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A justiça social e seu financiamento: uma reflexão, baseada na obra O Poderoso Chefão, de Mario Puzo

Reflexão sobre os custos e o financiamento da justiça social, utilizando como mote a obra O Poderoso Chefão, de Mario Puzo.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Atualizado em 16 de maio de 2022 09:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Introdução

Sempre que se pensa em justiça social, surgem ideias de serviços públicos de qualidade, gratuitos, que atendam de forma satisfatória a população e não deixem a desejar em aspectos como a saúde, a educação, o lazer e o bem-estar social e econômico da comunidade. Entretanto, é comum que, ao refletir sobre tais aspectos da vida em sociedade, o cidadão comum não consiga relacionar essas incumbências do Estado a alguma ideia concreta de financiamento ou proveniência de recursos para tanto. Nesse contexto, o estudo dos fundamentos do Direito Financeiro se faz essencial para a compreensão da realidade do Estado e o financiamento de tais aspectos da vida em sociedade, visto que, atualmente, muito se discute sobre a garantia de direitos fundamentais e assistência ao cidadão, mas pouco se debate sobre a origem dos recursos para tanto, bem como sua arrecadação e gestão.

Segundo o professor Marcus Abraham, autor de livros sobre o assunto, "arrecadar com justiça, administrar com zelo e gastar com sabedoria são os comandos que subjazem às normas do Direito Financeiro"1, sendo, portanto, a administração dos recursos do Estado um fator primordial para a efetividade de certos direitos e garantias previstos na Constituição. A transformação da justiça fiscal em justiça social não se dá de forma automática, devendo, outrossim, ser analisada sob a ótica da efetividade da gestão de recursos, sua correta distribuição e responsabilidade dos administradores para com os administrados e para com a sociedade como um todo.

Sob tal perspectiva, pode-se observar também uma relação interpretativa entre a obra O Poderoso Chefão, de Mario Puzo, e os aspectos de justiça fiscal e social relacionados ao Direito Financeiro e ao Estado Democrático de Direito, tendo em vista que, por descrever a formação de uma espécie de "estado paralelo" dedicado à garantia de direitos e assistência aos cidadãos não alcançados de forma satisfatória pelo Governo dos Estados Unidos no conturbado período da Segunda Guerra Mundial, tal texto literário aborda aspectos essenciais da arrecadação, gestão e aplicação de recursos financeiros relacionadas ao "bem-comum" de uma comunidade, tendo em Vito Corleone, chefe da família Corleone, a principal figura representativa "do Estado", em seu poder de arrecadação e benevolência de distribuição.

Na análise comparada da obra de Mario Puzo, pode-se entrever a associação entre a máfia italiana na cidade de Nova York no ano de 1940 e o vazio de poder deixado pelo Governo dos Estados Unidos ao não atender de maneira satisfatória as demandas de alguns de seus cidadãos, que se viram marginalizados e desassistidos pelo Estado na conturbada época de crises e guerras em que viviam, tendo sido redirecionados à proteção da família Corleone, vislumbrando nela a possibilidade e segurança do poder, influência, assistência e direitos necessários a sua existência.

Logo, a discussão sobre a correta administração dos recursos do Estado, que são arrecadados com o intuito de serem aplicados, de maneira competente, na satisfação das necessidades públicas, destaca-se como indispensável à compreensão do Estado moderno e suas mais recentes atribuições sociais, advindas do constitucionalismo, e expressas na Constituição Cidadã de 1988, que reflete valores como o direito de acesso à saúde pública, educação, erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, indicados de maneira elucidativa em seu preâmbulo:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil".2

Nessa acepção se dá o objetivo do presente artigo, ao estabelecer elementos comparativos entre a obra de ficção literária baseada na atuação da máfia italiana em Nova York entre os anos de 1945-1955, os aspectos essenciais do Direito Financeiro e o financiamento da justiça social na realidade brasileira, através do método comparativo.

2. O financiamento da justiça social

O Estado de Direito é um instrumento que, através da identificação política das necessidades individuais e coletivas, utiliza seus recursos financeiros advindos do patrimônio do próprio Estado e dos cidadãos para realizar a atividade financeira, cujo fim é a satisfação das necessidades públicas. Nesse sentido, o Direito Financeiro trata da arrecadação, gestão e aplicação desses recursos. Nas palavras de Platão, "o Estado nasce das necessidades humanas"3, sendo este, portanto, um mero instrumento da sociedade, cuja finalidade é a manutenção da ordem social e o desenvolvimento da comunidade, utilizando o Direito. As finanças públicas, em geral, são os instrumentos políticos, econômicos e jurídicos de captação de recursos financeiros para o Estado (receita pública), sua administração (gestão e controle) e sua aplicação (despesas públicas) nas necessidades públicas (ou de interesse coletivo, definidas politicamente)4.

Nesse viés, tem-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, viu-se construída em meio à ideais de justiça, realização de direitos fundamentais e garantias de desenvolvimento econômico e social, sendo condicionada a atividade do intérprete à aplicação de regras e princípios que refletem tais preceitos. Dessa maneira, a atividade financeira do Estado brasileiro encontra seus limites na própria Constituição e nas normas infraconstitucionais, através de fundamentos como a soberania da nação, a valorização do trabalho e da livre-iniciativa, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e a cidadania, elencados no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, sendo voltada a políticas assistenciais e garantidoras de tais direitos.

