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Equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, a pandemia e a guerra

Um momento de incerteza generalizada inviabiliza todo o processo de avaliação de risco para a tomada de decisão de se firmar um contrato.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Atualizado às 14:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos últimos anos, enfrentamos dois fatores que provocaram profundas alterações econômicas nas relações humanas, com reflexos na esfera jurídica. Primeiro, foi a pandemia da covid-19 que, inclusive, gerou um momento de incerteza econômica. No direito, estamos acostumados a lidar com a imprevisibilidade, que ocorre com os contratos em curso. O Código Civil possui dois arts. que tratam da questão:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Ambos os dispositivos tratam de contratos em curso. As partes negociaram, contemplaram os riscos que podiam antever e, em dado momento, no curso da relação jurídica, um fato que não poderia ser avaliado nos modelos de risco afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Mas o que ocorre quando é impossível contemplar os riscos, e, mesmo assim, as partes contratam? Essa é a questão que tentaremos tratar nesse artigo. No início da pandemia de covid-19, tivemos um momento assim. E, novamente, enfrentamos a mesma situação com a guerra na Ucrânia. A economia não para totalmente nesses momentos, principalmente nos dias atuais, pois, diante da globalização econômica, os negócios ocorrem 24/7 (vinte quatro horas, 7 dias por semana).

Para entender melhor a questão aqui proposta, é fundamental compreender inicialmente a diferença entre os conceitos de risco e incerteza e sua relevância para o ambiente econômico contratual. Neste sentido, segundo o economista Frank Knight (1921):

"Uncertainty must be understood in a sense radically different from the familiar notion of risk, from which it has never been conveniently separated.

 (...) measurable uncertainty, or "risk" proper, as we shall use the term, is so far different from an unmeasurable one that it is not in effect an uncertainty at all." (Knight, Frank. Risk, Uncertainty, and Profit, de 1921, p.19-20).

Mais precisamente, na visão de Knight, o risco é uma incerteza mensurável, uma "falsa incerteza", sendo definido a partir de uma distribuição de probabilidades de possíveis eventos futuros. Neste ambiente, é potencialmente factível aos agentes econômicos realizarem inferências sobre o futuro e tomarem decisões mais bem delineadas, de acordo com os payoffs, resultados, esperados. Ou seja, os contratantes podem inferir os riscos de determinado negócio e alocá-los no contrato da forma que lhes parecer economicamente mais eficiente.

Já em um ambiente de incerteza, nada se conhece sobre possíveis cenários futuros e seus potenciais resultados, sendo que eventuais decisões acabariam por ocorrer sem qualquer "bússola econômica".

Note-se, ainda, que existe uma distinção clara entre as situações arriscadas, cuja distribuição de probabilidades dos possíveis eventos não é conhecida, e as situações incertas, nas quais nem mesmo os casos possíveis são conhecidos. E este aspecto é fundamental para o quanto tratado e que trazemos aqui para reflexão.

Um momento de incerteza generalizada (como nos casos mencionados neste artigo) inviabiliza todo o processo de avaliação de risco para a tomada de decisão de se firmar um contrato. A ocorrência de um fato imprevisível no curso de uma relação contratual é diferente de se firmar um contrato, por exemplo, em um período de incerteza econômica.

Na primeira hipótese, boa parte dos riscos poderia ser avaliada; na segunda, os modelos se tornam praticamente inúteis. Os riscos oscilam de tal forma que, em vez de ajustes marginais, é possível que as partes, diante dos deveres da boa-fé, tenham de se empenhar em uma reestruturação e renegociação mais ampla. Para facilitar a compreensão, vejamos a explicação de Paul Krugman sobre incerteza:

