O STF, como guardião da Constituição, não pode servir como instrumento para proteger interesses dos poderes políticos
O ativismo do STF atenta contra a imparcialidade das decisões e gera instabilidade político-institucional.
segunda-feira, 11 de abril de 2022
Atualizado às 10:08
Em frente ao Palácio do STF, localizado na "Praça dos Três Poderes" em Brasília, uma estátua chama a atenção: trata-se da "Têmis de Ceschiatti", esculpida em 1961 por Alfredo Ceschiatti. Vários detalhes são carregados de simbologia, mas um merece especial destaque, a venda sobre os olhos da Têmis.
Esta representação nos remete à ideia clara de que a tutela jurisdicional tem como uma das principais premissas a imparcialidade, ainda mais quando se trata da mais alta Corte do país.
Outro fato interessante é a disposição da praça que abriga os três poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Esta é composta por três edifícios separados, que, ao mesmo tempo em que são independentes, eles se conectam, o que traduz a separação dos três poderes e a sua interdependência.
No Estado Democrático e Social de Direito é inegável a importância do controle de constitucionalidade exercido pela Suprema Corte, em especial, no que tange à atuação dos demais poderes.
Todavia, em determinadas situações, o que se vê é uma atuação cada vez mais ativa por parte do STF, com decisões que transcendem o mero controle de constitucionalidade e que ostentam cunho predominantemente politico.
Neste cenário, a atuação jurisdicional deixa de ser imparcial e também atenta contra o sistema de "freios e contrapesos", gerando uma instabilidade entre as instituições e um ambiente de total insegurança jurídica.
O denominado "ativismo político do STF", muitas vezes causado pela própria judicialização massiva da política, tem se verificado quando o Supremo, sob o pretexto de que um dos poderes é omisso, passa a regular uma matéria cuja iniciativa é de prerrogativa do Poder Legislativo, ou, ainda, adota decisão baseada na conveniência e oportunidade de determinado ato, num juízo de valor de atribuição exclusiva da administração (executivo).
O início do ativismo do Supremo é atribuído, em grande parte, ao julgamento da constitucionalidade da resolução que coibiu o nepotismo, criada pelo Conselho Nacional de Justiça.
De acordo com a EC 45/2004, que criou o CNJ, o Conselho somente poderia produzir atos regulamentares e nunca atos normativos primários. Para se esquivar de tal vedação, o CNJ, por meio da Resolução 07/2005, resolveu proibir o nepotismo a partir de uma "interpretação" do artigo 37, caput, da Constituição Federal.
Essa iniciativa gerou a interposição de diversas ações individuais, questionando a constitucionalidade de tal resolução. Em contrapartida, para conferir eficácia à decisão do CNJ, a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) ingressou com Ação Declaratória de Constitucionalidade da Resolução 07/2005 do CNJ (ADC 12/DF1).
No entanto, a mencionada ADC criou uma intensa discussão, afinal, somente normas dotadas de caráter geral e abstrato, provenientes dos entes legislativos, poderiam ser objeto de ação declaratória de constitucionalidade.
Diante dessa celeuma, o CNJ tinha, em regra, apenas duas opções: extrapolar sua competência, editando norma de caráter geral e abstrato e, assim, julgar improcedente a ADC 12/DF, para declarar a inconstitucionalidade da Resolução 07/2005; ou, então, limitar-se a interpretar a norma constitucional e, em se cuidando de ato regulamentar, destituído de caráter geral e abstrato, não conhecer da mencionada ADC.
Contrariando as duas opções possíveis, o STF conheceu da ADC e a julgou procedente. Com isso, abriu-se o precedente de que os ministros do Supremo poderiam criar normas de caráter geral e abstrato por meio de resolução, o que deu início ao fenômeno do "ativismo do judiciário" no Brasil.
Há quem defenda que o ativismo judicial também é uma consequência da atual crise de representatividade política. Por conta do descrédito de algumas instituições, sobretudo, do Legislativo, o Poder Judiciário passou a assumir um papel de regulador das questões com grande repercussão social, as quais seriam negligenciadas por parte dos demais Poderes.
