O PL 736/22 frente às experiências estrangeiras no controle estatal de transferência internacional de recursos para ONGs
Por que demandar transparência de ONGs e não o exigir para igrejas, clubes de futebol e outras pessoas jurídicas?
sexta-feira, 1 de abril de 2022
Atualizado às 14:48
O PL 736/22, apresentado à Câmara dos Deputados em 29/3/22, pretende estabelecer uma "Lei de Transparência para ONGs", focada no financiamento internacional de tais entidades.
Como advogado atuante e pesquisador do ambiente legal no campo de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos (OSC), tive a oportunidade de estudar e debater com colegas nacionais e estrangeiros o regime jurídico das OSCs em vários outros países e fóruns internacionais.
Quando discutimos controles nas transferências internacionais de dinheiro, nos deparamos com três tipos de controle: (i) aqueles baseados em fundamentos econômicos; (ii) aqueles baseados em soberania ou preocupações políticas; e (iii) aqueles baseados em acordos internacionais e compromissos dos Estados.
Vamos explorá-los.
Motivos econômicos
Todos os países devem ter reservas cambiais para solver suas obrigações internacionais e preservar o valor da moeda nacional. A necessidade de reservas cambiais sólidas é mais proeminente quando a autoridade monetária, geralmente o Banco Central, adota uma taxa de câmbio controlada ou fixa para sua moeda em relação ao dólar americano.
Sempre que um país implementa uma política cambial fixa ou controlada, enfrenta situações em que a oferta e a procura tendem a empurrar o valor da moeda nacional para baixo ou para cima. A taxa fixa funciona como uma barragem e, então, pode levar a saídas ou entradas de capitais que pressionam a taxa de câmbio. Esses fluxos dependem da percepção do mercado sobre o valor da moeda nacional e da capacidade do Banco Central de controlar a inflação e a taxa de juros naquele país e solver as obrigações do Estado.
As baixas reservas cambiais nacionais são vistas por agências de risco de crédito e organizações internacionais como um sinal de vulnerabilidade externa do país em questão. Leva o mercado a retirar recursos daquele país, reduzindo investimentos e empréstimos privados e elevando as taxas de juros ou garantias para transações comerciais, que, por sua vez, levam à desvalorização da moeda nacional, com impacto no comércio internacional e na inflação. Nesses cenários, os países impõem restrições à saída de moeda forte para preservar suas reservas cambiais.
Essa não é a situação do Brasil, que adota taxas de câmbio flutuantes desde 1999. Desde então, as reservas nacionais tiveram um crescimento constante e a moeda não sofreu ataques especulativos relevantes1. Não há ameaça internacional exigindo o controle de capitais no Brasil2. Além disso, cidadãos brasileiros e pessoas jurídicas podem ter ativos, investimentos e negócios no exterior e não há necessidade de obter autorização governamental para receber ou enviar ordens de pagamento internacionais.
Essa situação não se alterou no governo Bolsonaro, com Banco Central independente, livre fluxo de capitais, abertura comercial e economia de mercado.
Soberania ou preocupações políticas
Nenhum país gosta que outros países se intrometam em seus assuntos internos. O direito internacional garante isso.
A Assembleia Geral da ONU, por exemplo, aprovou duas declarações sobre o assunto: a Declaração de Relações Amistosas (UNGA res. 2625(XXV) 1970) e a Declaração sobre a Inadmissibilidade de Intervenção e Interferência nos Assuntos Internos dos Estados (UNGA res. 2131 (XX) 1965). Ambas incluem uma seção inteira sobre "O princípio relativo ao dever de não intervir em assuntos da jurisdição interna de qualquer Estado, de acordo com a Carta". Embora o termo mais comum seja "não-intervenção", "não-interferência" também aparece nos textos. Este último pode sugerir uma proibição mais ampla, embora na maioria dos contextos os dois termos pareçam ser usados ??de forma intercambiável.
A história mostra que vários Estados, à direita ou esquerda do espectro político, introduziram regras para impedir a interferência internacional em seus assuntos domésticos por meio de OSCs ou financiamento internacional para OSCs locais.
Podemos lembrar, à direita, o expurgo de Erdogan na Turquia, que "encerrou centenas de ONGs no país, alegando que elas apoiam grupos que se opõem ao governo, ou instituiu obrigações burocráticos de tal magnitude que tornam quase impossível para as ONGs internacionais funcionar"3. À esquerda, um exemplo marcante é o Decreto Executivo 16/2013 de Rafael Correa, no Equador, que resultou na "expulsão de 26 ONGs estrangeiras do país por falta de transparência e cumprimento da lei nacional; em suma, por se declararem "organizações não governamentais" enquanto atuam em nome de governos estrangeiros"4.
A esses dois exemplos, podemos adicionar uma infinidade de outros, de governos autoritários de ambos os lados do espectro político, conforme observado nos relatórios de países do Civic Freedom Monitor do International Center for Not-for-Profit Law5. Associar liberdade à Esquerda e controle à Direita, ou vice-versa, é, portanto, uma percepção equivocada. Controles de ONGs existem em estados autoritários, e não em democracias liberais.
