O Poder Judiciário de olhos vendados diante dos recorrentes crimes cibernéticos
É chegada a hora de o Poder Judiciário fazer a sua parte em prol da sociedade, enfrentando o tema de maneira mais aprofundada e aplicando sentenças punitivo-pedagógicas justas às instituições financeiras.
quarta-feira, 18 de maio de 2022
Atualizado às 12:34
No domingo, 03/04/22, o Jornal O Globo trouxe, na página 30, uma matéria intitulada "mais golpistas que ladrões". Nela, relata que, segundo o Instituto de segurança pública, foram registrados, pela primeira vez em duas décadas, mais casos de estelionato do que de roubo nos dois meses que iniciam o ano. Segundo relata a matéria, foram 18.655 golpes contra 16.169 roubos.
Não há um brasileiro sequer que possua smartphone, e-mail ou rede social, que não tenha sido tentado a cair em um golpe cibernético. A cada dia que passa os estelionatários estão mais ousados, infernizando a vida da população que não descansa, pois todos os dias são incomodados com o recebimento de falsas mensagens de texto, sms e e-mails; clonagem de conta em rede social e aplicativos de mensagens; telefonemas de falsos call centers... e por aí vai.
Dentre os golpes do portfólio dos meliantes, um deles chama a atenção pelo requinte, o "golpe do falso leilão online". Grupos de estelionatários estão se organizando de forma sofisticada para impor vultosos danos aos consumidores, não só materiais, mas sobretudo imateriais, pois impõem às vítimas que são atraídas para o golpe prejuízos que extrapolam a órbita financeira, plantando nos lares a dor e o sofrimento à toda família, diante da perda de significativas economias semeadas com muito suor ao longo da vida.
Basta uma simples espiada no aplicativo tik tok para nos depararmos com uma atraente publicidade de falsos leiloeiros prometendo leiloar os mais variados veículos por menos da metade do preço, mas, em sua esmagadora maioria, são golpistas utilizando sites falsos, ou mascarando sites verdadeiros e utilizando o nome de leiloeiros honestos para aplicar o golpe. Geralmente utilizam a extensão ".com", e não ".com.br", assim dificultam a ação da autoridade policial.
Ainda que, de início, não se possa considerar o dolo na conduta do agente bancário durante a abertura da conta corrente que futuramente será utilizada para a prática de estelionato, o fortuito interno se revela presente na inexecução de obrigações as quais está o agente financeiro fadado a cumprir, não apenas no início, mas durante a movimentação financeira pelo meliante, pois assim determina o órgão regulador.
No que tange ao CDC - Código de Defesa do Consumidor, já se conhece o resultado da ADIn 2591 em que o STF decidiu pela constitucionalidade da aplicação do CDC às instituições financeiras, a teor do que dispõe o artigo 3º,1 §2º, da lei 8.078/90, tendo a referida Corte adotado a teoria do risco do empreendimento, sujeitando as instituições financeiras ao comando do 142, da supracitada lei.
Aqueles que não mantêm relação direta com a instituição financeira, mas sofrem reflexamente o dano pela conduta omissiva, também estão amparados pela legislação consumerista no artigo 173, são os chamados consumidores por equiparação.
O direito do consumidor quanto aos casos de fortuito interno promovido por instituições financeiras, que no afã de maximizar seus lucros descumprem a legislação pátria, já foi objeto de análise pelo STJ que, para dissipar de vez qualquer dúvida acerca da responsabilidade objetiva e solidária das instituições reguladas pelo Banco Central do Brasil, fez editar a súmula 479.4
Diante da clareza solar de que os bancos estão sujeitos ao crivo da legislação consumerista e, sobretudo, diante da súmula 479 do STJ, dúvida não há quanto a responsabilização destes pela inobservância dos cuidados no ato da abertura da conta corrente. Tal conclusão não se extrai apenas pelo teor da lei 8.078/90, mas também das Resoluções emanadas do órgão regulador, o Banco Central do Brasil.
Como exemplo, destaca-se a Resolução do Banco Central do Brasil 4.753/195 ao impor obrigações às instituições financeiras de adotar procedimentos e controles que permitam verificar e validar a identidade e a qualificação dos titulares da conta e, quando for o caso, de seus representantes, bem como a autenticidade das informações fornecidas pelo cliente, inclusive mediante confrontação dessas informações com as disponíveis em bancos de dados de caráter público ou privado.
A obrigação dos bancos não se resume à Resolução acima destacada, vai além. A circular 3.542/12, do Banco Central do Brasil, obriga as instituições financeiras a divulgar a relação de operações e situações que podem configurar indícios de ocorrência do crime de lavagem de capital previsto na lei 9.613/98, passível de comunicação ao Coaf - conselho de controle de atividades financeiras6.
O Poder Judiciário, quando o tema é o chamado "golpe do falso leilão", está literalmente como a deusa Themis (ou se preferir na versão romana, Iustitia), ou seja, de olhos vendados para socorrer o lado hipossuficiente, limitando-se a atribuir a culpa exclusiva pelo golpe do falso leilão ao "desatento" consumidor. Pobre consumidor! ludibriado em sua boa-fé, massacrado por publicidades enganosas, violado na sua intimidade e vida privada com anúncios criminosos, ligações telefônicas, mensagens de whatsapp, sms e e-mails aos borbotões, e quando superado pela incansável arte de enganar dos estelionatários, não tem a espada de Themis para lhe socorrer.
