Justiça restaurativa e justiça militar - Possibilidade de coexistência
O meio militar, como é sabido, é extremamente estressor, pois o militar lida em seu dia-a-dia com fatores que podem, em questão de segundos, ceifar-lhe a vida, expurgá-lo da carreira, etc.
terça-feira, 5 de abril de 2022
Atualizado às 13:06
O grande ideal da justiça restaurativa, em minha humilde concepção, é sugerido por sua própria nomenclatura, ou seja, visa a restauração de algo: de um dano, material ou imaterial, psicológico; por exemplo, de uma vida, de uma relação, de um ambiente e até de todo um sistema.
A resolução 2002/12 da ONU, que versa os princípios básicos para possibilitar a concretização da justiça restaurativa em matéria criminal, a conceitua: "processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador".
Ora, mas seria possível vislumbrar esta realidade junto à justiça castrense?
Permissa vênia àqueles que militam em sentido contrário, entendemos pela compatibilidade de processos restaurativos aplicados à realidade da justiça militar.
Não existe crime sem explicação. Por detrás de um crime, sempre existe um motivo.
Será que de alguma maneira, a forma de se relacionar em sociedade ou em determinados ambientes, contribui para a prática de crimes e infrações?
Sim, o meio por vezes influencia as pessoas que nele convivem. Se se tratar de um ambiente que apresente diversos fatores estressores, veremos pessoas estressadas e com enormes chances de ter problemas derivados de sua situação psíquico-emocional, por outro lado, sendo um ambiente saudável, é consequência ter um número maior de pessoas felizes e com chances infinitamente reduzidas de apresentar problemas em seu cotidiano.
O meio militar, como é sabido, é extremamente estressor, pois o militar lida em seu dia-a-dia com fatores que podem, em questão de segundos, ceifar-lhe a vida, expurgá-lo da carreira, etc.
Por muitos destes fatores, vemos infelizmente no dia-a-dia, diversos militares pedindo baixa e migrando para outras carreiras, se suicidando e também praticando fatos puníveis como crime e infração disciplinar.
O papel dos agentes jurídicos diante deste cenário como um todo, não é o de apenas buscar identificar e punir autores de fatos delituosos ou infracionais, mas também, de buscar a pacificação social.
É aí onde se encaixa o papel do processo restaurativo.
Isto passa necessariamente por entender o ser humano, em suas angústias, medos, necessidades, frustrações, vícios, alegrias, virtudes, pois em algum momento estas questões vão interferir na vida das pessoas e desencadear situações que podem desembocar nos tribunais.
É tratar o ser-humano como tal e não como uma máquina. É ter empatia para com o próximo, é humanizar uma situação que pode se tornar muito mais traumática do que já é.
Lidar com o ser humano é uma complexidade infinita.
Por que houve um desrespeito a superior hierárquico? Por qual motivo ocorreram as agressões, verbais ou físicas? O que provocou o abandono de posto, o estado de ausência e a deserção? O que acontece para o desempenho daquela pessoa estar abaixo do esperado para a sua função? O militar está pronto para retomar suas atividades? O cidadão está em condições de ser reinserido ao convívio social?
Necessariamente, as respostas aos questionamentos acima, passam pelas misérias de um processo?
Nem sempre!
Todas estas questões e muitas outras, poderiam ser abordadas, antes, paralelamente ou ao término do processo penal militar e/ou do processo administrativo militar, em um processo restaurativo, que vise não apenas e tão somente a busca incessante por punição de um infrator, finalidade exclusivamente retributivista.
É necessário buscar por respostas e soluções efetivas e menos rasas para aquele fato que se busca apurar e punir, as quais podem contribuir para uma mudança de cultura e assim, prevenir de forma mais efetiva a prática de determinadas infrações, penais e administrativas.
No que o meio tem contribuído para as praticas delituosas e infracionais? O que vem sendo feito para corrigir esta situação? As vítimas secundárias também têm sido alvo da preocupação e cuidado do Estado?
O processo restaurativo está aí para responder a estes questionamentos, desde que aqueles que nele estejam envolvidos, invistam-se de um verdadeiro espírito humanitário que transcenda os arcaicos ideais e respostas do vetusto sistema processual penal e disciplinar castrense.
É mostrar ao infrator que existem outros caminhos. É se aproximar da vítima e dizer que ela não está sozinha. É orientar as partes e fomentar, com muito respeito entre todas, uma solução pacífica para os seus conflitos a partir da reparação de um dano, de um pedido de desculpas, do ajustamento de conduta e etc.
Em que pese não exista procedimento regulamentando esta prática na justiça militar, não há nada que impeça sua realização, desta feita, não enxergamos que seu exercício seja prejudicial ou incompatível com a práxis processual militar.
Desde que respeitadas a vontade das partes, a voluntariedade e o princípio da não-autoincriminação, é plenamente possível instaurar-se um processo restaurativo, em qualquer que seja a fase que se encontre o processo principal ou até mesmo antes de sua instauração ou após o seu término.
É certo que ainda há muitas barreiras para a efetivação da justiça restaurativa em âmbito castrense seja pela falta de regulamentação, seja pelo próprio rigorismo da cultura militar, mas há que se dar o primeiro passo no sentido de buscar uma evolução nesse sentido, devendo ser fomentada a partir deste momento, discussões que busquem a viabilização prática do processo restaurativo castrense.
Quantos casos, causas, pessoas, relações e ambientes poderiam ser restaurados e processos evitados, a partir de um simples diálogo e um acordo entre as partes, com a intervenção de um facilitador, sem a necessidade do trauma de um processo?
Nem tudo na vida deve ser tratado na ponta da espada.
Não se trata aqui da defesa de uma prática abolicionista ou que vise fomentar um cenário de impunidade, mas sim, da utilização racional e efetivamente necessária dos mecanismos repressivos do Estado, sendo que estes devem ser direcionados àqueles crimes efetivamente mais gravosos e socialmente danosos e os mesmos devem ceder diante de situações de menor repercussão social, para dar palco às soluções mais modernas, práticas, efetivas, humanas e restauradoras, o que trará benefícios não somente apenas às partes envolvidas, mas também para a comunidade como um todo.