"No entanto, a economia de mercado nem sempre consegue resolver os problemas criados pela incerteza. Mercados fazem muito bem em lidar com o risco, quando existem duas condições: quando o risco pode ser razoavelmente bem diversificado e quando a probabilidade de perda é igualmente bem conhecida por todos. Ao longo dos últimos anos, o aumento significativo de eventos climáticos extremos levou muitas seguradoras a reduzir drasticamente a cobertura de perdas relacionadas com o clima: já não acreditam que o lucro proveniente de áreas com clima bom vai compensar as perdas de áreas com furacões e tornados. Mas, na prática, muitas vezes, a segunda condição é a mais limitante. Os mercados têm problemas quando algumas pessoas sabem de coisas que outras não sabem, uma situação que envolve o que é chamado de informação privilegiada. Veremos que a informação privilegiada pode causar ineficiência, impedindo transações mutuamente benéficas de ocorrer, especialmente nos mercados de seguros." (Krugman, Paul; Wells, Robin. Microeconomia (p. 482). GEN Atlas. Edição do Kindle.)

A descrição de Krugman, por si só, já nos traz algumas questões que merecem uma reflexão mais profunda. A primeira delas é que ele reconhece que em um ambiente no qual os possíveis resultados são identificáveis e quantificáveis pela distribuição de probabilidade, o ajuste acaba sendo realizado pelo sistema de preços de mercado. No caso das seguradoras, por exemplo, o ajuste foi realizado pelo valor indenizável pelas perdas incorridas pelos segurados. Note-se que, neste caso, estamos tratando ainda de um contrato renovável a cada ano, no qual as partes gradativamente reajustam suas expectativas com base na mudança de eventos climáticos e renegociam preços periodicamente.

O ponto, então, é entender o que muda quando alteramos as hipóteses para um ambiente de total incerteza ou, no mínimo, de assimetria informacional, tal como o período relativo à pandemia de covid-19 ou, agora, a guerra na Ucrânia.

Na lógica da TEC - Teoria econômica de Contratos, descrita em Cooter, Robert. & Ullen, Thomas (Law & Economics, Sixth Edition, 2008, p. 291-292), um contrato seria perfeito ,ou completo, quando: I. todas as contingências fossem previstas; II. todas as informações relevantes fossem comunicadas; e III. o risco a elas associado fosse alocado de maneira eficiente. Mais ainda, um contrato seria eficiente quando: I. cada recurso negociado ficasse com aquela parte que mais o valorizasse; II. cada risco fosse alocado a quem pudesse arcá-lo ao menor custo; e III. quando as cláusulas definidas esgotassem as possibilidades de ganho mútuo, mediante a cooperação entre as partes.

Obviamente, este mundo ideal é raríssimo de se encontrar, sendo muito mais um referencial para balizar processos de negociações entre partes, elaboração de legislações contratuais e até decisões judiciais sobre a avalição de contratos firmados.

Sob o ponto de vista prático, a incompletude contratual é a regra e deriva fundamentalmente de dois aspectos: I. da racionalidade limitada dos agentes econômicos; e II. da existência de falhas de mercado. 

O primeiro deles, racionalidade limitada, está ligado ao fato de que os agentes econômicos têm, na maioria das vezes, dificuldade em obter e processar todas as informações necessárias para a celebração de um contrato eficiente. Há que se lembrar que negociar um contrato implica alocar riscos entre as partes.

Na realidade, a racionalidade limitada nos leva também à questão de como gerenciar os custos de transação. De maneira geral, ex ante, temos custos de negociar, redigir e salvaguardar acordos, que estão diretamente ligados à busca de informação e à análise das contingências possíveis. Já ex post existem custos de monitoramento, de se corrigir desalinhamentos construídos no momento inicial, etc. Custos ex ante e ex post são interdependentes e, portanto, devem ser tratados em conjunto. No fundo, a escolha envolve sempre uma comparação entre alternativas distintas. 

E, para tanto, quanto mais informações forem obtidas sobre possíveis contingências futuras, maior será a probabilidade de se constituir um documento mais eficiente, que represente o que as partes realmente desejam quando cooperam de boa-fé. Só que o problema é que buscar informação envolve custos não desprezíveis. Por essa razão, sob o aspecto de lógica econômica, a escolha deverá ser buscar informação até o ponto no qual o benefício marginal trazido pela nova informação se igualar ao custo marginal de procurá-la.

