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A taxatividade do rol da ANS como limitadora do exercício do direito à saúde

A ideia de se considerar o rol da ANS de caráter taxativo é errada, e serve apenas para proteger econômica e financeiramente as empresas de planos de saúde, em detrimento ao direito constitucional à saúde dos segurados.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Atualizado às 14:23

 (Imagem: Artes Migalhas)

(Imagem: Artes Migalhas)

Muito se debate nos dias atuais sobre a possibilidade de o STF decidir pela taxatividade do rol de procedimentos da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, que é utilizado pelas seguradoras de saúde como parâmetro para o fornecimento - ou não - de tratamentos médicos.

O STJ está se debruçando sobre um caso que promete pacificar o entendimento acerca do que as seguradoras são ou não obrigadas a fornecer aos seus segurados, a título de tratamentos prescritos por profissionais médicos. O STJ precisará definir que o rol de procedimentos da ANS tem um perfil taxativo ou exemplificativo.

Caso o STJ entenda que se o rol de procedimentos da ANS tem um perfil taxativo, isso significa dizer que as seguradoras estão obrigadas a fornecer apenas os tratamentos que estão previstos nessa lista - que, como é de conhecimento de muitos, é defasada e sofre com inúmeras dificuldades para ser atualizada. Qualquer tratamento fora dessa lista poderia ser negado pela seguradora, e o cidadão teria enormes dificuldades para obter decisões judiciais que lhe garantisse qualquer direito.

Por sua vez, caso o STJ entenda que se o rol de procedimentos da ANS tem um perfil exemplificativo, fica como já é hoje: a seguradora está obrigada a fornecer os tratamentos previstos na lista, mas o cidadão pode recorrer ao Poder Judiciário no caso em que haja qualquer negativa, com a confiança de que, havendo previsão médica, são boas as chances dele ter concedida uma decisão que lhe garanta o tratamento.

Esse julgamento no STJ é muito importante para a sociedade, e está em jogo a continuidade do acesso a tratamentos e procedimentos para, aproximadamente, 50 milhões de usuários de planos de saúde. Alterar-se o formato atual, sob a alegação de que a "exemplificidade do rol da ANS causaria prejuízos financeiros irremediáveis às operadoras", é um enorme desrespeito à sociedade, ainda mais se observamos que, atualmente, estas empresas possuem lucros exorbitantes, mesmo já submetidas a decisões judiciais que as obrigam a fornecer tratamentos e procedimentos que, originariamente, negam aos seus clientes.

O fato é que mudar a natureza exemplificativa do rol da ANS significaria, na verdade, incentivar um aumento exponencial na negação de cobertura das operadoras, além de impedir que o cidadão tenha acesso ao Poder Judiciário para garantir o respeito ao seu direito à saúde. Qualquer tratamento ou procedimento não listado no rol poderia ser imediatamente rejeitado pela seguradora, mesmo que seja clinicamente indicado e comprovadamente eficaz.

O rol da ANS, que já é desatualizado, sofreria muito mais com a inoperância e a indiferença dos órgãos de controle, que se aliam aos interesses das grandes corporações, em detrimento aos usuários.

No julgamento do STJ, o ministro-relator Luis Felipe Salomão proferiu voto no sentido de reconhecer a taxatividade do rol, prevendo exceções limitadíssimas. Fazendo um contraponto, a ministra Nancy Andrighi se colocou na defesa da exemplificidade do rol da ANS, e valeu-se de princípios e garantias da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e da Lei de Planos de Saúde para defender a ideia de que a ANS - favorável ao rol taxativo - não teria a prerrogativa de limitar o alcance das coberturas, quando a própria lei que regula o setor não o faz. Em seu voto, a ministra assim se posicionou:

"O rol é uma relevante garantia enquanto instrumento de orientação, mas não pode representar a delimitação taxativa da cobertura assistencial, alijando o consumidor de se beneficiar de todos os procedimentos em saúde que se façam necessários para seu tratamento. (...) A taxatividade esvazia a razão de ser do plano de referência, que é garantir ao usuário tratamento efetivo a todas as doenças".

Nancy Andrighi sustentou que o rol exemplificativo, tal como já é interpretado majoritariamente pelo Poder Judiciário, tem o condão de proteger o consumidor de uma sanha predatória das seguradoras, e chegou a questionar, com base em dados do Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e da própria ANS, a ideia de que a manutenção do atual modelo encareceria as mensalidades.

