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Não há sigilo em ações que envolvam desvios de recursos públicos

A EC 45/04 destaca que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Atualizado às 19:00

Em recentíssimo julgado, apreciando ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 78-B da lei 10.233/11 (que estabelecia sigilo como regra em processos administrativos sancionadores), assentou expressamente que  "a regra no Estado democrático de Direito inaugurado pela CF/88 é a publicidade dos atos estatais, sendo o sigilo absolutamente excepcional. Somente em regimes ditatoriais pode ser admitida a edição ordinária de atos secretos, imunes ao controle social. O regime democrático obriga a administração pública a conferir máxima transparência aos seus atos. Essa é também uma consequência direta de um conjunto de normas constitucionais, tais como o princípio republicano (art. 1º, CF/1988), o direito de acesso à informação detida por órgãos públicos (art. 5º, XXXIII, CF/88) e o princípio da publicidade (art. 37, caput e § 3º, II, CF/88)".

E prosseguiu destacando que "a Constituição ressalva a publicidade em apenas duas hipóteses: (i) informações cujo sigilo seja imprescindível à segurança do Estado e da sociedade (art. 5º, XXXIII, parte final); e (ii) proteção à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (arts. 5º, X e 37, § 3, II, CF/88). Como se vê, o sigilo só pode ser decretado em situações específicas, com forte ônus argumentativo a quem deu origem à restrição ao direito fundamental à informação, observado o princípio da proporcionalidade". (ADIn 5.371-DF, STF, tribunal pleno, relator ministro Roberto Barroso, unânime, julgado na sessão virtual de 18/2/22 a 25/2/22, publicado no DJ em 12/4/22).

Importante ainda trazer em sede preliminar as sempre valiosas e lúcidas lições do ministro Celso de Mello, cabendo destaque (dentre tantos) o que assentado no julgamento do agravo regimental no HC 119.535/SP, julgado em 22/10/13, publicado no DJ em 26/11/13).

[.] Nada deve justificar, em princípio, a tramitação, em regime de sigilo, de qualquer procedimento que tenha curso em juízo, pois, na matéria, deve prevalecer, ordinariamente, a cláusula da publicidade.
Não custa rememorar, tal como sempre tenho assinalado nesta Suprema Corte, que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério.
Na realidade, a Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na expressiva lição de NORBERTO BOBBIO ("O Futuro da Democracia", p. 86, 1986, Paz e Terra), como "um modelo ideal do governo público em público".
A Assembleia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, tão fortemente realçados sob a égide autoritária do regime político anterior.
Ao dessacralizar o segredo, a Assembleia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais.
Isso significa, portanto, que somente em caráter excepcional os procedimentos penais poderão ser submetidos ao (impropriamente denominado) regime de sigilo ("rectius": de publicidade restrita), não devendo tal medida converter-se, por isso mesmo, em prática processual ordinária, sob pena de deslegitimação dos atos a serem realizados no âmbito da causa penal.
É por tal razão que o Supremo Tribunal Federal tem conferido visibilidade a procedimentos penais originários em que figuram, como acusados ou como réus, os próprios membros do Poder Judiciário (como sucedeu, p. ex., no Inq 2.033/DF e no Inq 2.424/DF), pois os magistrados, também eles, como convém a uma República fundada em bases democráticas, não dispõem de privilégios nem possuem gama mais extensa de direitos e garantias que os outorgados, em sede de persecução penal, aos cidadãos em geral.
Essa orientação nada mais reflete senão a fidelidade desta Corte Suprema às premissas que dão consistência doutrinária, que imprimem significação ética e que conferem substância política ao princípio republicano, que se revela essencialmente incompatível com tratamentos diferenciados, fundados em ideações e práticas de poder que exaltam, sem razão e sem qualquer suporte constitucional legitimador, o privilégio pessoal e que desconsideram, por isso mesmo, um valor fundamental à própria configuração da ideia republicana que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade. Daí a afirmação incontestável de JOÃO BARBALHO ("Constituição Federal Brasileira", p. 303/304, edição fac-similar, 1992, Brasília), que associa, à autoridade de seus comentários, a experiência de membro da primeira Assembleia Constituinte da República e, também, a de Senador da República e a de Ministro do Supremo Tribunal Federal: "Não há, perante a lei republicana, grandes nem pequenos, senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres, fortes nem fracos, porque a todos irmana e nivela o direito (...)." (grifei)
Sendo assim, pelas razões expostas, nego provimento ao presente recurso de agravo, mantendo, por seus próprios fundamentos, a decisão recorrida". (os grifos são no original)