Neste ponto, contudo, é preciso ter cuidado com o que se entende por negligência, pois muitas questões são extremamente sensíveis do ponto de vista político, ideológico, científico, religioso ou moral, motivo pelo qual a sua regulação deve ser objeto de intenso e longo debate, não na Suprema Corte, mas no Congresso Nacional, instituição composta por parlamentares eleitos diretamente pela sociedade, cuja missão é legislar sobre tais matérias, mediante um processo que, ainda que moroso, é o mais democrático, pois, afinal, permite que todos os setores da sociedade sejam ouvidos e representados.
Não obstante, para os entusiastas do ativismo judicial, o exercício da função jurisdicional, por meio de seus Tribunais, também faz parte do processo de criação do direito. Segundo essa visão, ao analisar o caso concreto, o julgador não se limita à letra pura da lei, mas, a partir de uma interpretação extensiva, assegurando a efetivação de direitos, antes mesmo da sua positivação2.
Neste sentido, posiciona-se o atual ministro do STF, Luis Roberto Barroso, segundo o qual "a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e afins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios. (...) o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (...) o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades construindo regras específicas da conduta de enunciados vagos"3.
No entanto, em que pese a validade deste argumento no campo teórico, na prática é muito difícil definir o que seria um "ativismo judicial legitimamente exercido". Infelizmente, em alguns casos, a atuação proativa de um ministro não é motivada na concretização de valores e afins constitucionais, mas na consolidação de uma posição mais favorável a determinado grupo político.
Prova disso seria a constante intenção de colocar novamente em pauta a discussão de questões que, recentemente, já foram decididas pelo colegiado, sob o único argumento de alteração da composição dos membros da Corte, após a nomeação de um novo ministro pela Presidência da República.
Ora, a defesa de valores constitucionais, por meio da formação de jurisprudência, não pode estar suscetível a constantes alterações motivadas apenas pela nomeação de um novo ministro, sob o risco de comprometer a segurança jurídica das decisões e a própria credibilidade do Judiciário.
No mais, é muito arriscado conferir à hermenêutica jurídica o papel de disciplinar regras de conduta a partir de enunciados vagos. Ainda que seja prerrogativa do hermeneuta realizar uma interpretação extensiva em algumas situações, o espirito criativo que dá origem às normas deve partir do legislador, a quem foi incumbida tal missão.
A neutralidade política sempre foi vista como essencial à atividade jurisdicional, visto que o Poder Judiciário, para garantir a imparcialidade de suas decisões, sempre buscou não se envolver em deliberações políticas, até porque estas pressupõem, naturalmente, uma atuação parcial e baseada em ideologia de cunho político.
Nesta linha de raciocínio, independente de quais foram os fatores que levaram ao ativismo do STF no cenário político brasileiro, a judicialização discriminada da política deve ser vista com ressalva. Afinal, a Constituição Federal não conferiu aos membros da mais alta Corte do país a prerrogativa de regular a vida em sociedade, imiscuindo-se em questões estritamente políticas, econômicas e morais.
A Têmis de Ceschiatti é uma lembrança constante de que Justiça e imparcialidade são indissociáveis, sendo os ministros do STF agentes do Estado, investidos de grande autoridade, e, assim, devem pautar a sua atuação dentro dos limites definidos pela Carta Magna, o que, evidentemente, não compreende o ato de legislar ou de executar políticas públicas. A busca desenfreada pela efetividade dos preceitos constitucionais não pode ser um fator de instabilidade entre as instituições.
1 Cf. ADC 12, Relator Ministro Ayres Britto, julgado em 20.8.08, publicada no DJU de 12.9.08.
2 MIARELLI, Mayra Marinho; LIMA. Rogério Montai de. Ativismo Judicial e a efetivação de direitos no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, P. 34, citado na obra: "O Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal", de autoria de Arthur Bezerra de Souza Junior e Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, p. 05. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=6f4b7fd3eea0af87. Acessado em 30/03/2022.
3 BARROSO, Luis Roberto. "O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro", São Paulo, Saraiva: 2011, p. 89.
Ivan Sartori
Desembargador, formado em Direto pela Universidade Mackenzie. Ingressou na Magistratura Paulista em janeiro de 1981 com 23 anos. Foi eleito e reeleito para compor o Órgão Especial daquela Corte, instância máxima do Judiciário Paulista. Foi o relator do atual Regimento Interno do Tribunal. Tornou-se o mais jovem Presidente da história do maior tribunal do mundo (TJ/SP), biênio 2012/13.