"Ao temer o risco de elevação exponencial do preço das mensalidades a partir do reconhecimento da natureza exemplificativa do rol, a ANS incorre em um sofisma. Essa afirmação não condiz com as informações disponibilizadas no portal eletrônico da própria Agência quanto às receitas e despesas das operadoras. (...) Dadas as circunstâncias, uma eventual elevação exponencial do preço não teria outra finalidade a não ser a de aumentar a lucratividade das operadoras, onerando injustificadamente o consumidor".

O julgamento foi paralisado, mas em breve será retomado, e a sociedade precisa estar atenta. O fato é que o rol da ANS é notoriamente defasado, e não acompanha a evolução da medicina. Muitos são os tratamentos reconhecidos pela sociedade científica e já praticado em vários locais, mas que não estão previstos nesta lista. E limitar o acesso do segurado apenas ao que nela consta ocasionará em sérios prejuízos à assistência em saúde. O julgamento favorável à taxatividade do rol de procedimentos implica dizer que a saúde dos beneficiários fica em segundo plano em detrimento ao lucro das operadoras de planos de saúde.

Cabe ressaltar que não cabe às operadoras de planos de saúde o julgamento sobre qual seria o melhor tratamento de doenças, sob o risco de se usurpar a própria autonomia do médico responsável e se intrometer na relação médico-paciente.

Caso o STJ dê ganho de causa aos planos de saúde e o rol da ANS se torne taxativo, será um prejuízo muito grande ao direito à saúde da população. Pacientes diagnosticados com TEA - Transtorno do Espectro Autista, doenças raras e graves, por exemplo, seriam diretamente afetados, e exames importantíssimos, como o PET SCAN (para diagnóstico de câncer), terapia ABA (para autismo), hidroterapia, imunoterapia, entre outros, poderiam ser negados pelas seguradoras, porque não fazem parte do rol da ANS.

Hoje, com o entendimento de que a lista é exemplificativa, qualquer decisão de seguradora que negue algum tratamento ou cobertura de medicamento autorizado pela Anvisa e prescrito por médico representa um abuso, ainda que não haja previsão no rol da ANS.

A Constituição Federal impôs ao Estado o dever de garantir a cobertura de saúde da população, assegurando ao cidadão o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e sua recuperação (art. 196), classificando as ações e serviços de saúde como de relevância pública (art. 197) e, finalmente, dispondo a respeito da possibilidade de sua execução diretamente pelo Poder Público ou, sob sua fiscalização e controle, pela iniciativa privada.

Já a lei 9.656/98, que regulamenta o setor de planos de saúde, é clara ao definir no seu art. 10 que a cobertura oferecida será estendida a todas as doenças previstas na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde - listadas na CID-10. Sendo assim, se o contrato entre o plano e o cidadão prevê a cobertura para aquela doença, por óbvio, se espera que todo o tratamento também esteja incluído, e que deva ser custeado pela seguradora.

Ademais, se observarmos o CDC - Código de Defesa do Consumidor, em especial nos art. 51, inc. IV c/c o § 1º desse mesmo artigo, veremos que qualquer restrição imposta deve ser tida por nula e imediatamente afastada, uma vez que se deve preservar o direito à saúde, que é o mais necessário de todos. E isso fica evidente, uma vez que qualquer condição restritiva implicaria em se suprimir procedimentos que podem ser os mais adequados ao controle da enfermidade e até para salvar uma vida, desvirtuando-se o próprio objetivo do contrato de prestação de serviço de saúde.

Portanto, é claro que os planos de saúde têm o dever de atender aos seus segurados da melhor forma possível, e que não deveriam (ou não poderiam) negar o fornecimento de procedimentos, com base em alegações burocráticas como falta de previsão no rol da ANS. O direito à saúde deveria ser o principal a ser tutelado nesta relação!

Firmar um entendimento no sentido da taxatividade se mostra inconstitucional e até irracional, e adota uma interpretação desvirtuada da legislação consumerista, servindo apenas para proteger econômica e financeiramente as empresas de planos de saúde, em detrimento das garantias constitucionais dos segurados.

É certo que não cabe às operadoras de planos de saúde e seus advogados, ou à própria ANS, limitar a realização de procedimentos, exames ou tratamentos indicados por médico especialista - este sim, o único profissional competente. Tampouco estes citados deveriam ter o poder de definir qual seria o tratamento mais adequado para os pacientes. É absurdamente inconstitucional qualquer tentativa de limitação de direitos fundamentais dos segurados.

Evilasio Tenorio

VIP Evilasio Tenorio

Advogado com mais de uma década de atuação. Atuação especializada em Direito Civil, Societário, da Saúde e Empresarial. Consultor. Ex-Assessor e Superintendente Jurídico Substituto na Perpart.

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