissonantes do plexo normativo que compõe o sistema de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Deveriam levar à reflexão dos próprios valores e deveres sociais de cada cidadão, a quem não mais caberá o olhar impassível diante do arbítrio e da ilícita violência.

Para isso, é preciso que os olhos sejam treinados para enxergar para além do direito penal, que acoberta a complexa realidade que, analisada com cuidada, desnuda o fato de que Genivaldo não foi morto apenas pelas mãos dos agentes da Polícia Rodoviária Federal, mas uma por uma série de atores que encenam um farsesco enredo a que chamamos de sistema de justiça. Já basta.

Bruno Salles Ribeiro

VIP Bruno Salles Ribeiro

Advogado criminalista. Mestre em Direito pela USP e sócio de Salles Ribeiro Advogados. Membro da Diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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