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Indulto coletivo versus graça: "fake news" que misturam alhos e bugalhos

Pinçar argumentos de ministros do STF lançados em análise de indulto coletivo atinentes à discricionariedade decorrente da abstração desse instituto, editá-los e manipulá-los a fim de trasladá-los a caso de indulto individual (graça), justamente em seu aspecto de concretude casuística, é incidir em claro "false context". Seja por ignorância, seja por má-fé.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Atualizado às 11:15

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Claire Wardle, PhD estadunidense, uma das mais afamadas estudiosas de "fake news" em mídias digitais, dividiu as notícias e mensagens de desinformação em sete grupos. Alguns, mais toscos; outros, mais sutis. No grupo "fabricated content", mais primário, o conteúdo é totalmente falso, criado para fazer o mal ou desmoralizar alguém, o episódio "mamadeira de piroca" bem o ilustra.  No grupo "false context", mais sutil, a mensagem é fraudada pela descontextualização de um conteúdo mais amplo e originalmente verdadeiro.

No episódio recente da inédita graça presidencial concedida a um deputado Federal, o país assistiu a um festival de "false context". Uma grande mistura de alhos com bugalhos em relação a dois institutos próximos, coirmãos, mas que guardam peculiaridades e diferenças abissais.

É evidente a confusão, em parte, claramente proposital, que se anda fazendo entre graça e indulto, coletivo.

A proximidade é óbvia, a ponto de ser utilizada a mesma nomenclatura: indulto, individual ou coletivo, conforme a espécie. E não para por aí: ambos extinguem penas, são decretados pela mesma autoridade presidente da República e têm o mesmo "locus" constitucional. Os dois benefícios, igualmente, não atingem os efeitos secundários da condenação, sejam automáticos ou não.  Obviamente, nenhum deles tem o poder de extinguir o processo, tampouco o de rever o conteúdo de decisões judiciais condenatórias.

Mas a só característica de um ter índole coletiva e outro, individual, traz enormes diferenças.

E essas diferenças são tão relevantes a ponto de fazer com que o julgamento que envolve a validade de um deles não possa ser invocado como precedente de outro, notadamente quando os pontos de discussão incidem precisamente nas características que os distanciam.

A primeira grande diferença, que se desdobra em vários aspectos, diz respeito à natureza do ato que corporifica a benesse: um, como já acenado, tem caráter abstrato e geral; outro, concreto, individual, casuístico.

Quando se busca, no âmbito do STF, pinçar decisões em cuja argumentação são invocados aspectos de discricionariedade do presidente da República a um indulto geral, fundada exatamente no caráter abstrato e geral do ato, essa mesma argumentação claramente não se amoldará a questionamentos relacionados a um indulto individual, porquanto seu caráter, ao contrário, é concreto e individual.

O ato administrativo, conforme construção doutrinária clássica, permite ser decomposto em cinco elementos, os quais, respeitadas as nuanças entre doutrinadores, podem ser assim catalogados, Hely Lopes, por todos: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.

Os três primeiros elementos são sempre de natureza vinculada, mesmo nos atos ditos discricionários. No "motivo" e no "objeto" do ato reside o âmago da discricionariedade, mas que, mesmo assim, não pode ser desviado de uma eventual base autovinculante, teoria dos motivos determinantes, tampouco apresentar conteúdo material ilícito ou mesmo ilegítimo.  É incontroversa, e temos exemplos aos borbotões, a possibilidade de os legitimados e atingidos pelos atos administrativos cobrarem controle judicial, mesmo em atos discricionários, seja por vício em seus elementos vinculados, seja até mesmo por eventual aspecto auditável em seus elementos originariamente discricionários. Um decreto de desapropriação, exemplo clássico do exercício do poder discricionário, pode ser questionado não somente se houver mácula em seus elementos vinculados, competência, finalidade; forma, mas, também, em razão inidoneidade motivacional, tredestinação, ilicitude de objeto...

O indulto coletivo ocorre há décadas, é rotineiro em nosso direito.  Envolve aspectos de política criminal, política carcerária, política humanitária, sempre de índole coletiva, nunca personalista ou casuísta.  É um instituto maturado e já bem delineado não somente pela lei, mas também pelo costume e demais fontes jurídicas.  Os decretos presidenciais de indultos coletivos vêm sendo, raras exceções, historicamente alcunhados de "indulto natalino". Em nossa tradição jurídica, eles se dirigem aos apenados, ou seja, em meio à execução penal, e trazem requisitos objetivos, espécie de crimes, parcela de pena já cumprida, etc. E subjetivos, p. ex., bom comportamento carcerário. Todos aqueles que se enquadrem nesses requisitos fará jus ao benefício.

