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Possibilidade e alcance do uso do incidente de desconsideração de personalidade jurídica no âmbito recuperacional

Breve análise da recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Atualizado às 13:13

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A autonomia patrimonial, potencialmente o mais relevante princípio do direito societário, é uma técnica de segregação de riscos responsável em grande medida pelo estímulo da economia globalizada e pela atração de investimentos. Em razão dela, os bens, direitos e obrigações da pessoa jurídica não se confundem com os de seus sócios e administradores, possuindo cada ente, físico e jurídico, patrimônio individualizado e segregado. Isso significa que, via de regra, os credores da pessoa jurídica não podem cobrar diretamente dos sócios ou administradores, vez que a obrigação não foi constituída por eles de forma direta. Em igual sentido, a pessoa jurídica não pode ser executada por dívidas da pessoa física que dela detém participação societária.

Ocorre que a existência dessa autonomia de personalidade e de patrimônio igualmente abre fértil campo para práticas fraudulentas. As hipóteses são as mais amplas possíveis, não sendo incomum a utilização dessa ficção jurídica com a finalidade de ou desrespeitar a lei, ou fraudar credores, na contramão do escopo para o qual ela foi originalmente criada.

Para combater tais práticas, desenvolveu-se a teoria do disregard of legal entity ou lifiting the corporate veil, originalmente nos tribunais norte-americanos, introduzida à academia brasileira por intermédio de Rubens Requião. Segundo o autor, deparado com o abuso de direito e a fraude no uso da personalidade jurídica, caberia ao juiz competente indagar se deve "consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos"1.

Com base no referido preceito, a teoria passou a ser aplicada pelos tribunais pátrios, apenas sendo incorporada à legislação em 1990, com a entrada em vigor do CDC. Em 2002, o Código Civil trouxe permissivo geral, e muito mais aproximado à Doutrina da Disregard, sendo permitido o levantamento do véu societário em duas hipóteses: a. abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio da finalidade; e b. abuso da personalidade jurídica diante da confusão patrimonial. Em 2019, a Lei da Liberdade Econômica tornou mais claros os critérios para a desconsideração da personalidade jurídica, incluindo os parágrafos primeiro e segundo ao art. 50 do Código Civil.

O procedimento para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, IDPJ, por seu turno, ganhou rito próprio com a entrada em vigor do CPC de 2015, por meio do art. 133 e seguintes, podendo ser resumido da seguinte forma: I. o incidente será instaurado pela parte ou pelo MP, quando lhe couber intervir; II. sua instauração só é dispensada caso a parte pleiteie a desconsideração na petição inicial; III. o incidente é cabível em qualquer fase do processo de conhecimento, cumprimento de sentença e execução de título executivo extrajudicial; IV a instauração do incidente suspende o processo principal, devendo ser citado o sócio ou a pessoa jurídica para oferecer resposta e requerer provas; V. concluída a instrução, a questão será resolvida por decisão interlocutória.

Vê-se, pois, que a legislação em muito evoluiu, trazendo maior segurança jurídica e requisitos específicos para o uso desse ferramental que excepciona a regra de segregação patrimonial e limitação de responsabilidade.

Fazendo uso de tal técnica, em decisão bastante controversa proferida em setembro de 2021, o juiz da 3ª vara cível da comarca de Jundiaí, Marco Aurelio Stradiotto de Moraes Ribeiro Sampaio, manteve o deferimento do processamento de IDPJ no âmbito dos autos de recuperação judicial do Grupo Coroa, afastando as preliminares alegadas, bem como jugou parcialmente procedente a citada medida para o "fim de que figurem todos [os réus, à exceção de Ipanema,] como membros do grupo recuperacional".

Em outras palavras, o citado julgador não apenas suspendeu temporariamente a eficácia da personalidade jurídica, permitindo o acesso ao patrimônio dos sócios das devedoras, nos termos da teoria do disregard, como também estendeu os efeitos do processo recuperacional a todos os réus do Incidente.

O decisum, ainda, fixou honorários sucumbenciais ao administrador Judicial das recuperandas, longa manus do juízo, a quem, a rigor, ao menos no âmbito recuperacional, não caberia defender credores ou devedora, mas sim fiscalizar as atividades e garantir a idoneidade do processo2.  

