Solicitação e envio de fotos em currículos e a proteção dos dados sensíveis segundo a LGPD
Com a LGPD, a atenção para o cuidado com os dados pessoais permeou discussões e mudanças em diversas áreas, incluindo a preocupação com o processo de recrutamento e seleção.
quinta-feira, 31 de março de 2022
Atualizado em 1 de abril de 2022 08:03
No Brasil, não existe regra específica quanto a inserção de fotos no currículo. Algumas empresas veem vantagem, enquanto outras podem ver como uma forma de candidatos tirarem vantagens de sua aparência, assim como alguns candidatos veem vantagem na inserção de suas fotos, outros veem como prejudicial para a seleção, pois será levado em consideração mais que apenas a aptidão profissional do pretendente à vaga.
Mas, mesmo essa discussão ocorrendo nos Recursos Humanos das empresas, ela aprofundou-se com o advento da LGPD, que trata especificamente dos dados pessoais das pessoas físicas no país, neles incluídas as fotos e imagens destas, juntamente com a discussão: a foto é um dado sensível? Ou seja, um dado que necessita de uma tutela maior?
A Lei Geral de Proteção de Dados, em seu artigo 5º, define como dado sensível:
Art. 5º. II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;
Dessa definição aberta pode-se extrair muitas interpretações do que se enquadra ou não nesta espécie de dado. Uma destas discussões abrange os próprios dados biométricos, que são formas de reconhecer uma pessoa com maior facilidade, como a foto, desde que a face do titular possa ser reconhecida.
O art. 2º, II do Decreto 10.046/19 dispõe que os dados biométricos são "características biológicas e comportamentais mensuráveis da pessoa natural que podem ser coletadas para reconhecimento automatizado, tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar". Assim, é pacífico que a foto é um tipo de dado sensível por se enquadrar como dado biométrico.
Mesmo com tal entendimento, pouco se fala sobre a foto ser importante fonte de outros dados da mesma espécie: a origem racial, étnica e algumas vezes o caráter religioso. Pode-se reconhecer uma pessoa branca, preta, judia ou muçulmana por apenas uma fotografia.
Do reconhecimento de tais prerrogativas inerentes à esta pessoa emerge grandes mazelas, ainda não sanadas, da nossa sociedade - a discriminação, o racismo e a intolerância religiosa.
A este respeito, também cita Rodotá apud Mulholland:
[.] coletar dados sensíveis e perfis sociais e individuais pode levar à discriminação; logo, a privacidade deve ser vista como "a proteção de escolhas de vida contra qualquer forma de controle público e estigma social" (L. M. Friedman), como a "reivindicação dos limites que protegem o direito de cada indivíduo a não ser simplificado, objetivado, e avaliado fora de contexto" (J. Rosen)" (RODOTÀ, 2008, p.12).
Assim, sabendo que a foto é um dado sensível e que necessita de maior proteção, o que fazer quando existe a exigência de foto no currículo ou na ficha de inscrição?
Antes, precisamos demonstrar que desde antes da implementação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais já se falava na não discriminação como prerrogativa para recrutamento e seleção de pessoas.
Nesta senda, trata a Constituição Federal no caput de seu artigo 5º e a lei 9.029, em seu artigo 1°:
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)"
"Art. 1º. É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas" no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal. (Redação dada pela lei 13.146/15)".
Com redações parecidas, frisa-se ser proibida a distinção de qualquer natureza e qualquer prática discriminatória e limitativa para o sujeito acessar o mercado de trabalho. Acrescenta, ainda, a Consolidação das Leis do Trabalho:
Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:
I - publicar ou fazer publicar anúncio de emprego no qual haja referência ao sexo, à idade, à cor ou situação familiar, salvo quando a natureza da atividade a ser exercida, pública e notoriamente, assim o exigir;
Art. 461. Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, no mesmo estabelecimento empresarial, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, etnia, nacionalidade ou idade.
(...)
§ 6º No caso de comprovada discriminação por motivo de sexo ou etnia, o juízo determinará, além do pagamento das diferenças salariais devidas, multa, em favor do empregado discriminado, no valor de 50% (cinquenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
Assim, até antes da LGPD, a foto utilizada para fins discriminatórios poderia ser alvo de lides cíveis e/ou trabalhistas, pois, apenas em algumas hipóteses poderia se comprovar que a foto realmente era algo a ser considerado na avaliação do candidato (por exemplo: um modelo fotográfico) e não apenas para fins discriminatórios, escolhendo o candidato pela cor, credo ou peso, por exemplo, assim decidiu o TRT da 3ª Região:
DANOS MORAIS - DISCRIMINAÇÃO ESTÉTICA - A interferência da empregadora (ou da tomadora de serviços) na aparência física do empregado apenas se justifica em casos restritos, em que determinada condição do indivíduo seja capaz de interferir substancialmente no desempenho de sua função no trabalho. Não é justificável que, para exercer a função de porteiro da biblioteca da Universidade, o empregado seja proibido de usar cavanhaque. Tal conduta caracteriza abuso do poder empregatício, ato ilícito com o condão de atrair a responsabilidade civil das demandadas (artigos 186 e 927 do CC). (TRT-3 - RO: 01419201207103001 MG 0001419-13.2012.5.03.0071, Relator: Mauro Cesar Silva, Sétima Turma, Data de Publicação: 14/03/14).