Dito de outra forma, se custo de alocar o risco ex ante for superior ao custo de alocar perda ex post multiplicado pela probabilidade de haver perda, é de se esperar que o contrato deixe lacunas a serem resolvidas no futuro, seja por renegociação, seja por arbitragem ou mesmo no Judiciário. A questão que se coloca é o que ocorre sob o ponto de vista prático quando entramos em um ambiente de total incerteza?

Ao nosso ver, quando isso ocorre, o custo de se buscar informação para se reduzir a quantidade de lacunas contratuais tenderá ao infinito e, mesmo assim, não será possível se prever a maior parte das contingências ou mesmo suas respectivas distribuições de probabilidades. Em outras palavras, identificar e alocar risco torna-se uma tarefa inglória em situações de total incerteza. Assim, é natural que muitos aspectos sejam deixados para uma possível solução posterior e o contrato se torne "pouco eficiente", no sentido estrito da TEC.

E este ambiente tenderá a piorar na presença de falhas de mercado e de "comportamentos oportunísticos" nas relações pactuadas. Em particular, havendo assimetria informacional entre as partes, a que mais sabe sobre o resultado potencial do contrato poderá não abrir todas as informações necessárias à avaliação adequada e tirar proveito disso, deixando lacunas ou criando cláusulas que desequilibrem posteriormente o contrato em seu favor.

Este seria um típico caso no qual a combinação entre incerteza, a falha de mercado sugerida por Krugman, assimetria informacional, associada à presença de comportamento oportunístico tornariam um contrato ainda menos eficiente. Neste contexto, desequilíbrios contratuais sobre o excedente cooperativo gerado, ganhos derivados do contrato, poderiam ser ainda mais potencializados em favor daquela parte que tem mais conhecimento sobre as características da transação envolvida.

No campo jurídico, o art. 113 do Código Civil, com a redação alterada pela Lei da Liberdade Econômica, pode ajudar a buscar soluções para esse tipo de situação, uma vez que preconiza uma interpretação do contrato que corresponda "a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração".

Não fosse só isso, a questão em análise implica na conclusão lógica de que os contratos assinados durante este momento de incerteza decorrente da pandemia de Covid-19 e guerra não seriam presumidamente paritários, art. 421-A.

Desse modo, do ponto de vista jurídico e econômico, não é razoável exigir o cumprimento de um contrato firmado nessas circunstâncias de incerteza econômica sem que seja realizada uma negociação em boa-fé. A recusa em negociar, considerando as circunstâncias do caso concreto, não há como se estabelecer uma regra geral a priori, pode conduzir à intervenção judicial ou arbitral no contrato, por meio de indenização, evitando, assim, o enriquecimento sem causa, art. 884, de um dos contratantes em detrimento do outro.

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Cleveland Prates

Sócio-Diretor da MicroAnalysis Consultoria Econômica, professor das disciplinas Fundamentos de Economia e Finanças e Microeconomia da FGV-Law e Coordenador do Curso de Regulação da Fipe.

Leonardo Corrêa

Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, graduado pela PUC-Rio, com LL.M pela University of Pennsylvania.

Mário Conforti

Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, graduado pela Universidade Candido Mendes - UCAM, com LL.M pela FGV Direito Rio.

Cleveland Prates

Cleveland Prates

Sócio-Diretor da MicroAnalysis Consultoria Econômica, professor das disciplinas Fundamentos de Economia e Finanças e Microeconomia da FGV-Law e Coordenador do Curso de Regulação da Fipe.

Leonardo Correa

Leonardo Correa

Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, LL.M pela University of Pennsylvania

Mario Conforti

Mario Conforti

Sócio de 3C LAW | Corrêa, Camps & Conforti, graduado pela Universidade Candido Mendes - UCAM, com LL.M pela FGV Direito Rio.

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