MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Da posposição do sujeito sintático nos textos jurídicos

Da posposição do sujeito sintático nos textos jurídicos

A posição do sujeito em relação ao predicado é um dos tópicos em que a gramática normativa costuma ser bastante permissiva, mas que pode ser ajustado para tornar o texto mais claro e mais limpo.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Atualizado em 27 de abril de 2022 14:50

(Imagem: Arte Migalhas)

Sabe-se que talvez o maior dos objetivos de qualquer texto é a clareza, a concisão, o ir direto ao ponto. Além disso, o português é uma língua em que o sujeito naturalmente vem anteposto ao verbo, conquanto a sua posposição seja possível. Todavia, toda alteração na ordem natural da sentença modifica a sua interpretação em algum plano. Quais são essas modificações no caso da posposição do sujeito? Em quais casos a posposição do sujeito é permitida pela norma-padrão da língua portuguesa?

Por ser o português uma língua em que o sujeito naturalmente aparece antes do verbo, o leitor já espera que isso aconteça. Além disso, o sujeito sintático da oração serve-lhe de tópico, ou seja, esse é inicialmente o foco da sentença. Quando o sujeito é deslocado para outra posição, ele continua a figurar como foco, porém passa a haver um certo suspense na interpretação, porque o leitor demorará a saber qual é o tópico da frase.

Por exemplo, em "Dois garotos entraram na sala", o leitor de imediato nota que "dois garotos" é o sujeito, ou seja, é o tópico da sentença, já que aparece em seu começo. Entretanto, em "Entraram na sala dois garotos", o leitor também nota que "dois garotos" é o sujeito, mas o percebe tardiamente, uma vez que ele não aparece logo no início da sentença. As duas frases de que me vali para exemplificar esse fato são perfeitamente aceitas e possíveis no português, ou seja, suas interpretações são naturais e qualquer falante conseguiria entendê-las sem muito esforço. Contudo, haverá casos em que a posposição do sujeito torna a frase artificial, pouco natural?

Na verdade, ao consultar os melhores gramáticos da língua portuguesa, percebemos que não há praticamente nenhum impedimento quanto ao deslocamento do sujeito da oração para qualquer posição pós-verbal: "Na verdade, a ordem indireta, no caso da colocação do sujeito, é um recurso linguístico amplamente utilizado" (HAUY, 2015, 1070)¹. No entanto, qualquer falante pode notar que há sentenças com sujeito posposto que soam mais naturais que outras.

Vejam-se estes dois exemplos: (a) "Chegaram dois alunos novos hoje" e (b) "Dormiram duas crianças na sala". Enquanto o exemplo (a) parece natural - ainda que o sujeito esteja posposto -, o exemplo (b) soa estranho, isto é, não se mostra tão natural a posposição do sujeito naquele caso. Eu, particularmente, acredito que a sentença (b) só caberia em contextos literários, em narrações, em textos com maior liberdade poética; a sentença (a), entretanto, parece normal a todo contexto, até mesmo aquele em que se empregue linguagem mais simples.

A partir desses dados, sabemos que nem toda posposição do sujeito, ainda que seja correta do ponto de vista normativo, favorece a compreensão e a interpretação do texto. Então, em quais casos essa posposição é natural?

Antes de mais, devemos notar algumas considerações gerais: a primeira delas é que a posposição do sujeito formado por pronome reto² jamais será natural: "Chegamos nós à sala" (frase estranha), "Chegou um aluno à sala" (frase natural). Outro fato é que os pronomes relativos e indefinidos em orações substantivas e adjetivas sempre aparecerão no início da oração, independentemente da função que exerçam (que pode ser de sujeito, de objeto, etc.): "[...] ao responder ao quarto quesito, que não absolve o acusado", "o acusado não compreende qual é a gravidade do problema".

Entendido esse fato, devemos compreender que haverá situações em que a posposição soará mais natural. Quando o verbo da oração está associado à partícula apassivadora se, o sujeito se pospõe naturalmente: "Vendem-se dois imóveis nesta região", "Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena".

Quando o sujeito é uma oração inteira, também é natural que ele fique ao fim do período. Na verdade, neste caso, a anteposição do sujeito soa, de certo modo, estranha: "tem-se que a prisão preventiva somente poderá ser decretada como garantia da ordem pública", "É certo que a gravidade do delito e as consequências por ele provocadas não podem ser afastadas na apreciação da prisão cautelar", "Nesse quadro, convém suscitar relevante análise feita pelo membro do Ministério Público do estado de Mato Grosso".

