Blockchain, DeFi, NFTs, criptomoedas, smart contracts e anarco-capitalismo
Advogados podem ajudar engenheiros e programadores a construir smart contracts colaborando para trazer mais eficiência para as cláusulas. Podem, também, auxiliar corretoras de criptomoedas a construírem um sistema jurídico próprio capaz de lidar com os conflitos que venham a surgir.
quarta-feira, 30 de março de 2022
Atualizado às 13:50
Para esclarecer, não sou anarco-capitalista ("ancap"), mas conheço e hoje compreendo a filosofia. Concordando ou não com os ancaps, é impossível compreender blockchain, DeFi, NFTs e tudo o mais sem considerar a visão deles. Os ancaps idealizam um mundo sem Estado. Para eles, os indivíduos solucionarão as questões que lhes forem apresentadas sem necessidade do poder coercitivo estatal. Por exemplo, para eles a justiça pode ser privada e em uma competição entre sistemas, o mercado escolherá a mais eficiente.
Muito bem. É isso o que está ocorrendo no admirável novo mundo virtual. Vamos iniciar apresentando os personagens:
Blockchain é uma espécie de livro-razão compartilhado e imutável que facilita o processo de registro de transações e o rastreamento de ativos.
DeFi é uma tecnologia financeira emergente baseada em livros contábeis distribuídos de forma segura, similares aos utilizados pelas criptomoedas. O sistema remove o controle que os bancos e instituições têm sobre dinheiro, produtos financeiros e serviços financeiros1.
NFT é uma sigla para non-fungible token (token não fungível). Trata-se de um ativo criado a partir da tecnologia blockchain, servindo como identidade digital de um item. O NFT faz prova da autenticidade quanto a infungibilidade, tornando-o um bem único.
Criptomoeda são "moedas"2 digitais descentralizadas, ou seja, que não são controladas por algum órgão ou país em específico, criadas em uma rede blockchain. Trata-se de uma cadeia de dados criptografada que representa uma unidade de moeda. Ela é monitorada e organizada por uma rede peer-to-peer chamada blockchain, que também serve como um registro seguro de transações, por exemplo, compra, venda e transferência3.
Nada disso, atualmente, está devidamente regulado no Brasil, e, mesmo que estivesse, se pensarmos de forma tradicional, não há muito o que fazer com empresas que - em alguns casos - sequer existem como pessoas jurídicas formais e estão descentralizadas em países remotos.
Aliás, o caminho que vem sendo trilhado pelo legislador brasileiro é um atestado da falta de conhecimento sobre o tema. No dia 22 de fevereiro, uma comissão do senado aprovou um PL que tem a ambição de regular as criptomoedas. O documento, a bem da verdade, não soluciona nada e acaba criando custos de transação para as empresas nacionais, na contramão da ideia trazida no artigo 4º da Lei da Liberdade Econômica:
"Art. 4º. É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: IV - redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; e, V - aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios."
Qualquer iniciativa dessa espécie, para ter um mínimo de eficiência, precisaria ser transnacional, na forma de tratados, por exemplo. Um país sozinho não solucionará a questão, ao revés prejudicará o empreendedorismo interno, uma vez que as empresas sempre encontrarão um lugar no mundo para agir sem regras como a do PL brasileiro.
Conversando com a "turma de cripto", pode-se perceber, claramente, a orientação ancap. Eles se orgulham muito de uma aparente incapacidade de intervenção dos Estados, bem como de uma aparente proteção contra eles. Recentemente, por exemplo, a Suprema Corte do Canadá, da província de Quebec, tentou congelar Bitcoins da empresa Nunchuck.io e recebeu uma resposta debochada e desconcertante, vejam-se os seguintes trechos em tradução livre:
"Não coletamos nenhuma informação de identificação do usuário além dos endereços de e-mail. Também não temos nenhuma chave".
"Então: não podemos 'congelar' os ativos de nossos usuários; Não podemos 'impedir' que sejam movimentados; Não temos conhecimento da 'existência, natureza, valor e localização' dos ativos de nossos usuários. Isso é by design."
"Por favor, verifique como a auto-custódia e as chaves privadas funcionam"
"Quando o dólar canadense perder o valor, estaremos aqui para atendê-lo também."
O discurso é ancap, sem sombra de dúvidas, mas ele não é economicamente eficiente. Há diversos casos de Wallets Digitais (onde se guardam criptomoedas) que são afanadas, deixando clientes atônitos. Logo, a consequência a médio prazo seria afastar pessoas desse mercado diante da falta de segurança para indivíduos que não são experts no tema.
Diante disso, alguma forma de sistema jurídico, mesmo que fora do Estado, se faz necessária. A confiança dos não iniciados é um combustível de capital que não pode ser ignorado. Ele terá o condão de expandir esse mercado de forma brutal, trazendo recursos que irão promover uma expansão ainda maior. Alguma segurança jurídica, por menor que seja, ajuda o crescimento dos mercados.
Mas, infelizmente, ela não virá do sistema Kleros, que decide as disputas no Blockchain por meio de jurados. Há uma diferença enorme entre a justiça de jurados da que ocorre por meio das regras legais. Jurados, na grande maioria das vezes, decidem com base em emoções, e, portanto, suas decisões podem ser mais imprevisíveis. Não fosse só isso, o sistema não cria e não se baseia na ideia de precedentes, desperdiçando o aprendizado decorrente de julgamentos anteriores.
Some-se a isso que estão sendo criados smart contracts - contratos digitais programáveis -, ou linhas de código de um programa. Esses smart contracts têm a capacidade, em certa medida, de gerar uma execução de forma autônoma, sem a necessidade de intervenção humana. Isso funciona em transações instantâneas que o correm nos Blockchains. Todavia, encontra problemas quando envolvem o mundo real ou em contratos distintos de médio e longo prazo com execução diferida. Nesses casos, eles podem perder eficiência se não contemplarem, por exemplo, estruturas contratuais tradicionais e formas de solução de disputas diferente do modelo de júri sem Lei do Kleros. Vale lembrar que, segundo a filosofia ancap, é possível usar a arbitragem, ao invés dos tribunais estatais, e, portanto, essa pode ser uma alternativa. Mas, para aumentar a segurança jurídica, será preciso ter uma arbitragem com recursos e precedentes (talvez, inclusive, com precedentes vinculantes).
Vê-se, portanto, que advogados podem ajudar engenheiros e programadores a construir smart contracts colaborando para trazer mais eficiência para as cláusulas. Podem, também, auxiliar corretoras de cripto moedas a construírem um sistema jurídico próprio capaz de lidar com os conflitos que venham a surgir. Tudo isso sem qualquer prejuízo para a filosofia ancap. Por fim, advogados podem ajudar os que forem lesados, pois há sempre a possibilidade de, como dizem os americanos, follow the money (seguir o rastro do dinheiro) nos blockchains até eles chegarem no mundo físico. Há empresas de investigação que prestam esse serviço, e permitem auxiliar a efetividade de decisões judiciais. É um novo universo de trabalho profundamente interessante, que venham mais avanços tecnológicos.
1 https://www.investopedia.com/decentralized-finance-defi-5113835 e https://www.coinbase.com/learn/crypto-basics/what-is-defi
2 Como elas não têm curso obrigatório, ninguém é obrigado a aceitá-las como pagamento, sob o aspecto jurídico seria melhor defini-las simplesmente como bens.
3 https://www.trendmicro.com/vinfo/us/security/definition/cryptocurrency