Tradicionalmente são detectadas evoluções nesses requisitos, até porque houve enorme evolução quantitativa na massa carcerária ao longo dos anos, mas em geral não há grandes saltos ou variações entre os decretos de indulto coletivo ao longo do tempo. Aliás, são comuns as reproduções "ipsis litteris" dos decretos por vários anos a fio.  Como são decretos que atingem e beneficiam a milhares de reeducandos penais, de índole genérica e abstrata, é forçada a ilação, como hoje conspiram alguns, sobre a existência de decretos de indulto coletivo dirigidos a alguma pessoa em particular.  E se isso houver, e for comprovado, poderá ser judicialmente anulado.

Mas mesmo assim, sempre que há alterações mais significativas, em especial que ampliam as hipóteses de obtenção do benefício, toda sorte de especulação é feita. Não custa lembrar que é um enorme problema administrativo a gestão de uma população carcerária que triplicou nas ultimas duas décadas, sendo compreensível, em paralelo, haja uma política mais liberalizante em relação àqueles que cumpriram boa parte de suas penas por crimes comuns, sem faltas disciplinares ou intercorrências, como forma de diminuir a pressão a um sistema superlotado.

Uma dessas alterações aconteceu por ocasião do indulto natalino de 2017, decreto da lavra do ex-presidente Michel Temer, seu primeiro ano integral de governança, cuja formação é a de jurista constitucionalista. O decreto baixado, e depois declarado válido pelo STF, seguia geral e abstrato, beneficiando milhares de executandos; e trazia praticamente as mesmas espécies de restrições que as do ano anterior, embora um tanto mais abrangente. Esse aumento de abrangência não é inédito. O ex-presidente João Figueiredo, ainda no regime militar, por conta da visita papal no início dos anos 1980, buscando dar ao mundo uma sinalização de cunho humanitário, baixou decreto de indulto mais amplo, inclusive para beneficiar os idosos, maiores de 60 anos.  Dilma Rousseff também promoveu algumas alterações, assim como vários outros mandatários ao longo das décadas. 

Esses decretos de indulto coletivo, reitere-se, atingem a milhares de reeducandos que cumprem os respectivos requisitos. É falso dizer, por exemplo, que Figueiredo "indultou um amigo em especial", ou que Dilma ou Temer indultaram a fulano ou a sicrano. Até porque, quem aplicao indulto coletivo, que tem características de norma legal, aos casos concretos é o juízo da execução penal, responsável pela subsunção entre o caso e a hipótese normativa. É ele quem diz se fulano ou sicrano se adequam ou não às exigências da norma.  Pode até acontecer de um amigo ou correligionário desses presidentes, em meio a milhares de anônimos, tenham sido alcançados. Mas também alguns inimigos ou adversários provavelmente o foram.

De qualquer forma, não temos qualquer tradição ou histórico de concessão de graça, que, por isso mesmo, demanda maior integração pelas fontes do direito quanto a seu alcance e requisitos. Afinal, não há um único registro histórico de algum presidente da República ter concedido graça por motivo que não seja humanitário, isto é, com foco no interesse público, mas, ao contrário, fazendo-o apenas para fazer prevalecer arbitrariamente sua própria opinião sobre determinado caso criminal. As pouquíssimas menções quanto a ocorrência desse tipo de perdão penal, e muitas sem confirmação documentada, têm por fundamento aspectos subjetivos do beneficiado pela graça individual, doença terminal, ato de heroísmo, esteio familiar... Jamais, porque ilegítimo, se pode(ria) imaginar o benefício como forma de revisão a uma condenação em que o chefe do executivo discorde ou pretenda se arvorar no papel de instância judicial superior e definitiva.

Se não houver critérios e limites à concessão de indulto individual, toda jurisdição criminal de todas as instâncias, e não só da instância suprema, teria sua efetividade ferida de morte; sua dicção seria sempre condicional, já que qualquer processo criminal com resultado condenatório, por mais complexo e longo que fosse, ficaria permanentemente ao alvedrio da caneta ditatorial do chefe do executivo de plantão.

E não há, muito menos, notícias de que alguma graça presidencial tenha tido por beneficiário um correligionário ou parceiro político do emitente do ato. Uma tal benesse em que, não bastasse o ineditismo e a distorção motivacional, que pretende rever o mérito de decisão judicial, o interesse público, elemento vinculado de qualquer ato administrativo, mesmo os discricionários, tenha sido ignorado, deixado em plano inferior.

Pinçar argumentos de ministros do STF lançados em análise de indulto coletivo atinentes à discricionariedade decorrente da abstração desse instituto, editá-los e manipulá-los a fim de transplantá-los a caso de indulto individual, graça, justamente em seu aspecto de concretude casuística, é incidir em claro "false context". Seja por ignorância, seja por má-fé.

Paulo Calmon Nogueira da Gama

VIP Paulo Calmon Nogueira da Gama

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio, Desembargador do TJMG.

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