Após o surgimento da LGPD, também existem possibilidades de sanções no âmbito administrativo, exatamente pelo mesmo motivo: a dificuldade para comprovar a necessidade, a finalidade e a adequação do requerimento deste dado sensível.
Para além, atualmente tramita na câmara dos deputados proposta que proíbe a exigência de foto em currículo para vaga de emprego. O projeto de lei 187/21 pretende proibir a exigência de fotografia em currículos ou fichas de inscrição em vagas de emprego. Caso aprovada, essa decisão vai fazer parte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), visto que tal prerrogativa não está expressa em texto de Lei.
O projeto visa acabar com o constrangimento de alguns candidatos que estão procurando emprego e relaciona-se muito bem com as diretrizes da Lei de Proteção de Dados seus princípios, que devem ser atendidos em todos os tratamentos em que os dados são envolvidos.
Mas e nos casos em que a empresa não exige a foto, porém o candidato envia mesmo assim? Também pode-se incorrer em não conformidade com a lei?
Sim. Mesmo que o candidato tenha enviado a foto de forma deliberada, existe o tratamento deste dado, - e deste modo, continua necessitando atender à todas prerrogativas elencadas pela LGPD.
O melhor a se fazer é evitar tal possibilidade e uniformizar a forma de colher os currículos ou o processo de recrutamento, seleção e admissão, observadas as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e da Consolidação das Leis Trabalhistas.
Implementar um canal direto no site da empresa ou a exigência de um padrão de currículo seria o ideal para evitar o tratamento de dados desnecessários, atentando-se ao cuidado com os dados e um processo de seleção com objetivo claro e atendendo as prerrogativas legais.
Em alguns países, como o Reino Unido, Alemanha e França é implementado o "currículo cego", onde apenas estão presentes as aptidões profissionais, sem mencionar nome, sexo, idade, - e muito menos, foto ou descrição física do candidato. A vantagem deste modelo de processo seletivo é a certeza que foi apenas levado em consideração o histórico curricular da pessoa, suas formações, experiências de trabalho, técnicas e habilidades e consequentemente a diminuição das chances de discriminação e futuros questionamentos em processos judiciais ou administrativo.
Em suma, a proteção e o cuidado com essa (e todas) espécies de dados é a efetivação da Lei e de direitos fundamentais do indivíduo e garante a regularidade e a efetividade do exercício da responsabilidade social da empresa. Além dessa regularização, evitando os supramencionados processos, ocorrerá também a promoção de diversidade e o respeito pelas diferenças dentro das organizações.
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BRASIL. Lei 9.029 de 13 de abril de 1995. Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm#:~:text=Art.,no%20inciso%20XXXIII%20do%20art. Acesso em: 17 de março de 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 17 de março de 2022.
BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm Acesso em: 17 de março de 2022.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 17 de março de 2022.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 187/2021. Proibida a exigência de anexar fotografia em curriculum vitae e fichas de inscrição. Brasília, Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2268898 Acesso em: 17 de março de 2022.
BRASIL. Decreto nº 10.046 de 9 de outubro de 2019. Dispõe sobre a governança no compartilhamento de dados no âmbito da administração pública federal e institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10046.htm Acesso em: 22 de março de 2022.
MINAS GERAIS. Tribunal Regional do Trabalho da 3º Região. Recurso Ordinário Trabalhista 01419201207103001 MG 0001419-13.2012.5.03.0071. Relator: Mauro Cesar Silva, Sétima Turma, Data de Publicação: 14/03/2014. Disponível em: https://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1147538088/recurso-ordinario-trabalhista-ro-1419201207103001-mg-0001419-1320125030071 Acesso em: 22 de março de 2022.
MULHOLLAND. Caitlin Sampaio. Dados Pessoais Sensíveis e a Tutela de Direitos Fundamentais: Uma Análise à Luz da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), 2018. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1603/pdf Acesso em: 16 de março de 2022.
SANTIAGO, Renato. "Currículo cego": uma ferramenta contra a discriminação ao trabalhador. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57884/curriculo-cego-uma-ferramenta-contra-a-discriminacao-ao-trabalhador Acesso em: 22 de março de 2022.
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: privacidade hoje, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1603/pdf Acesso em: 16 de março de 2022.
Jessica Fernanda Wurzius
Graduanda em Direito na UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Estagiária na área de Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais do Escritório Fonsatti Advogados Associados.