Sociedade limitada - Apuração de haveres no direito de retirada: entre a Lei e a jurisprudência
Tem-se uma longa caminhada até a pacificação da jurisprudência, havendo argumentos para ambas as teses.
sábado, 16 de abril de 2022
Atualizado em 14 de abril de 2022 14:24
Segundo nossa Carta Magna de 1988, ninguém é obrigado a se associar ou permanecer associado a qualquer entidade. Essa máxima ganha ainda mais destaque no âmbito do direito societário quando um sócio deseja sair de uma empresa da qual faz parte.
A possibilidade de um sócio se desvincular do quadro societário por mera liberalidade é factível, desde que a sociedade seja contratada por prazo indeterminado. Nesta hipótese, basta enviar uma "simples" notificação aos demais sócios, manifestando a sua vontade em sair da sociedade, mediante o recebimento referente a sua participação.
Determinada movimentação, identificada no direito societário como "Direito de Retirada", enseja a elaboração de um balanço especial para averiguar quanto valem as quotas do sócio - retirante - para, posteriormente, serem pagas. Esse ato de averiguar quanto valem as quotas de um sócio chamamos de "Apuração de Haveres", como uma forma de liquidação.
Isto posto, resta saber como se dá o pagamento das quotas baixadas. Para tanto, é necessário estabelecer a data-base, ou seja, até que data o sócio permaneceu vinculado à sociedade, de modo que o balanço especial seja capaz de contemplar o patrimônio social até o momento de sua saída.
A regra, tanto pelo art. 1.029, do Código Civil, quanto pelo artigo 605, do Código de Processo Civil, é de que somente após 60 (sessenta) dias da notificação o sócio se desvincula da empresa.
Art. 1.029. Além dos casos previstos na Lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.
Nesse raciocínio, no sexagésimo dia seguinte ao recebimento da notificação, temos a data-base da saída, devendo-se levantar um balanço especial para ver quanto as quotas do sócio retirante vale e, então, pagar o sócio retirante em 90 (noventa) dias, conforme artigo 1.031.
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
§ 2 o A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
Daí surge o ponto central deste artigo: sendo um dever da sociedade elaborar o balanço patrimonial especial e pagar o sócio que se retira, o prazo de 90 (noventa) dias se iniciaria a partir do sexagésimo dia da notificação ou somente após a liquidação das quotas (entende-se liquidação por encontrar o valor certo a ser pago ao sócio retirante, ou seja, elaborar o balanço patrimonial especial)?
O art. 1.031 é claro ao dizer que o pagamento será após a liquidação. No entanto, suponha a situação em que a sociedade demore para levantar o balanço especial ou até mesmo que levante e o sócio retirante não concorde com o valor encontrado, sendo necessário uma perícia em nível judicial para se chegar à liquidação.
O adiamento do pagamento seria aceitável ou deveria haver juros de mora, uma vez transcorrido os 90 dias após o exercício do Direito de Retirada?
Essa é a questão que os tribunais vêm enfrentando, sem haver um posicionamento sólido.
APELAÇÃO CÍVEL. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE. DIREITO DE RETIRADA. DIREITO POTESTATIVO. DATA DA RESOLUÇÃO DA SOCIEDADE PARA FINS DE APURAÇÃO DE HAVERES. 60 DIAS A CONTAR DA NOTIFICAÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.029 DO CC E ART. 605, II, DO CPC/15. FUNDO DE RESERVA. BEM TANGÍVEL. COMPÕE O CÁLCULO DA APURAÇÃO DE HAVERES EM SOCIEDADE LIMITADA, QUE NÃO SE CONFUNDE COM SOCIEDADE COOPERATIVA. FUNDO DE COMÉRCIO. INEXISTÊNCIA RECONHECIDA EM SENTENÇA. QUESTÃO QUE TRANSITOU EM JULGADO. FUNDO DE COMÉRCIO QUE, PORTANTO, NÃO IRÁ COMPOR O CÁLCULO DE APURAÇÃO DE HAVERES. DESATIVAÇÃO INDEVIDA DO TELEFONE QUE TERIA SIDO ORDENADA PELA AUTORA. AUSÊNCIA DE RECONHECIMENTO EM SENTENÇA, AO CONTRÁRIO DO QUE ASSEVERA A PARTE APELANTE. ALEGAÇÃO RECURSAL QUE PARTE DE FALSA PREMISSA. JUROS DE MORA. A PARTIR DE 90 DIAS A PARTIR DA LIQUIDAÇÃO DOS HAVERES. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. (...) 5. Conforme posição pacífica e consolidada do Superior Tribunal de Justiça, foi superado o entendimento de que os juros de mora incidentes sobre os haveres seriam contabilizados desde a citação, prevalecendo a tese de que o prazo de 90 (noventa) dias possui como termo inicial a data da decisão que efetivamente liquida os haveres da parte retirante. Desta forma, portanto, há que se dar provimento a este ponto do recurso da parte ré para fixar o 90º (nonagésimo) dia, a contar da efetiva liquidação dos haveres, como termo inicial dos juros de mora eventualmente incidentes sobre essa verba. (TJPR - 18ª C.Cível - 0021284-02.2017.8.16.0017 - Maringá - Rel.: DESEMBARGADOR MARCELO GOBBO DALLA DEA - J. 08.02.21) (TJ-PR - APL: 00212840220178160017 Maringá 0021284-02.2017.8.16.0017 (Acórdão), Relator: Marcelo Gobbo Dalla Dea, Data de Julgamento: 08/02/21, 18ª Câmara Cível, Data de Publicação: 08/02/21); e
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. APURAÇÃO DE HAVERES. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. CITAÇÃO. PRECEDENTES.
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. SOCIEDADE EMPRESÁRIA. DISSOLUÇÃO PARCIAL. APURAÇÃO DE HAVERES. JUROS DE MORA. INCIDÊNCIA. PRAZO NONAGESIMAL. ART. 1.031, § 2º, DO CÓDIGO CIVIL. MULTA. ART. 1.021, § 4º, CPC/2015. NÃO CABIMENTO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que os juros de mora decorrentes do pagamento dos haveres devidos em face da retirada do sócio são devidos a partir do vencimento do prazo nonagesimal, conforme regra prevista no art. 1.031, § 2º, do CC/2002. Precedentes. 3. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que o não conhecimento ou a improcedência do agravo interno não enseja a necessária imposição da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015, sendo indispensável o nítido não cabimento do recurso. 4. Agravo interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1846866 SC 2019/0329689-5, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 08/02/21, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/21)
Diante disso, seria cabível o sócio retirante ser prejudicado pela demora na elaboração do balanço e seu devido pagamento? Por outro lado, como incidir juros de mora sobre algo ilíquido, na realidade, como pagar algo que não se sabe o valor?
A ideia aqui defendida, observando um caso julgado por tribunal arbitral (respeitando o sigilo imposto pela arbitragem), se dá no sentido de observar o último balanço contábil elaborado pela sociedade e iniciar o pagamento com base nele até a elaboração do balanço especial em comento, já incidindo juros sobre o valor a ser encontrado, juntamente com o valor em amortizando, visando obter um meio termo.
Por fim, tem-se uma longa caminhada até a pacificação da jurisprudência, havendo argumentos para ambas as teses. No entanto, o mais adequado seria estipular no próprio contrato social como se daria o Direito de Retirada e sua respectiva Apuração de Haveres, para evitar qualquer discussão.