Sujeitos de particípios verbais também são naturalmente pospostos. "Exposto o quesito absolutório, foi negado pelos jurados". Inclusive, é amplamente empregada no meio jurídico a forma "Posto isso" para retomar a ideia de um parágrafo anterior: "Posto isso, julgo improcedente o pedido". Nesse caso, o "isso" funciona como sujeito sintático de "posto", e "posto isso" equivale semanticamente a uma conjunção conclusiva³.

Por fim, com alguns verbos específicos, a posposição do sujeito é natural. Isso acontece principalmente com verbos como existir, aparecer, ocorrer, surgir, chegar, correr, cair, restar, entrar e com verbos chamados verbos-leves ou verbos suporte4 (dar, levar, tomar, fazer, pôr, trazer). Exemplos: "Caso exista nos autos prévia fixação de honorários advocatícios pelas instâncias de origem [...]", "Ademais, devem-se levar em conta as consequências nefastas para a assistência à saúde acarretados pela contenção de despesas".

Apesar dos exemplos numerosos desses casos de posposição do sujeito, há importante consideração a ser tecida sobre essa ocorrência. Os verbos suporte e as construções com eles elaboradas geralmente são consideradas vícios de linguagem, justamente por mostrarem pobreza vocabular. Nesse grupo, enquadram-se construções do tipo dar uma saidinha, levar em consideração, trazer à tona e as próprias construções originárias com esses verbos (como fazer frases, tomar bebida, dar ajuda, etc.). Eles, na linguagem jurídica - eminentemente cuidada -, devem ser evitados.

Sobre a expressão posto isso, há diversos exemplos de construções correlatas e igualmente significativas no meio jurídico: isto posto, isso posto, posto isto. Na verdade, não há gramático que afirme estar correto um ou outro; isso significa que as quatro possibilidades existem e são perfeitamente aceitas para fazer uma retomada conclusiva.

Não obstante, a partir do arcabouço teórico que podemos encontrar, parece haver certa preferência pela forma posto isso. O sujeito deve ficar depois do particípio, porque esse é o natural quando o núcleo da oração é um particípio absoluto; e isso é a forma eleita para fazer retomadas em geral, enquanto isto antecipa aquilo que ainda será enunciado. No entanto, reitero não haver lição normativa que condene qualquer uma das quatro formas; aliás, além de alguns pesquisadores afirmarem que essa distinção desaparecendo no português, já é prática comum no meio jurídico o emprego de isto posto.

Portanto, qualquer um que se preste a escrever um texto no meio jurídico deve contrapor a norma-padrão do português àquilo que parece mais natural e linear na língua. A posposição do sujeito é um exemplo de regra bastante aberta na norma-padrão, mas extremamente restrita na fala popular, de sorte que isso possa manipular significativamente a fluidez do texto. Assim, deve preocupar-se o autor com que o texto, além de informativo, seja fluido, direto e conciso, e a principal ferramenta que licencia essa fluidez é a gramática.

_______

1 Sobre este tópico, consultem-se também Evanildo Bechara (2014, p. 30-31), Celso Cunha (2016, p. 177-180) e Rocha Lima (2019, p. 290-292).

2 São pronomes retos eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles e elas. Incluímos, neste caso, os pronomes você e vocês, ainda que sejam registrados na gramática normativa como pronomes de tratamento.

3 Portanto, logo, assim, etc.

Para alguns gramáticos, verbos suporte são verbos vazios de significado; são uma espécie de verbo curinga, que pode assumir vários significados diferentes.

_______

BECHARA, Evanildo. Lições de português pela análise sintática. 19.ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

COSTA, José Maria da. Manual de redação jurídica. 6.ª ed. Ribeirão Preto: Migalhas, 2017.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Lexicon, 2016.

HAUY, Amini Boainain. Gramática da Língua Portuguesa Padrão: Com Comentários e Exemplários: Redigida Conforme o Novo Acordo Ortográfico. 1.ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

LIMA, Paola Goussain de Souza. As inversões sujeito-verbo e a concordância verbal: um estudo sobre a influência da posposição do sujeito em gêneros escritos de imprensa do português brasileiro. 2011. 130 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 2011. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/86536.

LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 55.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.

Roberto Gandulfo

Roberto Gandulfo

Professor de Língua Portuguesa, revisor de textos e pesquisador em Linguística.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca