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A graça da liberdade de expressão

Liberdade de expressão - limites - e aplicação da Graça - Caso Daniel Silveira.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Atualizado às 14:12

Recentemente, assistimos a concessão por parte do Chefe do Executivo Federal (Presidente Bolsonaro) da graça ao Deputado Daniel Silveira. O referido ato foi o ponto de ebulição para as mais diversas discussões jurídicas e políticas.

Tanto a graça quanto o indulto são atos privativos e discricionários do Presidente da República. Ambos os casos, resultam na extinção da punibilidade. A anistia, de forma diversa, depende de lei e sendo competência do Congresso Nacional.

O indulto individual/graça (art. 84, XII, CF) se processa mediante decreto, todavia, não tendo o condão de apagar os efeitos secundários da pena; assim, a graça concedida limita-se apenas a execução da pena, isto é, a condenação criminal.

No tocante aos efeitos secundários-genéricos (art. 91, CP), específicos (art. 92, CP) e extra penais, estes permanecem, logo, o dever de indenizar perda do mandato, reincidência, revogação de benefícios como o sursis, o livramento condicional, persistem. Os efeitos específicos são aqueles que, diferentemente dos genéricos, não são automáticos.

O STF, na ADI 5874/DF, consignou que cabe ao Presidente estabelecer a extensão dos benefícios e limites por meio da conveniência e oportunidade.

Nesse sentido, por ser a graça ato administrativo discricionário, inicialmente, não cabe ao Judiciário adentrar no mérito, contudo, a regra pode ser excetuada.

Os atos administrativos podem ser vinculados ou discricionários. São vinculados quando têm seus parâmetros fixados em lei, meio que cabe interveniência judiciária. Os discricionários se referem ao mérito administrativo.

Os atos administrativos contêm a competência (com), finalidade (fi), forma (for), motivo (mo) e objeto (b), comumente conhecido pelo mnemônico CONFIFORMOB.

O ato discricionário tem apenas o motivo e objeto livres, sendo os demais parâmetros vinculados, logo, cabendo intervenção judiciária de modo excepcional.

O indulto individual, além de ser um ato administrativo, também possui limites constitucionais, sendo eles expressos e implícitos.

As LIMITAÇÕES EXPRESSAS estão contidas no art. 5º, inciso XLIII, da Carta de Outubro. Ela veda a concessão para os crimes de tortura, tráfico, terrorismo e hediondos.

As LIMITAÇÕES IMPLÍCITAS são tratadas na ADIN 5.874 e são 03. A saber: Não pode ser referente a pedido de extradição, teoria dos motivos determinantes (motivos invocados devem corresponder aos fundamentos fáticos e jurídicos), desvio de finalidade, compatibilidade com os valores constitucionais e são excluídos para crimes contra a humanidade e nos compromissos internacionais avençados pelo Brasil.

O privilégio concedido, além de tratar de ato administrativo, também é constitucional e envolve o tema da amplitude da liberdade de expressão.

A justificativa presidencial não se amparou em termos humanitários, de política criminal, subsistência da família ou razões outras que não obedecer, segundo o seu conteúdo, a "liberdade de expressão" e "comoção social".

Tem-se como paradigma da liberdade de expressão, o caso Ellwanger (2003). Por meio dele, a Corte Constitucional consignou que esse direito não agasalha ilicitudes penais, liberdade incondicionada ou conteúdo imoral (CF, art. 5º, §2º, primeira parte).  Ratificando o caso supra, no julgamento do deputado Daniel Silveira, foi deliberado pela impossibilidade de discurso de ódio e atos que atentem contra a Ordem Democrática e o Estado de Direito.

Nos Estados Unidos, é permitido o hate speech, isto é, discurso de ódio, mas, o Brasil rechaça tal possibilidade. Ademais, é possível, de acordo com Pedro Lenza, a cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar, logo, a imunidade material não é absoluta.

Nem a vida é absoluta, que, em tempos de guerra, pode ser relativizada. Muito menos, a liberdade de expressão.

Traçando um paralelo, no contexto da Segunda Guerra, o nazismo ascendeu ao Poder por meio do discurso de ódio que, á época, não foi coibido. Ontem, houve absolutismo do conceito. Hoje, não é possível.

Além disso, a liberdade de expressão contém carga valorativa, devendo, portanto, ser sopesada. Isto implica dizer que ela não se submete ao parâmetro das regras - ALL OR NOTHING - em que uma regra afasta as demais e sim um cabimento não excludente dos demais valores constitucionais, entre eles, a proporcionalidade.

A proporcionalidade atende ao teste alemão, que envolve 03 requisitos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Adequação fala que o ato deve ter uma relação meio-fim; necessidade, que o ato deve buscar ir do meio menos lesivo para o mais lesivo e proporcionalidade em sentido estrito, envolve o sopesamento quando da aplicação do valor.

Num primeiro momento, a expressão livre está abarcada, relativamente, pelo animus narrandi (quem narra uma situação), consulendi (quem aconselha), jocandi (quem brinca com determinadas situações) e criticandi (quem critica), todavia, o STF, no PET 8242, julgado em 03 de maio de 2022, aventou que: "A liberdade de expressão não alcança a prática de discursos dolosos com intuito manifestamente difamatório, de juízos depreciativos de mero valor, de injúrias em razão da forma ou de críticas aviltantes", logo, cabendo ponderação judicial de determinados atos que se justificam na liberdade de pensamento.

A liberdade de expressão é pedra filosofal da democracia e sua essendi garante o direito de externar pensamentos. Ela permite a multiplicidade das concepções. No seu núcleo consta a tolerância, isto é, a condição de ouvir, mas de também ser respeitado, assim, cabendo a indagação do quanto deve ser permitido respeitar. O respeito não alcança tolerar ideias intolerantes.

Diante disso, fala-se do Paradoxo da Tolêrancia de Karl Popper. Ele indaga se devemos oferecer tolerância ideológica ao intolerante. O conceito adveio da análise dos movimentos totalitários do século XX.

Ele afirma que a "tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância" e que se não estivermos preparados, seremos assaltados e destruídos pelo discurso segregacionista e violento.

Quem defende a tolerância ilimitada, indiretamente, torna-se vulnerável a qualquer ataque intolerante que se camufle no pensamento livre, assim, devendo a tolerância, tal quais os demais direitos, ser limitada.

No Estado democrático, há espaço para reflexões, pontos de vista e até quimera e que, discursos dissonantes podem ser refutados com argumentos sólidos bem como serem contraditados, todavia, o que não deve ser aceito, é uma atuação ao arrepio da Lei e da ordem constitucional vigente.

Isabela Cavalcanti

Isabela Cavalcanti

Advogada do escritório SMF. Especialista em Direito Constitucional.

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