A propósito dessa questão de ponderação de princípios, rememoramos outro julgado do plenário do STF, em que restaram afirmadas algumas premissas importantes aplicáveis também ao tema aqui posto, feito no qual se discutia a (in)constitucionalidade do art. 305 do CBT frente às garantias convencional e constitucional de não produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere):

1 -  "A garantia do nemo tenetur se detegere no contexto da teoria geral dos direitos fundamentais implica a valoração do princípio da proporcionalidade e seus desdobramentos como critério balizador do juízo de ponderação, inclusive no que condiz aos postulados da proibição de excesso e de vedação à proteção insuficiente";
2-  "a relativização da máxima nemo tenetur se detegere verificada in casu é admissível, uma vez que atende às duas premissas fundamentais acima estabelecidas. (a) A uma porque não afeta o núcleo irredutível da garantia enquanto direito fundamental, qual seja, jamais obrigar o investigado ou réu a agir ativamente na produção de prova contra si próprio.  [.];  (b) A duas porque, em um exercício de ponderação, a referida flexibilização possibilita a efetivação em maior medida de outros princípios fundamentais com relação aos quais colide no plano concreto, sem que, ademais, acarrete qualquer violação à dignidade da pessoa humana";
3 - "O princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente, conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais"(RE 971.959/RS, STF, plenário, rel. min. Luiz Fux, julgado em 29/7/20, publicado no DJ em 31/7/20).

Optamos por destacar essas decisões para demonstrar que, faz muito tempo, está sedimentado na jurisprudência da Suprema Corte brasileira o posicionamento de que o sigilo de processos - quaisquer que sejam suas naturezas ! - deve ser excepcional, com ênfase para o fato de que não há qualquer afronta a regras de direito individual a divulgação de informações de interesse público, sem que, dessa revelação, haja violação à essência da cláusula de direito fundamental individual protegido (intimidade), ou, como dito expressamente no precedente antes mencionado, se não afetar "o núcleo irredutível da garantia enquanto direito fundamental".

Exatamente por isso é que, reforçando a redação originária da carta maior, a EC 45/04 modificou a redação do inciso IX do art. 93 para consignar expressamente que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação".

Por outra ótica (mas assentando exatamente a mesma lógica), nunca é demais ressaltar que o art. 5º, XXXIII, garante o direito de todos a "receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado".

Dando conformação legal aos princípios constitucionais, a lei 12.527/11, no § 4º do art. 31 deixou expresso que a "restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância".

Vamos rememorar ainda que, apreciando a alegação de ilegalidade de requisição de movimentações bancárias (protegidas constitucionalmente pela intimidade individual) diretamente pelo TCU quando apurando fatos de sua atribuição e envolvendo desvio de recursos públicos, assentou de modo muito claro:

[.] 2. O primado do ordenamento constitucional democrático assentado no Estado de Direito pressupõe uma transparente responsabilidade do Estado e, em especial, do Governo.
3. O sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos.
4. Operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal. Em tais situações, é prerrogativa constitucional do Tribunal [TCU] o acesso a informações relacionadas a operações financiadas com recursos públicos. [...]
[...] 8. In casu, contudo, o TCU deve ter livre acesso às operações financeiras realizadas pelas impetrantes, entidades de direito privado da Administração Indireta submetidas ao seu controle financeiro, mormente porquanto operacionalizadas mediante o emprego de recursos de origem pública. Inoponibilidade de sigilo bancário e empresarial ao TCU quando se está diante de operações fundadas em recursos de [...]origem pública. Conclusão decorrente do dever de atuação transparente dos administradores públicos em um Estado Democrático de Direito.
[...] 11. A proteção deficiente de vedação implícita permite assentar que se a publicidade não pode ir tão longe, de forma a esvaziar, desproporcionalmente, o direito fundamental à privacidade e ao sigilo bancário e empresarial; não menos verdadeiro é que a insuficiente limitação ao direito à privacidade revelar-se-ia, por outro ângulo, desproporcional, porquanto lesiva aos interesses da sociedade de exigir do Estado brasileiro uma atuação transparente.
15. [...] O direito ao sigilo bancário e empresarial, mercê de seu caráter fundamental, comporta uma proporcional limitação destinada a permitir o controle financeiro da Administração Pública por órgão constitucionalmente previsto e dotado de capacidade institucional para tanto. [...] Denegação da segurança por ausência de direito material de recusa da remessa dos documentos. (Mandado de Segurança n. 33.340-DF, STF, 1ª turma, rel. min. Luiz Fux, julgado em 26/5/15)

Mais que isso, e reportando-se também ao caso acima,  a 2ª turma do STF igualmente já reconheceu de forma unânime:

Recurso ordinário em habeas corpus. Ação penal. Associação criminosa, fraude a licitação, lavagem de dinheiro e peculato (arts. 288 e 313-A, CP; art. 90 da lei 8.666/93; art. 1º da lei 9.613/98 e art. 1º, I e II, do DL 201/67). Trancamento. Descabimento. Sigilo bancário. Inexistência. Conta corrente de titularidade da municipalidade. Operações financeiras que envolvem recursos públicos. Requisição de dados bancários diretamente pelo Ministério Público. Admissibilidade. Precedentes. Extensão aos registros de operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta. Princípio da publicidade (art. 37, caput, CF). Prova lícita. Recurso não provido.  [...]
[...]1. Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal, ao tratar de requisição, pelo Tribunal de Contas da União, de registros de operações financeiras, "o sigilo de informações necessárias para a preservação da intimidade é relativizado quando se está diante do interesse da sociedade de se conhecer o destino dos recursos públicos" (MS 33.340/DF, primeira turma, relator o ministro Luiz Fux, DJe de 3/8/15).
2. Assentou-se nesse julgado que as "operações financeiras que envolvam recursos públicos não estão abrangidas pelo sigilo bancário a que alude a Lei Complementar nº 105/2001, visto que as operações dessa espécie estão submetidas aos princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição Federal (.)".
[...] 5. O poder do Ministério Público de requisitar informações bancárias de conta corrente de titularidade da prefeitura municipal compreende, por extensão, o acesso aos registros das operações bancárias realizadas por particulares, a partir das verbas públicas creditadas naquela conta.
6. De nada adiantaria permitir ao Ministério Público requisitar diretamente os registros das operações feitas na conta bancária da municipalidade e negar-lhe o principal: o acesso ao real destino dos recursos públicos, a partir do exame de operações bancárias sucessivas (v.g., desconto de cheque emitido pela Municipalidade na boca do caixa, seguido de transferência a particular do valor sacado).  [...]
[...] 7. Entendimento em sentido diverso implicaria o esvaziamento da própria finalidade do princípio da publicidade, que é permitir o controle da atuação do administrador público e do emprego de verbas públicas.
8. Inexistência de prova ilícita capaz de conduzir ao trancamento da ação penal.
9. Recurso não provido. (RHC n. 133.118 - CE, STF, 2ª turma, unânime, rel. min. Dias Toffoli, julgado em 26/9/17, publicado no DJ em 9/3/18)

A razão dessas várias citações de julgados do STF é para demonstrar a necessidade de assentar que o sigilo deve ser para aquelas situações absolutamente excepcionais.

Além disso, e mais importante, como expressamente reconhecido pela Suprema Corte, quando se tratar de apurações ou ações que envolvam desvios de recursos públicos - em quaisquer esferas -, e ausente hipótese de garantia de segurança do Estado e da sociedade (art. 5º XXXIII, parte final), não se pode arguir o sigilo, pois as apurações devem ser transparentes, presente a publicidade, sendo consequentemente descabida a tese de que a divulgação implica a violação a direitos de intimidade dos investigados.

Douglas Fischer

Douglas Fischer

Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS. Procurador Regional da República na 4ª Região.

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