Algumas medidas para agonizar o Estado de Direito
Para ficarmos dentro dos limites pretendidos, a submissão do Estado ao ordenamento jurídico é regra de ouro e a suma garantia dos cidadãos.
terça-feira, 19 de abril de 2022
Atualizado às 07:59
Sem qualquer dúvida, a segurança jurídica, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a submissão do Estado ao ordenamento jurídico são os ingredientes básicos e nucleares do Estado de Direito. Como núcleos, atraem em sua órbita outros princípios correlatos e afins.
A segurança jurídica1, por exemplo, é o núcleo de inúmeros atributos substanciais2 que devem estar presentes nas regras de direito e que permitem que elas cumpram sua finalidade de indicar aos seus destinatários - e ao próprio Estado - os comportamentos vedados e os comportamentos desejados, para que a vida em sociedade seja possível e para que todos tenham a possibilidade de se realizar como pessoa humana - o que, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello, "coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a da segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo essa uma busca permanente do ser humano".3
Esses atributos são vários: para começar, as normas devem ser claras, precisas, inteligíveis, irretroativas (salvo as penais mais brandas), genéricas (dirigidas a todos), abstratas (referindo-se a fatos futuros) e dotadas de coação.4
Tudo porque elas devem garantir a estabilidade das relações jurídicas - e, sob este aspecto, o autor acima citado aponta, como reflexos diretos do princípio da segurança jurídica, o instituto da prescrição, da decadência, da preclusão (na esfera processual), do usucapião, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, aos quais acrescentaríamos a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.
Para agonizar a segurança jurídica, os autocratas recorrem a certos venenos, ministrados em doses homeopáticas: a profusão de normas, sejam leis, atos normativos, resoluções, portarias etc. Além disso, as produzem com falta de clareza e, muitas vezes, com textos contraditórios. Noutras oportunidades, as regras de direito criam tamanhos obstáculos ao próprio cumprimento, desestimulando o particular, que, então, partem para o caminho da corrupção.5
Tudo no afã de torná-las ininteligíveis e inacessíveis. Também não é raro - no âmbito dos três poderes - mudanças bruscas e radicais de orientação, sem qualquer consequência ou efeitos para os que agiram de acordo com os comandos inopinadamente alterados. Vale dizer: os poderes defraudam impunemente a confiança legítima dos cidadãos - princípio hoje reconhecido como um dos elementos constitutivos do Estado de Direito.
No que respeita aos direito fundamentais, escreve Jacques Chevallier: "Atualmente, em todos os países liberais, o pedestal que sustenta o Estado de Direito é considerado como sendo constituído por um conjunto de direitos fundamentais, inscritos em textos de valor jurídico superior".6 Em nosso País, todavia, eles acabam sendo violados escancaradamente: os desmatamentos da Amazônia; as invasões de terras indígenas por madeireiros e mineradores; a falta de infraestrutura, que asfixia a nossa economia e causa desempregos, fome e miséria; a carência de escolas, ou farrapos e arremedos de escolas em regiões longínquas, como constantemente denuncia a mídia; as favelas; os milhares de homeless nas cidades grandes e daí em diante. A lista é quase infinita...
Por fim, para ficarmos dentro dos limites pretendidos, a submissão do Estado ao ordenamento jurídico é regra de ouro e a suma garantia dos cidadãos, no eterno embate com o poder, para proteção de seu patrimônio e de sua esfera jurídica, diante das reiteradas investidas estatais. Mas, para tanto, é preciso que o próprio Estado não deflagre uma verdadeira guerra de secessão entre os seus Poderes, retalhando-se a si mesmo. Infelizmente, a harmonia entre os poderes não está existindo. Ao contrário, grande é a desarmonia. E esse desatino pode liquidar a nossa Democracia e, de roldão, levar o Estado de Direito ao precipício.
Conhecendo o veneno, cabe a todos nós, operadores do Direito e membros das Instituições independentes, buscar o antídoto.
Tarefa ingente e urgente!
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1 Considerado por Celso Antonio Bandeira de Mello o maior dentre os princípios jurídicos (senão o maior, diz o jurista ilustre, certamente está dentre os maiores) - In Curso de Direito Administrativo, 35ª Edição da Malheiros, p. 77. Essa mesma afirmação está em p. 109.
2 A expressão é de Jacques Chevallier em "L'État de droit", edição francesa de 1992, com tradução do autor e de Augusto Neves Dal Pozzo, publicada pela Editora Fórum ("O Estado de Direito"). Muitas ideias aqui desenvolvidas têm inspiração em sua excelente obra. Professor da Universidade Panthéon-Assas (Paris II), dirige o Centre d'Études et de Recherches de Sciences Administratives e Politiques (CERSA-CNRS).
3 Obra citada, p. 109.
4 Ob. citada p. 109.
5 O Professor Héctor A. Mairal publicou "As raízes legais da Corrupção", com adaptações ao direito brasileiro feito pelo Professor Toshio Mukai e com revisão do Professor Rafael Valim, publicado pela Editora Contracorrente, 2018.
6 Ob. Cit. p. 87.
Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo
Advogado e sócio fundador do escritório Dal Pozzo Advogados. Ex-procurador Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.