Crescimento desordenado do universo jurídico e suas consequências - Na física não é assim
Existem dois planos externos, que formam dois universos paralelos, o da doutrina e da jurisprudência independentes. Ou seja, parte da doutrina e parte da jurisprudência mostram encontrar-se totalmente desligadas da ordem jurídica que deveria estar constituída.
quarta-feira, 27 de abril de 2022
Atualizado às 07:37
De acordo com a física o universo se expande a uma velocidade extremamente elevada, resultando que as distâncias espaciais aumentam tão rapidamente, de maneira a que a luz de galáxias distantes nunca chega até nós. E esse fato não é superado pelo recurso aos mais poderosos telescópios à disposição dos pesquisadores1.
Uma ilustração desse fenômeno, conforme a referência acima, nos mostra o universo na forma de um cone com o vértice cortado, voltado para baixo, a partir de um dado momento da história do observador, muito mais além no tempo do que a data do conhecido big bang. Voltando atrás teoricamente nessa história me arrisco a afirmar que o vértice original desse cone seria um ponto milimétrico, situado no vácuo absoluto a cerca de 14 bilhões de anos luz. Nesse cenário, a partir da famosa explosão, a matéria foi criada e com ela o universo que imediatamente começou a se expandir a uma velocidade espantosa, o que acontecerá sempre até o fim dos tempos, se ele virá.
Se o universo é infinito, como se afirma, não me perguntem como ele cresce segundo uma razão inflacionaria (que alarga constantemente a boca do referido cone, o qual tem a forma de uma tuba de tamanho infinito), crescimento que somente poderia acontecer pela ocupação de uma área a ele externa, em todas as direções, correspondente essa área externa a um vazio absoluto, talvez o mesmo das épocas primevas.
No universo físico está inserido o horizonte de eventos do observador, restando a maior parte fora do seu alcance. Esse horizonte tem a forma de uma taça, situada na parte inferior do cone referido acima e que se torna proporcionalmente menor na medida em que o universo se expande cada vez mais. O que se pode ver sempre será proporcionalmente muito menos do que o total crescente do universo.
Olhando agora para o direito, existiria em tese um universo também sistematicamente organizado, especialmente quando se cuida dos ordenamentos jurídicos filiados ao direito romano-germânico, mais certinho do que o da common law. Mas, contrariamente, tem se notado um crescimento normativo sistematicamente desordenado (um paradoxo proposital), resultante de um processo caótico determinado pelos legisladores os quais, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, não se resumem às casas do Congresso, dos legislativos estaduais e municipais, uma vez que é extrapolado para a Presidência da República e para os governos dos Estados e Municípios, se espraiando por toda uma imensa gama de agentes dotados do poder legislativo lato senso, a partir dos ministérios, das secretarias de governo, das agências reguladoras e por aí segue.
Dessa forma, revela-se o direito normativo fático como um universo absolutamente irregular na sua forma, avançando sobre a fronteira externa, praticamente na ausência de quaisquer regras estáveis, mais parecendo rabiscos de um louco sobre uma tela, sem qualquer parecença com um sistema. Trata-se da negação patente do modelo teórico, que seria formado por uma pirâmide escalonada, a qual deveria estar construída em bases progressivas segundo os princípios gerais de direito, da constituição federal, das leis e do regulamento, encontrando-se, portanto, em perfeita harmonia.
Fatores que se destacam em quase todo o processo legislativo e que distorcem o modelo teórico mencionado - não expostos aqui em ordem de importância - são conteúdos normativos ilegais (frequentemente por inconstitucionalidade), a ausência de critérios jurídicos adequados, a falta de qualidade das normas promulgadas, a captura do legislador em favor de uma clientela espúria (lobbies factuais), e muitos outros. Não que tal prática seja apanágio brasileiro, pois existe também pelo mundo afora, mas que nós exageramos bastante, exageramos, sendo essa é uma verdade ingrata, digna de um registro no Guiness.
No tocante ao controle da constitucionalidade isso ocorre de forma extremamente imperfeita no plano interno do Congresso, localizado nas comissões pertinentes, mais uma vez presente uma captura em níveis escandalosamente elevados. Essa faceta decorre do apetite pantagruélico dos legisladores individualmente considerados, que trocam Leis por cargos para si mesmos e para a imensa trupe que os acompanha nesse circo, cujo mestre de cerimônias nem fica vermelho quando trata os frequentadores de respeitável público, que é privado e não é respeitável.