A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ de São Paulo, por seu turno, em acórdão unânime prolatado no último dia 16 de março, confirmou a decisão de primeiro grau, apontando que o deslinde conferido busca "impor àqueles que desviam recursos ou se beneficiam de tais atos, a responsabilidade pelos prejuízos e dívidas decorrentes de tais práticas". Segundo Ricardo Negrão, relator do acórdão, "exige-se solução que preserve o interesse coletivo e se consagre a finalidade de preservação da atividade econômica de maneira organizada, finalidade que somente será atingida com a necessária integração das demais integrantes do grupo".

Além de reiterar os fundamentos abordados pelo juízo a quo, o acórdão deu novo enfoque à temática, trazendo como pedra angular para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica a possibilidade de realizar a consolidação substancial, agora legalmente contemplada pelo art. 69-J, da lei 11.101/2005. Além de fazer expressa menção à norma, apontou-se que, "inafastável a desconsideração determinada, segue a mesma sorte a ordem de reunião e emenda no pedido de recuperação judicial em trâmite sob a forma consolidada substancialmente". Ao final, arrematando a questão, afirmou-se ser necessária a "modificação do polo ativo da recuperação judicial atendendo-se à Lei de Regência".

Sem adentrar no mérito da questão, especialmente no que se refere ao preenchimento dos requisitos do art. 50, da codificação civil pátria, e ao mesmo tempo louvando o intuito das decisões de primeira e segunda instâncias, que inegavelmente buscam tutelar de forma eficiente e isonômica o direito dos credores, fato é que alguns aspectos de inequívoca relevância foram deixados de lado. Tratar-se-á de alguns deles.

O primeiro diz respeito à possibilidade de se realizar a consolidação substancial sem que a sociedade trazida ao processo tenha concordado em dele participar enquanto recuperanda. Se de um lado o juiz de primeira instância, respeitosamente, pareceu passar ao largo da temática, utilizando a analogia da aplicação de IDPJ para medidas falimentares, sem enfrentar as imensas diferenças entre ambos os procedimentos e as particularidades da medida recuperacional, o TJSP citou, en passant, o art. 69-J, da LREF, ignorando previsão expressa no sentido de que os devedores já devem estar em consolidação processual para que a substancial seja autorizada.

Ainda, parece ter havido questionável, e diz-se questionável por realmente se questionar, sem qualquer conclusão definitiva sobre o ponto, uso e extensão da técnica de desconsideração da personalidade jurídica, tendo ela ido muito além da penetração do véu. Segundo o desenvolvimento da doutrina do disregard, a desconsideração não busca desconstituir a autonomia patrimonial da pessoa física em relação à jurídica, nem mesmo transformar sociedade e sócios em um ente uno. Trata-se de suspensão temporária e pontual da eficácia da ficção jurídica, permitindo que o patrimônio dos sócios seja atingido.

No caso em apreço, todavia, além de permitir que os sócios tivessem seus patrimônios atingidos, estes foram chamados ao processo recuperacional, obrigados a formular plano, apresentar demonstração de viabilidade, laudo econômico-financeiro, relatórios contábeis, declaração de bens e demais documentos, se submeter a fiscalizações, poder ter suas falências decretadas, dentre inúmeros outros aspectos. E isso sem que a legislação recuperacional atual, recentemente analisada e alterada, tenha permitido essa possibilidade.

Ora, não se questionaria, ao menos não essa autora, a possibilidade de o incidente ter sido formulado no âmbito recuperacional, com desconsideração ampla da personalidade jurídica das devedoras, válida para todos os credores sujeitos à RJ, para que dela fizessem uso em medidas executivas ou de cobrança autônomas. Agora, trazer para processo recuperacional, com elevados custos e alta complexidade, partes que a ele não desejam se submeter parece, no mínimo, conclusão que demande amplo estudo, fundamentação e definição pormenorizada dos procedimentos a serem seguidos. E isso, todavia, não parece ter ocorrido no caso em comento.

O tema aqui abordado, inevitavelmente, demanda criteriosa e profunda análise, ainda a ser realizada.

_____________________

1 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (Disregard Doctrine). In. Revista dos Tribunais. v. 803. São Paulo: RT, 2002.   

2 Conforme precedentes do Superior Tribunal de Justiça, dos quais cita-se como exemplo o REsp 1759004/RS, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, julgado em dezembro de 2019.

Mayara Roth Isfer Osna

Mayara Roth Isfer Osna

Advogada em Curitiba, mestre em Direito Comercial pela USP, graduada em direito pela UFPR e em contabilidade pela FIPECAFI, Diretora Acadêmica do Centro de Mulheres na Reestruturação Empresarial.

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