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Ensaios sobre a aplicação da teoria da dualidade do vínculo obrigacional nas dividas condominiais de imóveis gravados pela alienação fiduciária

Em razão dessa previa intimação do credor fiduciário, onde lhe é dado pleno conhecimento aos termos do processo judicial, é possível que a penhora recaia sobre o bem em si, já que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia ao pagamento da dívida.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Atualizado às 11:30

Como se sabe, a despesa condominial tem como finalidade a manutenção das áreas comuns, administração do condomínio edilício e obras ou inovações devidamente aprovadas pelos condôminos. A doutrina explica que a mais importante das obrigações do condômino é contribuir para as custos de conservação do prédio, sejam elas destinadas aos reparos necessários, à realização de obras que interessam à estrutura integral da edificação ou a serviço comum, pois, do contrário, o condomínio edilício cairá em ruina.1

Também não é nenhuma novidade que os débitos provenientes de contribuições condominiais possuem natureza de obrigação propter rem, isto é, oriunda da coisa e por causa dela. De forma didática, Maurício Bunazar esclarece que a "verdadeira função da obrigação propter rem é a conservação da res objeto da situação jurídica, real ou pessoal, que deflagrou a obrigação". 2

Apesar disso, as recentes decisões judiciais, indo na contramão do que a obrigação propter rem visa alcançar, passaram a definir que o bem submetido à alienação fiduciária, por não integrar o patrimônio do devedor, não pode ser objeto de penhora e alienação judicial. Como solução para o indelével prejuízo que essas decisões estavam acarretando aos condomínios, o Superior Tribunal de Justiça passou a facultar aos condomínios credores a possibilidade de penhorar os direitos do devedor fiduciante sobre o contrato de alienação fiduciária.3

No entanto, embora esteja expressamente estabelecido que as taxas condominiais devam ser pagas, a priori, pelo devedor fiduciante, o parágrafo 8º do art. 27 da lei 9.514/97 e o artigo 1.368-B do Código Civil não afastaram ou mitigaram o caráter propter rem da dívida condominial nos contratos de alienação fiduciária. O art. 72 da lei 11.977/09 reforça esse entendimento na exata medida em que exige a notificação do credor fiduciário nas ações de cobrança ou execuções de taxas condominiais que forem aforadas em desfavor do devedor fiduciante:

Art. 72.  Nas ações judiciais de cobrança ou execução de cotas de condomínio, de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana ou de outras obrigações vinculadas ou decorrentes da posse do imóvel urbano, nas quais o responsável pelo pagamento seja o possuidor investido nos respectivos direitos aquisitivos, assim como o usufrutuário ou outros titulares de direito real de uso, posse ou fruição, será notificado o titular do domínio pleno ou útil, inclusive o promitente vendedor ou fiduciário.4

Constata-se que, pela redação do mencionado dispositivo, o credor fiduciário que não figurar na condição de réu/executado nas mencionadas ações judiciais deverá ser notificado e permite, se assim almejar, atuar como assistentes. Isto é, intimado em razão do compartilhamento de direito dominial já que se trata de propriedade resolúvel, além do seu evidente interesse econômico na causa.5

Deste modo, como a obrigação de pagar despesas condominiais é de natureza propter rem, ainda que se trate de contrato de alienação fiduciária e a ação dessa natureza seja movida exclusivamente em face do devedor fiduciante, a teor do art. 72 da lei 11.977/09, o próprio imóvel deverá ser alvo de penhora para garantir o sucesso da demanda.6

Ou seja, há uma obrigação pessoal de o devedor fiduciante perante as despesas condomínios, enquanto a obrigação real, proveniente da natureza propter rem da dívida, permanece sobre o credor fiduciário, já que detém a propriedade resolúvel, o que justifica a exigência da sua previa notificação.

Do contrário, qual seria a lógica da criação e promulgação dessa lei, senão possibilitar que nas obrigações de despesas condominiais seja penhorado o próprio imóvel e não somente os direitos do devedor fiduciante? Interpretação diversa, além de afrontar o caráter ambulatório do débito, também torna inócua a própria ratio legis.

Ao que tudo indica, o art. 72 da lei 11.977/19 vislumbra a teoria da dualidade do vínculo obrigacional, desenvolvida por Alois von Bekkr e Ernst Immanuel Brinz, que estabelece uma alteração da obrigação em débito (schuld), o encargo de prestar e responsabilidade (haftung), a sujeição do devedor, ou terceiro, a satisfação da dívida. Nesse mesmo sentido, é o entendimento de José Fernando Simão:

Por outro lado, há um segundo grupo de obrigações imperfeitas, em que se identifica responsabilidade (Haftung) por dívida alheia (Schuld) ou mesmo inexistência de coincidência entre a extensão da dívida (Schuld) e da responsabilidade (Haftung).

