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Judiciário no combate às revitimizações

O STJ como oposição frente às retaliações sofridas por vítimas de violência doméstica na esfera cível.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Atualizado em 24 de maio de 2022 10:02

Muito se discute  na mídia acerca do papel do judiciário como protagonista no enfrentamento à violência de gênero. Ocorre que tal discussão, muitas vezes, centraliza-se na própria atuação jurídica no acontecimento do crime, pouco se abordando o que pode ser feito para abrandar as consequências patrimoniais da violência sofrida pelas vítimas. Sendo assim, o presente texto disserta acerca da relevante atuação do STJ que, em julgado proferido por sua 3ª turma (REsp 1.966.556/SP), ao decidir acerca de um pedido de indenização, oriundo de ação de extinção de condomínio cumulada com arbitramento de aluguel, optou, de maneira unânime, por garantir proteção às vítimas de violência doméstica e ser combativo frente a uma possível revitimização.

No citado caso, o autor do pleito não tinha mais acesso ao seu antigo bem imóvel em virtude de concessão de medida protetiva de urgência, fundada na lei Maria da Penha. Essa medida judicial impedia que ele se aproximasse das vítimas, as quais foram sua mãe e irmã, esta co-proprietária do bem, e que dividiam o apartamento com o agressor. Por conta da concessão da protetiva, ele se viu impedido de transitar no domicílio, o que o levou a requerer, judicialmente, a indenização por meio de arbitramento de aluguel, pelo fato de não mais poder fruir do bem imóvel.

No STJ, há entendimento consolidado que a vedação do exercício de quaisquer dos poderes da propriedade pelos demais co-proprietários enseja no dever de indenizar a pessoa impedida de fruir o bem, o qual baseia-se no art. 1.319 do Código Civil. Em contrapartida, na presente hipótese, o julgado se ateve ao fato de que foi o próprio autor quem deu causa à sua proibição da utilização do bem, o que demonstra que o direito à propriedade não poderia ser absoluto.

O embasamento jurídico da decisão lastreia-se no art. 150 do Código Civil, que dispõe que, se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma delas pode exigir a correspondente indenização. Tal ditame legal foi interpretado culminado com o princípio "nemo auditur propriam turpitudinem allegans", brocardo latim que significa que ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza. No presente caso, o comportamento torpe é facilmente identificável, visto que a violência de gênero se trata de um comportamento socialmente intolerável, que deve ser identificado como inadmissível.

Ainda, na decisão proferida, o relator do processo trouxe à baila o art. 226, § 8º, da Constituição Federal, o qual obriga o Estado, além de assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos seus membros, a coibir qualquer tipo de violência familiar.

As previsões constitucionais de preservação da dignidade da pessoa humana, o objetivo do Estado de promover o bem de todos, sem preconceitos de gênero, ou quaisquer outras formas de discriminação, e o princípio da igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações também embasaram o voto do jurista relator.

Caso a demanda fosse julgada procedente para o pedido do agressor, a imposição de obrigar a vítima de violência doméstica a pagar aluguéis ao seu agressor implicaria em um latente desestímulo para que as mulheres buscassem o devido amparo jurisdicional.

Ora, a imposição judicial de uma medida protetiva de urgência, a qual existe com o fito de obstar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, por óbvio, é motivo legítimo para afastar o domínio do agressor sobre um imóvel que é compartilhado com a vítima da agressão. Não poderia, assim, ser configurado nenhum tipo de enriquecimento sem causa, este que é vedado pelo art. 884 do Código Civil, o qual seria o embasamento legal passível de ensejar no arbitramento de aluguel como forma de indenização.

O julgado, então, firma o dever estatal do combate à violência de gênero em todas as searas, ainda que seja feito de forma implícita, como no presente caso. Afinal, é vital que haja um patamar mínimo de proteção da dignidade feminina, que deverá prevalecer frente à perspectiva de preservação, a todo custo, do direito à propriedade.

Dessa forma, é extremamente relevante esse entendimento do STJ, visto que preza o apoio à publicidade dos crimes de violência contra a mulher, de maneira a estimular que as vítimas recorram ao judiciário para garantir a sua proteção e integridade. Assim, os tribunais tornam-se atuantes na garantia de fazerem oposição frente às eventuais retaliações na esfera cível que possam atingir as vítimas.

Sarah Vieira Rodrigues

Sarah Vieira Rodrigues

Advogada da Área Cível Empresarial de Renato Melquíades Advocacia, pós-graduanda em Direito Empresarial pela Faculdade Getúlio Vargas.

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