O privilégio do credor fiscal no processo de recuperação judicial
A nova lei falimentar cria novas formas de parcelamento do crédito tributário e dilata prazos importantes para que o empresário-devedor possa saldar seu débito.
sexta-feira, 29 de abril de 2022
Atualizado às 13:43
A aceitação do plano de recuperação judicial pelos credores traz como consequência a próxima fase, ou seja, a apresentação das CNDs - Certidões Negativas de Débitos Tributários - relativamente a essa parte é preciso compreender que tal previsão durante muitos anos se mostrou ausente, na medida em que os tribunais superiores desconsideravam em grande parte a previsão constante no art. 57 da lei 11.101/05. Contudo, a legislação que instituiu tal previsão não se atentou ao grau de complexidade gerada para que o devedor em recuperação judicial apresentasse tais certidões, o que acarretou na dispensabilidade das certidões pelos tribunais.
Nesse quesito, para se tentar o cumprimento do dispositivo citado anteriormente, vem, o art. 68 da supracitada lei tentar delinear como seria feita a apresentação dessas certidões, facilitando, por conseguinte o acesso à essa por meio da criação do parcelamento tributário especial. Inicialmente o parcelamento especial ampliaria o prazo de apresentação e concederia maior benefício fiscal, estimulando o empresário a socorrer-se pela via da recuperação judicial. É preciso afirmar que a lei do parcelamento de maneira especificada foi criada tardiamente e prejudicou o acesso essencial aos créditos e as formas de parcelamento da dívida do devedor em recuperação judicial.
A experiência brasileira relativamente ao parcelamento tributário se demonstrou falha, vez que o legislador ao autorizar tal previsão não regulamentou corretamente a questão enfatizada, sendo assim, só em momento posterior houve a instituição da lei 13.043/14 que disciplinou especificamente sobre a questão tributária, apesar disso, muitos tribunais acabaram ainda sim, não aplicam o dispositivo da citada lei por acreditar que ainda que da ausência da apresentação da CND, não influenciaria no trâmite.
Desse jeito, se percebe que o crédito tributário não fica desamparado quando do deferimento da recuperação judicial, isso porque as execuções fiscais não são suspensas durante o processo de recuperação, caso o fisco queira antecipar a satisfação de seu crédito este poderá o fazer pela via da execução individual comum, diferentemente dos demais credores que não poderão executar o devedor na via comum.
Neste enquadramento, cabe aclarar que caso a CND fosse documento indispensável para concessão de recuperação judicial e o empresário-devedor não apresentasse e tivesse como consequência a convolação da recuperação judicial e falência, restaria o fisco em posição desfavorável em relação à categoria de recebimento e satisfação do crédito no juízo falimentar, mas poderia executar pela via individual. Nesse caso, garantir a recuperação judicial parece ser mais benéfico para todos os integrantes da relação empresarial, já que na realidade prática o crédito tributário é que o empresário-devedor deixar de pagar primeiro quando da instauração de uma crise econômico-financeira, isso ocorre em detrimento dos altos níveis de juros, correções e alto custo de transação, nesse sentido afirma Célio Gomes dos Santos Júnior.
A experiência comum revela que empresas em situação de crise econômica financeira sempre apresentam débitos tributários. É fato notório que o empresário ou sociedade empresária utiliza uma escala de preferências numa situação de crise econômico financeira, atrasando primeiro o pagamento dos tributos, em seguida os quirografários e, por último, os direitos trabalhistas, de sorte que, na prática, não haverá devedor em recuperação que não apresente débitos fiscais (SANTOS, 2010, p. 39).
Se faz interessante resguardar a possibilidade de a empresa conseguir usufruir da recuperação judicial, a proteção que a legislação passada e atual concede ao crédito tributário é superior a proteção dada aos demais créditos que restam à sorte da decisão do ente fiscal. É sabido que o crédito tributário é de suma importância para o ente estatal. Apesar disso, se considerarmos que o volume das dívidas de uma empresa e os altos níveis de juros decorrentes do crédito tributário observaremos que a maior parte das dívidas do empresário-devedor se dá em relação ao crédito tributário, e aqui desconsiderado os valores decorrentes das multas, considerando especialmente a obrigação tributária.
A posição de supervalorização do crédito tributário decorre da possibilidade de recebimento em primeiro lugar, tal outorga confere posição mais vantajosa ao fisco em relação aos demais créditos, vez que esse possui poder para vetar pontos específicos do plano de recuperação judicial, diante disso, caberia ao fisco em detrimento do princípio da preservação da empresa e da função social da empresa abrir mão de parcela de seus privilégios.
No que respeita ao acima exposto, durante a recuperação judicial o bem jurídico principal a ser tutelado e protegido é a manutenção do aparato da empresa como um todo, especialmente em respeito ao princípio da função social da empresa é manter o funcionamento desta para manutenção dos empregos que são gerados por ela. Aqui, existe a ausência de proteção constitucional, pois ao pensar nas execuções fiscais individuais que não são suspensas com o deferimento da recuperação judicial poderá ter atos de constrição patrimonial, tal como a penhora de bens que resultará em maior morosidade e impraticabilidade dos fundamentos que se propõe uma recuperação, restando o ativo alocado de maneira desarmoniosa.
Outro ponto a ser considerado perpassa a possibilidade de se insurgir diante de determinadas condições postas em acordo com os demais credores. O poder de vetar disposições do plano compreende na possibilidade de alocar o ativo da empresa de acordo com as pretensões da entidade estatal, em outras palavras, a faculdade apresentada no art. 73, inciso VI da lei 14.112/20 dispõe sobre a possibilidade do fisco requerer a convolação da recuperação judicial em falência mediante a sua própria vontade, o resultado de tal requerimento é a invalidação dos atos até então intentados e executados pelo empresário e administrador judicial sobre a chancela do juiz.
Haveria, portanto, um receio do empresário em ter sua recuperação judicial convolada em falência em razão da insuficiência de recursos para pagamento do crédito fiscal, é importante mencionar que na maioria dos casos o maior detentor de valores a serem pagos na classe de credores é a entidade tributária, na pessoa da Fazenda Pública.
Nesse contexto, as disposições constantes no artigo em epígrafe fomentam a ineficiência do modelo de recuperação, isso porque o fisco poderá se opor as disposições do plano de recuperação após a sua apresentação ou antecipadamente. A Fazenda Pública ainda que se tenha a aprovação do plano de recuperação judicial seguindo o quórum previsto em lei, ou ainda que admitido pela via do cram down não sofrerá com esses impactos. Em segundo lugar, há de se ressaltar o esquema da alocação efetiva do ativa que com a intervenção do fisco na aprovação poderá sofrer com a perda do interesse de possíveis investidores ante a chance de ocorrer a invalidade de todos esses atos, causando, dessa forma, receito de prejuízos no momento de promover investimentos, acarretando em desincentivo de possíveis investidores.
A lei 14.112/2020 que promoveu alteração do art. 10-A da lei 10.522/02 no tocante a forma de parcelamento para os devedores em recuperação judicial, ofereceu formas alternativas de parcelamento e dilatou as prestações do parcelamento, passando 84 vezes para 120 vezes, entretanto, apesar de tal ampliação não se demonstra tão eficiente para o devedor, uma vez que beneficiou tão somente o fisco e não concedeu outros benefícios interessantes ao devedor em recuperação judicial, que apesar de reduzir a alíquota incidente nos meses em que decorrer o parcelamento não apresenta alta expressividade para manutenção da empresa durante a recuperação. O ponto central dessa discussão é o não prejuízo do crédito tributário, isto é, a proteção é relativamente a um crédito em específico da Fazenda Pública e não a manutenção da empresa em si.
O parcelamento tributário concedido pela nova legislação, especificamente na hipótese do art. 73, § 3º, há de considerar a possibilidade da empresa que tenta se recuperar não conseguir, isso ocorre porque se ao tempo do financiamento oferecido pelo ente tributário não restarem bens aptos a garantir a execução, poderá o fisco simplesmente convolar a recuperação judicial em falência, nesse ponto cabe aclarar que a hipótese em comento refere-se a art. 73, § 3º é "Considera-se substancial a liquidação quando não forem reservados bens, direitos ou projeção de fluxo de caixa futuro suficientes à manutenção da atividade econômica para fins de cumprimento de suas obrigações, facultada a realização de perícia específica para essa finalidade.(NR)" (BRASIL, 2020), dá convolação da recuperação em falência os riscos e eventuais danos não são maximizados pelo devedor-empresário.
Importa ressaltar que, existe insegurança jurídica em relação a essa forma de parcelamento, restando o empresário adequar-se às necessidades impostas pelo fisco, a espécie de financiamento que é permitida em lei nesta modalidade não confere a segurança necessária para que prováveis investidores aportem recursos na empresa em processo de recuperação, sob pena de ter a falência desta decretada, restando a esses credores habilitarem o seu crédito no juízo falimentar, correndo os riscos de não conseguir receber a integralidade do valor que foi investido.
Similarmente à hipótese do parcelamento ser feito em mais prestações, a legislação introduziu ainda o art. 10-C na lei 10.522/02, que regula a proposta da transação tributária, a legislação já previa a hipótese de parcelamento, todavia, com a positivação da lei 14.112/20 como vimos anteriormente houve a introdução de novas fontes de parcelamento, desde a lei 11.101/05 já se tinha a possibilidade de parcelamento específico para os devedores em recuperação judicial que poderia saldar suas dívidas frente a Fazenda Pública negociando o crédito individualmente com a própria entidade tributária fiscal.
Nesse ínterim, tal dispositivo representa uma segunda forma de parcelamento tributário, alternativamente à disposição do art. 10-A do referido diploma, apesar do dispositivo ampliar o prazo para que o devedor quite seu respectivo crédito, com redução de até setenta por cento, da leitura do escrito não se percebe a conduta ativa de cooperação da Fazenda Pública, ainda nessa seguimento, cabe dizer que ao fazer o exame de conveniência e oportunidade concede à administração pública maior liberdade de ação ao proferir o seu respectivo ato, partindo do princípio que os atos proferidos pela administração pública são dotados de presunção de veracidade. No juízo de conveniência e oportunidade a administração pública possui maior liberdade para atuar, estando amparada pela discricionariedade conferida a ela por lei, ou seja, estaria o empresário ou sociedade empresária sujeitos a decisão surpresa da administração pública.
Ainda sobre a hipótese levantada, caberá aos tribunais superiores rever a necessidade de se exigir a CND visto que a previsão do artigo 10-C reforçou tal exigência, é manifesto que na realidade prática os tribunais vêm se posicionando no sentido da dispensabilidade da apresentação da CND, no entanto caberá a análise pormenorizada da jurisprudência neste sentido, posto que não seria preciso a convolação em falência pura e simplesmente pela inobservância da regra do art. 57 da lei 11.101/05 que não foi revogado pela introdução da lei 14/11/20.
Em suma, se observa que a imposição dos arts. 10-A e 10-C conferem ainda mais poderes ao credor fiscal, que poderá proteger seu crédito em diversas formas, tanto em relação a espécie de parcelamento que será concedido, como na forma de decidir acerca do parcelamento já que poderá analisá-lo pela via discricionária, julgando a conveniência e oportunidade do ente. Dessa maneira, o credor tributário a partir da reforma legislativa obteve maior espaço para o recebimento de seu crédito, sendo assim, os níveis de prejuízo fiscal foram reduzidos significativamente, mas em relação ao nível de colaboração dele com a empresa em recuperação foi minimizado substancialmente, não atendendo aos princípios básicos do direito falimentar.