Desde a queda de Pedro II, a incorporação de uma organização sem fins lucrativos no Brasil não enfrentou um controle governamental severo. A aquisição de personalidade jurídica independe de autorização do Estado e decorre do registro do ato de constituição e dos estatutos da entidade em cartório, procedimento de baixo custo que normalmente demora duas semanas. A obtenção de CNPJ é fácil, através de procedimento online simplificado. As associações podem ter membros estrangeiros e as OSC podem ter estrangeiros nos seus órgãos de gestão, desde que o interessado tenha residência legal no país. A aprovação governamental é necessária apenas em duas situações: incorporação de OSC como fundação privada, que depende do Ministério Público, e abertura de escritório local de OSC estrangeira sem incorporação de subsidiária local de acordo com a legislação brasileira, que depende de aprovação do Ministério da Justiça.
Todos esses procedimentos estão estabelecidos há muito tempo e, com exceção da obrigatoriedade de recadastramento de OSCs estrangeiras no Ministério da Justiça em 2008, durante a presidência Lula, o governo federal não alterou as regras devido às preocupações políticas.
Assim, o PL 736/02, ao propor controle do financiamento estrangeiro de organizações locais não se justifica, exceto para criar um factóide eleitoreiro. Não se coaduna com um país que pretende ser admitido na OCDE, organização onde há o primado das democracias liberais, inclusive de onde advém a maioria dos recursos doados para entidades brasileiras.
Mesmo assim, se a preocupação é política, convém lembrar que o envolvimento de OSCs em assuntos políticos foi proibido em 2015 pela Lei 13.204 promulgada durante a presidência de Dilma Rousseff, que estendeu a todas as OSCs a proibição que já existia apenas para aquelas qualificadas como OSCIP pela lei 9.790 promulgada em 1999, durante a presidência de Fernando Henrique. Portanto, qualquer envolvimento de OSCs, nacionais ou estrangeiras, em campanhas eleitorais e políticas, como referendos ou plebiscitos, é estritamente proibido e pode levar a sanções nos termos das leis eleitorais.
Acordos internacionais e compromissos do Estado
O Brasil faz parte de diversas convenções promulgadas para coibir lavagem de dinheiro, corrupção e financiamento do terrorismo. Os bancos brasileiros também são obrigados a cumprir diversas diretrizes sobre o assunto. Entre elas, é relevante citar as 40 Recomendações do GAFI e, entre estas, a Recomendação 8, que exige que os países revisem suas leis e regulamentos para garantir que as OSCs não sejam abusadas para o financiamento do terrorismo.
De acordo com o GAFI, "Organizações terroristas e organizações sem fins lucrativos têm objetivos muito diferentes, mas muitas vezes contam com capacidades logísticas semelhantes: fundos, materiais, pessoal e influência pública são recursos-chave para organizações sem fins lucrativos. As organizações terroristas buscam os mesmos recursos para promover sua causa, o que torna as organizações sem fins lucrativos vulneráveis ??a abusos por terroristas ou redes terroristas"6.
Com base nessas diretrizes, os bancos privados são obrigados a tomar medidas prudentes para verificar a identidade de seus clientes e avaliar os riscos potenciais associados aos seus ativos, transações e parceiros, que são conhecidos como KYC (Know Your Client). Inclui verificar listas internacionais de restrições e solicitar documentos e relatórios corporativos.
No Brasil, o Banco Central definiu as informações mínimas exigidas para abertura de conta bancária na Resolução 2025, que não impõe às OSC regras mais rígidas do que aquelas impostas às demais pessoas jurídicas, nem impõe aos gestores das OSC regras não exigidas às pessoas físicas em geral. A Resolução 2025 não estabelece uma lista de documentos obrigatórios, mas exige que os bancos estabeleçam controles internos, políticas e procedimentos suficientes para cumprir sua obrigação de impedir o uso de seus serviços para fraudes ou atos ilícitos. Portanto, as regras atuais do Banco Central - e, consequentemente, dos bancos privados - não impõem um escrutínio mais rígido às OSCs.
O sistema de controle financeiro é, portanto, suficiente, sendo totalmente desnecessário criar uma lei para a transparência das ONGs. Ademais, ao fazê-lo, o PL 736/2022 viola o princípio da isonomia, pois as normas do Banco Central se as atuais práticas consolidadas do sistema bancário, não diferenciam as OSCs de outras pessoas jurídicas. Por que demandar transparência de ONGs e não o exigir para igrejas, clubes de futebol e outras pessoas jurídicas?
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As reservas Internacionais cresceram de US$ 34 bilhões em 1999, quando a taxa flutuante foi adotada, para US$ 352 bilhões em março de 2022. Ver https://www3.bcb.gov.br/sgspub/consultarvalores/consultarValoresSeries.do?method=consultarSeries&series=13621.
2 De acordo com a lei 4131/1962, art. 38, o Banco Central está autorizado a intervir no mercado de câmbio, mas apenas em situações de grave desequilíbrio no fluxo de capitais.
3 Ver https://foreignpolicy.com/2017/08/03/inside-turkeys-ngo-purge/
4 Ver https://www.telesurenglish.net/news/Foreign-Funded-NGOs-in-Ecuador-Trojan-Horse-for-Intervention-20170217-0013.html
5 Ver http://www.icnl.org/research/monitor/index.html
6 Ver http://www.fatf-gafi.org/publications/methodsandtrends/documents/risk-terrorist-abuse-non-profits.html
Eduardo Szazi
Doutor em Direito Internacional, Vice-Presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB/PR e sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.