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A concessão da graça constitucional e o princípio da impessoalidade

Análise do decreto emanado do presidente da República frente ao direito administrativo e à jurisprudência do STF.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Atualizado às 14:47

O indulto individual concedido ao deputado Federal Daniel Lucio da Silveira em função da penalidade imposta pelo STF no âmbito da ação penal de 1.044 tem acalorado o ambiente jurídico e político brasileiro, discutindo sobre a constitucionalidade ou não do decreto presidencial.

A seguir, o singelo artigo visa sustentar pela constitucionalidade do ato presidencial com o devido acatamento de quem pensa em sentido contrário.

O decreto de 21/4/22 é a materialização do exercício da prerrogativa constitucionalmente concedida ao presidente da República nos termos do art. 84, inciso XII da Carta Magna. Assim, cortejar o respectivo decreto com o princípio da impessoalidade previsto no art. 37, caput, da CF/88 é considerar o ato presidencial vinculante.

Noutro giro, o ato presidencial em indultar individualmente algum jurisdicionado não está adstrito à teoria dos motivos determinantes, tendo em vista a citada prerrogativa decorrer exclusivamente do poder discricionário do chefe do Executivo Federal em virtude da livre conveniência e oportunidade.

Assim, a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello leciona a respeito da diferença do ato administrativo vinculado e discricionário, apontando com precisão a irrestrita obediência da norma e a liberalidade com base em critérios subjetivos dos respectivos atos, vejamos:

Atos vinculados seriam aqueles em que, por existir prévia e objetiva tipificação legal do único possível comportamento da Administração em face de situação igualmente prevista em termos de objetividade absoluta, a Administração, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma.

Atos "discricionários", pelo contrário, seriam os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles.

Nesta senda, explica o conspícuo professor:

A diferença nuclear entre ambos residiria em que nos primeiros a Administração não dispõe de liberdade alguma, posto que a lei já regulou antecipadamente em todos os aspectos o comportamento a ser adotado, enquanto nos segundos a disciplina legal deixa ao administrador certa liberdade para decidir-se em face das circunstâncias concretas do caso, impondo-lhe e simultaneamente facultando-lhe a utilização de critérios próprios para avaliar ou decidir quanto que lhe pareça ser o melhor meio de satisfazer o interesse público que a norma legal visa a realizar.

Logo, ante a luminosidade do ensinamento doutrinário acima, nota-se a prescindibilidade das razões adotadas pelo presidente da República para a concessão da graça constitucional.

Não por caso o STF na ocasião do julgamento no Tribunal Pleno da ADIn 5874-DF de relatoria do ministro Roberto Barroso, tendo como redator do Acórdão o ministro Alexandre de Moraes, ressaltou o ato discricionário do presidente da República em conceder ou não o indulto, com base nos próprios critérios e a devida extensão na sua aplicabilidade.

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL. INDULTO. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA (CF, ART. 84, XII) PARA DEFINIR SUA CONCESSÃO A PARTIR DE REQUISITOS E CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE. PODER JUDICIÁRIO APTO PARA ANALISAR A CONSTITUCIONALIDADE DA CONCESSÃO, SEM ADENTRAR NO MÉRITO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

JULGADA IMPROCEDENTE. 1. A Constituição Federal, visando, principalmente, a evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais. 2. Compete ao Presidente da República definir a concessão ou não do indulto, bem como seus requisitos e a extensão desse verdadeiro ato de clemência constitucional, a partir de critérios de conveniência e oportunidade. 3. A concessão de indulto não está vinculada à política criminal estabelecida pelo legislativo, tampouco adstrita à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal, muito menos ao prévio parecer consultivo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob pena de total esvaziamento do instituto, que configura tradicional mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes. 4. Possibilidade de o Poder Judiciário analisar somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, e não o mérito, que deve ser entendido como juízo de conveniência e oportunidade do Presidente da República, que poderá, entre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, escolher aquela que entender como a melhor para o interesse público no âmbito da Justiça Criminal. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada improcedente.

Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade, o STF aduziu a respeito da discricionariedade do ato presencial em exercitar a competência exclusiva consagrada pela CF/88.

Por conseguinte, a clemência constitucional está enraizada no arcabouço jurídico brasileiro deste a Constituição do Império de 1824 até a Constituição da República de 1988.

À guisa de citação, a seguir está as previsões do indulto do período referendado: Constituição Política do Império do Brazil de 1824 (art. 101, inciso VIII); Carta Republicana de 1891 (art. 48, 6º); Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 (art. 56, §3º); Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 (art. 74, "n"); Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 (art. 87, XIX); Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 (art. 83, XX); Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, com Emenda Constitucional 01 de 1969 (art. 1969 (art. 81, XXII); Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (art. 84, XII).

Malgrado a isto, em razão da carga valorativa de clemência do poder presidencial por meio do indulto ou graça, ecoa a devida observância da prevalência dos direitos humanos como princípio esculpido no inciso II do art. 4º da Constituição Federal.

Portanto, o decreto exarado pelo presidente da República é ato discricionário e, via de reflexo, constitucional em decorrência do exercício pleno conferido pela Lei Magna e referendado pelo STF, apesar do projeto de decreto Legislativo 105/22 de autoria do Senador Renan Calheiros requerendo seja sustado o indulto concedido pelo presidente da República.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 1044-DF. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdão, 22 de abril de 2022. Disponível https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6207102. 

BRASIL. Decreto de 21 de abril de 2022. Dispõe sobre a graça constitucional concedida ao deputado federal Daniel Lucio da Silveira. Diário Oficial da República Federativa do BRASIL. Poder Executivo, Brasília, DF, 21 de abril de 2022. Edição 75-D. Seção 1 - Extra D, pág. 01. Disponível: < https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-de-21-de-abril-de-2022-394545395>. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. 

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28º Ed. Editora Paulus, SP. 2011, pág. 430-431.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direito de Inconstitucionalidade 5874-DF. Relator: Ministro Roberto Barroso. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdão, 05 de nov. de 2020. Disponível< https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI5874votoAMfinal.PDF>.

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Rio de Janeiro, RJ. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. .

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891. Rio de Janeiro, RJ. Presidência da República. Disponível:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. 

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Rio de Janeiro, RJ. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. 

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937. Rio de Janeiro, RJ. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. 

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Rio de Janeiro, RJ. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. 

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1967. Brasília, DF. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. 

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1967, com Emenda Constitucional número 01 de 1969. Brasília, DF. Presidência da República. Disponível: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67emc69.htm#:~:text=Constitui%C3%A7%C3%A3o67emc69&text=Art%201%C2%BA%20%2D%20O%20Brasil%20%C3%A9,em%20seu%20 nome%20%C3%A9%20exercido.>.

Kleber dos Santos Vasconcelos

Kleber dos Santos Vasconcelos

Advogado do escritório Fernando Brasil & Vasconcelos Advogados. Pós graduando em Processo Civil.

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