É vidente que o banco é solidariamente responsável, ao menos na visão deste articulista, pelo fato do serviço consumado na abertura da conta e perpetuado no tempo pela falta de fiscalização das instituições financeiras, que só se deparam com o problema quando comunicados por alguma vítima.
Em salvaguarda ao consumidor, a lei 8.078/90 determina a inversão do ônus da prova no artigo 6, VIII, bem como obriga as instituições financeiras a promoverem a adequada e eficaz prestação do serviço, no inciso X. Indaga-se: estaria a instituição financeira prestando adequado e eficaz serviço à sociedade ao abrir uma conta corrente para um estelionatário? Claro que não!
O consumidor hipossuficiente, que só tem o Poder Judiciário como salvaguarda nestes momentos difíceis de inesperada lesão material e imaterial, não pode ficar à mercê de filigranas jurídicas apenas porque é comum estar desatento na primeira etapa do golpe, o cadastro no falso site e a oferta de lance, diante da momentânea empolgação. Isto porque, na segunda e mais importante etapa do golpe, o pagamento, este só se consolida porque tem a participação decisiva da instituição financeira, que agindo com desídia, permite a concretização do ato delituoso ao não tomar as cautelas necessárias quando da abertura da conta corrente para a prática de atos espúrios.
Em conclusão, depois de ter pesquisado a recente jurisprudência sobre o tema do "golpe do falso leilão" e avistado um cenário desolador para as famílias envolvidas involuntariamente nesta fraude, penso que é chegada a hora de o Poder Judiciário fazer a sua parte em prol da sociedade, enfrentando o tema de maneira mais aprofundada e aplicando sentenças punitivo-pedagógicas justas às instituições financeiras para que estas invistam em segurança cibernética, e não na maximização dos lucros, pois somente através da espada forte do Poder Judiciário se fará justiça às famílias que perderam tudo ou quase tudo para estes profissionais do golpe, que contam com a participação decisiva dos bancos. O Poder Legislativo7 já fez a sua parte alterando o Código Penal e ampliando a pena dos estelionatários que se valem da cortina cibernética para aplicação do golpe. E o Poder Judiciário?
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1 Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. § 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
2 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
3 Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.
4 Súmula 479 do STJ: "As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias".
5 Art. 1º Esta Resolução estabelece os requisitos a serem observados pelas instituições financeiras na abertura, na manutenção e no encerramento de conta de depósitos. Art. 2º As instituições referidas no art. 1º, para fins da abertura de conta de depósitos, devem adotar procedimentos e controles que permitam verificar e validar a identidade e a qualificação dos titulares da conta e, quando for o caso, de seus representantes, bem como a autenticidade das informações fornecidas pelo cliente, inclusive mediante confrontação dessas informações com as disponíveis em bancos de dados de caráter público ou privado. § 1º Considera-se qualificação as informações que permitam às instituições apreciar, avaliar, caracterizar e classificar o cliente com a finalidade de conhecer o seu perfil de risco e sua capacidade econômico-financeira.§ 4º As informações de identificação e de qualificação dos titulares de conta de depósitos e de seus representantes, quando houver, devem ser mantidas atualizadas pelas instituições. § 5º As instituições devem adequar os procedimentos de que trata o caput às disposições relativas à prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, bem como observar a legislação e a regulamentação vigentes.
6 Art. 1º As operações ou as situações descritas a seguir, considerando as partes envolvidas, os valores, a frequência, as formas de realização, os instrumentos utilizados ou a falta de fundamento econômico ou legal, podem configurar indícios de ocorrência dos crimes previstos na Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, passíveis de comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf):
I - situações relacionadas com operações em espécie em moeda nacional:
a) realização de depósitos, saques, pedidos de provisionamento para saque ou qualquer outro instrumento de transferência de recursos em espécie, que apresentem atipicidade em relação à atividade econômica do cliente ou incompatibilidade com a sua capacidade econômico-financeira;
c) aumentos substanciais no volume de depósitos em espécie de qualquer pessoa natural ou jurídica, sem causa aparente, nos casos em que tais depósitos forem posteriormente transferidos, dentro de curto período de tempo, a destino não relacionado com o cliente;
h) realização de saques em espécie de conta que receba diversos depósitos por transferência eletrônica de várias origens em curto período de tempo;
Art. 2º As instituições referidas no art. 1º, para fins da abertura de conta de depósitos, devem adotar procedimentos e controles que permitam verificar e validar a identidade e a qualificação dos titulares da conta e, quando for o caso, de seus representantes, bem como a autenticidade das informações fornecidas pelo cliente, inclusive mediante confrontação dessas informações com as disponíveis em bancos de dados de caráter público ou privado.
7Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo. (Incluído pela Lei nº 14.155, de 2021).
§ 2º-B. A pena prevista no § 2º-A deste artigo, considerada a relevância do resultado gravoso, aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o crime é praticado mediante a utilização de servidor mantido fora do território nacional. (Incluído pela Lei nº 14.155, de 2021