A responsabilidade por dívida alheia pode nascer da vontade das partes (garantia contratual) ou mesmo de imposição legal (garantia legal). Exemplo clássico de garantia contratual é o do fiador em relação ao devedor. Ainda que na linguagem popular se diga que o fiador é devedor, que o fiador assume a posição de principal devedor, tecnicamente o fiador é responsável por dívida alheia. Há Haftung, mas não Schuld.7

Por meio da sua aplicabilidade, a responsabilidade (haftung) pelo débito (Schuld) passa a ser dinâmica, mediante análise estática, e permite a efetivação da obrigação, determinando quais bens (do sujeito passivo, do devedor ou de terceiros) responderão pelo seu adimplemento, independente da vontade do seu titular. Ou seja, a obrigação passa a ter dois componentes, a dívida que detém vínculo pessoal e a responsabilidade que é patrimonial (pessoal ou de terceiros).8

Desta forma, aplicando-se a teoria da dualidade do vínculo obrigacional às despesas condominiais em contratos de alienação fiduciária, tem-se que a obrigação pelo pagamento do débito deve ser imputada ao devedor fiduciante, já que é ele quem se beneficia dos serviços prestados pelo condomínio.

Todavia, não se desvincula a obrigação do credor fiduciário, mantendo-o na condição de responsável pelo pagamento da dívida - na condição de legitimação extraordinária -, enquanto alimentar a situação jurídica de proprietário resolúvel do imóvel, o que justifica a sua previa notificação da propositura de ações de cobrança.

Maurício Bunazar, ao elucidar a respeito da obrigação propter rem no caso de pluralidade de direitos subjetivos reais - tal como ocorre no caso de contratos de alienação fiduciária em decorrência do compartilhamento de direito dominial -, explica que o imóvel segue como devedor do débito, ainda que não seja o proprietário o devedor responsável pela obrigação ambulatória e sim o possuidor, a partir da análise dualista da obrigação, utilizando como exemplo o instituto jurídico da superfície. São suas palavras:

Destarte, havendo concorrência de direitos subjetivos reais sobre a mesma coisa, caso o direito positivo não haja atribuído expressamente a um dos sujeitos in relationem o devedor de adimplir a obrigação propter rem, esta posição jurídica passiva deve ser atribuída ao titular imediato dos poderes sobre a coisa. Assim, por exemplo, havendo sobre a mesma coisa direito subjetivo de propriedade e direito subjetivo de superfície, caberá ao superficiário arcar com as despesas e obrigações propter rem relacionada ao uso gozo da coisa, afinal, é quem diretamente aufere seus benefícios.9

E conclui que:

Esta regra geral não agasta as conclusões a que se chegou neste trabalho a partir da análise dualista da obrigação. Deste modo, e ainda utilizando o direito real de superfície como exemplo, embora o superficiário seja devedor e responsável pela obrigação propter rem em face de terceiro, o proprietário será responsável por ela, mas, por não ser seu devedor, poderá em regresso, cobrar do superficiário os valores que, na qualidade de responsável, pagou ao terceiro.10 

Ainda a título de exemplo, em que pese tratar-se novamente de hipótese diversa do enfoque - já que não abarca contrato de alienação fiduciária -, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem aplicando essa mesma teoria da dualidade do vínculo obrigacional para reconhecer a legitimidade concorrente do propriamente vendedor e do promitente comprador para responder pelo débito condominial, dada a natureza propter rem da obrigação, prestigiando-se, assim, o interesse da coletividade condominial, que deve se sobrepor ao interesse particular:

Apelação. Condomínio. Ação de cobrança de cotas condominiais promovida contra a CDHU, promitente vendedora. Sentença de procedência da ação. Alegação de ilegitimidade passiva afastada. Título não registrado. Possibilidade de aplicação da teoria da dualidade do vínculo obrigacional, para reconhecer a legitimidade concorrente do promitente vendedor e do promissário comprador para responder pelo débito condominial, dada a natureza "propter rem" da obrigação e o interesse da coletividade. Critério adotado pelo STJ no julgamento do REsp 1.442.840/PR ao interpretar a tese firmado no recurso repetitivo REsp 1.345.331/RS. Legitimidade passiva da proprietária CDHU para responder pelos débitos condominiais posteriores à imissão na posse reconhecida, ressalvado seu direito de regresso em face de quem eventualmente ocupe ou tenha ocupado o imóvel gerador das despesas no período objeto da cobrança. Desnecessidade de prévia constituição em mora. Obrigação positiva e líquida, caso em que a mora se constitui ex re. Inteligência do artigo 397 do Código Civil. Sentença mantida. Honorários majorados. RECURSO DESPROVIDO.11 

Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça, há alguns anos, pela velha sistemática de recurso repetitivos (art. 543, C, do Código de Processo Civil revogado), uniformizou o entendimento relacionado a responsabilidade e legitimidade para as ações de cobrança de taxas condominiais e estabeleceu como crédito a relação material com o imóvel, conforme segue:

[...] a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador [...].12

Contudo, em razão de diversas dificuldades práticas e, até mesmo, teóricas, que colocavam em descrédito toda compreensão doutrinária e jurisprudencial envolvendo as despesas condominiais, pois, sabidamente, possuem natureza proter rem, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça, cujo voto pioneiro foi proferido pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, retomou a orientação clássica sobre esta matéria a partir da aplicação da teoria da dualidade das obrigações, veja-se:

Aplicando-se essa teoria à obrigação de pagar despesas condominiais, verifica-se que o débito deve ser imputado a quem se beneficia dos serviços prestados pelo condomínio, no caso, o promitente comprador, valendo assim o brocardo latino 'ubi commoda, ibi incommoda'.

Até aqui, não há, a rigor, nenhuma novidade.

A grande diferença é que o proprietário não se desvincula da obrigação, mantendo-se na condição de responsável pelo pagamento da dívida, enquanto mantiver a situação jurídica de proprietário do imóvel.

Essa separação entre débito e responsabilidade permite uma solução mais adequada para a controvérsia, preservando-se a essência da obrigação 'propter rem'.13

Não há dúvidas de que essa distinção entre a obrigação pessoal pelo pagamento débito condominial e a responsabilidade do imóvel perante a esta dívida condominial permite uma solução mais adequada para o imbróglio criado pelas decisões judiciais que denegam a penhora naqueles bens gravados pela alienação fiduciária.

Tal seguimento prestigia, especialmente, a natureza propter rem da dívida condominial. Que sempre teve como máxima a direção de que "quem deve é a coisa, metáfora para dizer que quem deve é o dono, cujo nome importa pouco, porque a garantia da dívida assenta-se sobre a própria coisa. Prevalece o interesse da coletividade".14

Nesse sentido, em que pese a complexidade de posições jurídicas, mostra-se lógico o entendimento de que é possível promover a ação judicial de cobrança de despesas de condomínio em face do devedor fiduciante, já que é ele quem se beneficia dos serviços fornecidos pelo condomínio, enquanto o credor fiduciário será intimado da existência do processo em razão do compartilhamento de direito dominial que exerce sobre o imóvel (interesse econômico na causa e artigo 72 da lei 11.977/19).

Ademais, em razão dessa previa intimação do credor fiduciário, onde lhe é dado pleno conhecimento aos termos do processo judicial, é possível que a penhora recaia sobre o bem em si, já que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia ao pagamento da dívida. Isso decorre do interesse prevalecente da coletividade condominial em receber os recursos para o pagamento de despesas indispensáveis e inadiáveis a sua manutenção.

Entretanto, por não ser seu devedor originário, poderá o credor fiduciário, em regresso, cobrar do devedor fiduciante o prejuízo que, eventualmente, venha a sofrer com a penhora e posterior leilão judicial. De outro viés, na hipótese de o credor fiduciário promover o pagamento do débito, este o fará na qualidade de terceiro interessado, se sub-rogando na posição jurídica do primitivo credor.15

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. v. 5., 9. ed . São Paulo: Saraiva, 2014, p. 411.

2 BUNAZAR, Maurício. Obrigação Propter rem: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 181.

3 STJ. REsp 1.731.735/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em: 22/11/2018.

4  BRASIL. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Que regula sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e entre outros. Disponível em: . Acesso em: 17 mai. 2020.

5 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário Teoria e Prática. 13ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Gen, 2018, p. 1000.

6 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito Imobiliário Teoria e Prática. 13ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Gen, 2018, p. 549.

7 SIMÃO, José Fernando. Op. Cit. 2013, p. 177.

8 DINAMARCO, Cândico Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 1ª ed, vol. 4. São Paulo: Editora Malheiros, 2004, p. 325.

9 BUNAZAR, Maurício. Op. Cit., 2014, p. 145/146.

10 BUNAZAR, Maurício. Op. Cit., 2014, p. 146.

11 TJSP, Apelação Cível 1014245-22.2019.8.26.0361; Relator: L. G. Costa Wagner, 34ª câmara de Direito Privado, DJ 26/02/2021.

12 STJ, REsp 1.345.331-RS, segunda seção, tema repetitivo 886, Rel Min. Luis Felipe Salomão, DJ 08/04/2015.

13 STJ, REsp 1.442.840 PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, terceira turma, DJ 06/08/2015.

14 TJSP, Apelação n. 0026735-11.2010.8.26.0361, 28ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Celso Pimente, DJ. j. 26-07-2011.

15 BUNAZAR, Maurício. Op. Cit., 2014, p. 146/147.

Paulo Henrique de Moraes Jr

Paulo Henrique de Moraes Jr

Advogado. Pós-graduado em direito civil (Anhanguera e LFG), processo civil (UNIVALI) e imobiliário (CESUSC).

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