Mas existem dois planos externos, que formam dois universos paralelos, o da doutrina e da jurisprudência independentes. Ou seja, parte da doutrina e parte da jurisprudência mostram encontrar-se totalmente desligadas da ordem jurídica que deveria estar constituída exclusivamente dentro do universo único e nem somente principal, tamanho é o seu afastamento do modelo constitucionalmente erigido, que com ele não apresentam qualquer similitude.
O descasamento nos casos acima entre o direito e essa doutrina e jurisprudência fortuitas é tão acentuado que outra figura apta as explicar poderia corresponder a cometas ou a asteroides advindos de uma área externa infinitamente distante e anômala do universo jurídico, que nele penetram e se chocam com suas estruturas, causando grande estrago que, se um dia chegar a ser do tamanho daquele que caiu na terra há 65 milhões de anos toda a vida do direito será extinta. Observe-se não se cuidar aqui de um processo disruptivo, que de alguma forma nasce no próprio sistema jurídico, causando uma nova estrutura. É um processo autônomo, sem genealogia conhecida, muito mais acentuada essa característica do que a desconhecida genealogia de Melquisedeque, Rei da Salém, a quem o patriarca Abrão honrou.
Tal importação de conceitos externos ao modelo jurídico constitucionalmente constituído é uma anomalia que não se apresenta no mundo da física, esse racional e regrado na sua estrutura. No universo físico não existe sequer microscópico grão de poeira na fronteira externa, a qual jamais é invadida, portanto, por corpos estranhos, excluída aqui a ideia de universos paralelos contemporâneos entre si. Portanto, a sua nota principal é a de organização estruturada, em crescimento contínuo, que pelo bem maior do sistema pode causar destruição de alguns dos seus componentes, sejam satélites, planetas, estrelas ou galáxias, fato que poderíamos aproximar da falência de empresas que não apresentam a mínima sustentabilidade, afastadas por isso mesmo dos processos de recuperação judicial.
Nesse universo jurídico estruturalmente autônomo o ilícito deixa de ser ilícito; o crime deixa de ser crime; o consumidor é toda pessoa natural ou jurídica considerada como coitadinho pelo julgador; as normas se transformam em conselhos não seguidos pelo destinatário; os contratos passam a ser apenas cartas de intenção sem criar responsabilidades; as sociedades são tomadas como ajuntamentos livres sem geração de direitos, obrigações e responsabilidades; a boa-fé objetiva é tão somente um adjetivo nas relações jurídicas; os títulos estão em descrédito; a taxa de juros é sempre a média; a recuperação judicial é uma dívida da sociedade civil em benefício do titular da empresa inadimplente; as normas realizam congressos de congraçamento, dialogando entre si; a arbitragem é instituto judicial; a certeza e a segurança jurídicas são luxos supérfluos; os seguros são dívidas das seguradoras; para que haja adimplemento contratual eficaz basta ser parcial, etc., etc., etc.
É claro que em nada ajuda nesse quadro pernicioso a permissão para o funcionamento de centenas de faculdades de direito por todo o país, despidas de bom corpo docente e discente, formando bacharéis paupérrimos no manejo dos institutos jurídicos, boa parte deles que não alcança a aprovação pela OAB. Muitos, no entanto, superam esse degrau ajudados por cursinhos especializados na superação de obstáculos, aumentando assim o leque de ignorantes do direito. Rábulas, no fundo.
Ao fim e ao cabo instala-se um sistema de seleção adversa, tornada uma realidade amarga nesse universo jurídico, que o constrói sob o comando do poder econômico, podendo mais quem mais pode pagar com um resultado - que espanto! - que toma um sentido contrário em relação à opção pelo coitadismo. Isso porque os fundadores dessa má filosofia jurídica não sabem ou se recusam a aceitar (o que é muito mais grave) que a economia tem leis despidas de emoção, frias, calculistas e imortais. Uma vez ineficaz o voluntarismo trazido por esses astros estranhos, o universo jurídico se transforma quando muito tão somente em poesia, desfazendo-se na escuridão profunda de um gélido buraco negro.
Desanimado com esse quadro, penso em fazer uma viagem para o passado, já que o futuro é incerto, já disse algum sábio. Somente preciso identificar quando foi vivido nesse passado uma prática jurídica mais colada ao bom direito. Assim sendo, seguirei para o meu quintal a fim de encontrar um buraco de minhoca para realizar tal viagem, conforme aprendi com Stephen Hawking. Não pode ser um buraco de minhoca raso porque nele entrarei e sairei na mesma hora. É necessário um buraco profundo, com uma curva em looping, como numa roda gigante, terminando atrás do local por onde nele entrei, ou seja, no passado. Preciso apenas calibrar o raio do looping para poder alcançar uma época identificada como juridicamente melhor, a do pacta sunt servanda. Até lá!
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.