2.1 A arrecadação financeira dos Corleone e a rede de proteção dos amigos da família, no livro de Mario Puzo

Na análise comparativa da realidade brasileira com a obra O Poderoso Chefão, de Mario Puzo567, tem-se o "sistema tributário" da família Corleone, que realiza, através da arrecadação de certa porcentagem dos ganhos em seus mais diversos postos de proteção à comércios, bancas, pontos de vendas e de negociação, uma verdadeira coleta das contribuições monetárias dos "protegidos" da família. Tais contribuições serão revertidas não apenas em riqueza para a família Corleone - posto que esse não é o objetivo principal de tal atividade -, mas em poder político e influência sobre os mais diversos setores da sociedade, que responderão com satisfação aos interesses da família quando solicitados para tanto, em troca de sua proteção e algumas assistências e direitos garantidos.

Ao utilizar da devida licença poética ou interpretativa, o presente artigo busca analisar situações diferentes, mas que se assemelham teleologicamente, e demonstrar semelhanças entre tais arrecadações, ao realizar um comparativo de suas formas de cobrança, administração de recursos e efeitos sobre a população.

À vista disso, tem-se que a família Corleone fornece um senso de justiça, por exemplo, ao lidar com a demanda de Amerigo Bonasera, amigo da família que teve sua filha violentada por dois jovens na cidade de Nova York, que ficaram impunes após recorrerem na Justiça americana por falta de provas e utilizado da influência política e financeira de seus pais para não serem presos. Em outro caso, um amigo da família, Nazorine, também procura o Padrinho para obter um visto americano para o noivo de sua filha, que estava prestes a ser deportado à Itália por não ter sua situação regularizada junto ao Governo e estava em dificuldades por ser um ex-soldado italiano. Nessa situação, a família Corleone, através de sua influência política e contatos no setor de imigração do país, fornece a tão sonhada cidadania americana a um italiano que teria tal privilégio negado, não fosse a sua interferência.

Don Vito Corleone era um homem a quem todos recorriam em busca de auxílio, e quem o fizesse jamais se desapontava. Ele não fazia promessas vazias nem apresentava a desculpa covarde de que suas mãos estavam amarradas por forças mais poderosas do que ele mesmo. Ele não precisava ser amigo da pessoa, nem esta precisava ter meios para pagar-lhe o favor recebido. Apenas uma coisa era necessária. Que a pessoa, a própria pessoa, proclamasse sua amizade. Então, não importava quão pobre ou impotente fosse o suplicante. Don Corleone se encarregaria entusiasticamente de resolver-lhe os problemas. E não permitiria que algo impedisse a solução do infortúnio desse indivíduo.8

Dessa forma, através de inúmeros favores, concessões, benefícios e auxílios, a família Corleone se firma como uma espécie de estado paralelo, que realiza as funções que o Estado falha em realizar, e transfere para si a confiança e o respeito do cidadão devidos ao Estado, juntamente com a sua capacidade contributiva.

2.2 A confiança no Estado, o estado paralelo e a realidade brasileira

Nesse contexto, não é difícil compreender o caminho cognitivo de transferência de tal confiança do Estado para algum representante do estado paralelo: para as famílias em necessidade, relatadas no livro de Mario Puzo, o Estado tem falhado com elas inúmeras vezes, enquanto a família Corleone sempre esteve presente e satisfez suas necessidades, contanto que elas contribuam com apenas um pouco dos seus ganhos e sempre estejam à disposição para os negócios da família, se forem solicitadas.

Destarte, evidencia-se a importância da educação financeira e da consciência do cidadão sobre os processos necessários à efetivação das assistências, garantias e direitos devidos a ele pelo Estado, para que se possa vivenciar uma cidadania digna e consciente de seus direitos e deveres, ciente da atividade financeira do Estado e capaz de observar a gerência e aplicação dos recursos financeiros atribuídos a ele para a consecução do bem comum.

3 Considerações finais

A justiça social, a justiça fiscal e a atividade financeira do Estado são objetos de estudo do Direito Financeiro e Tributário que representam a profunda relação entre o bem comum da sociedade, as atribuições do Estado e o seu financiamento. Nesse contexto, a educação financeira se evidencia de essencial importância para a efetivação da cidadania, pois o cidadão, consciente dos processos de funcionamento do Estado em que vive, será melhor capacitado a observar, cobrar e fiscalizar de maneira eficiente a atuação do Governo.

Dessa forma, busca-se incentivar a quebra do paradigma de desconfiança no Estado, visando equilibrar a relação entre este e o cidadão, fortalecendo sua comunicação e compreensão, com o fim de, cada vez mais, conseguir aproximar o indivíduo marginalizado da atuação concreta do Estado e distanciá-lo da realidade dos mais diversos estados paralelos que surgem, ao longo da História, para ocupar o espaço vazio deixado pela inoperância do Governo e inefetividade de suas medidas.

 __________

ABRAHAM, Marcus. Receitas tributárias e direitos fundamentais. Curso de direito financeiro brasileiro. 5 ed, rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 12.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Secretaria de Editoração e Publicações, 2016.

PLATÃO; tradução de Leonel Vallandro. A República. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, p. 57.

MENDES, Gilmar Ferreira. Tributação, finanças públicas e controle da atividade financeira na Constituição Federal de 1988. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017. cap. 11, p. 1254-1295.

O Poderoso Chefão. Direção de Francis Ford Coppola. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1972. 1 DVD (175 min).

6 O Poderoso Chefão Parte II. Direção de Francis Ford Coppola. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1975. 1 DVD (200 min).

7 O Poderoso Chefão Parte III. Direção de Francis Ford Coppola. Estados Unidos: Paramount Pictures, 1990. 1 DVD (162 min).

PUZO, Mario; tradução de Carlos Nayfeld. O poderoso chefão. 42 ed. Rio de Janeiro: Record, 2019, p. 13.

Luíza Leite Vieira

Luíza Leite Vieira

Acadêmica de Direito - UNIFACISA Estagiária em uma das varas criminais do Tribunal de Justiça da Paraíba

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