O PL 442/91 e o futuro dos jogos de azar no Brasil: normas, fiscalização e aplicações de sanções
A análise das implicações e dos desafios da atividade reguladora no setor de jogos de azar no Brasil.
quinta-feira, 17 de março de 2022
Atualizado em 23 de março de 2022 07:47
Introdução
O presente artigo pretende elucidar de forma concisa os aspectos relevantes do projeto de lei 442/91 que autoriza e regula os jogos de azar no Brasil. Trata-se de uma abordagem sobre a possibilidade de ser criada uma agência reguladora do setor e seus efeitos nas demais áreas do Direito, especialmente o penal, como consequência de atos e fatos que fomentam a abrangência de pensamentos relacionados ao tema proposto.
Dessa maneira, cita-se, por exemplo, sua dupla importância: por um lado, atua no raciocínio a trilhos inicialmente traçados, de modo a estabelecer considerações que se dirijam, contínua e gradualmente, ao estudo dos jogos, tais como questões de mérito, criação de normas específicas, fiscalização e sanções administrativas; e, por outro lado, presta-se como expediente para que o leitor possa conferir a visão, a compreensão e as considerações do autor sobre o impacto no país.
Informa-se, por oportuno, que o estudo tem seu ponto de partida nas considerações sobre a aprovação do projeto de lei no congresso nacional autorizando cassinos, bingos, jogo do bicho e apostas esportivas e a discussão polêmica sobre o tema.
Na sequência, observa-se o delineamento de notas relevantes sobre o projeto e a possibilidade de um marco regulatório dos jogos no Brasil, bem como o desenvolvimento das atribuições normativas, fiscalizatória e sancionatória realizadas pelas agências. Ademais, o estudo prossegue com observações relacionadas ao impacto do modelo no combate ao crime dentro do setor de jogos de azar.
Percorrido o devido itinerário, espera-se que o leitor adquira compreensão natural e entendimento cristalino para formar opinião sobre a autorização e regulação dos jogos de azar e seus reflexos para a coletividade sob o prisma do Direito.
2. Câmara dos deputados aprova o projeto de lei 442/91
A Câmara dos Deputados aprovou no fim de fevereiro de 2022 o projeto de lei 442/91 que autoriza e regula os jogos de azar no Brasil, incluindo cassinos, bingos, jogo do bicho e apostas esportivas. O atual presidente da república, eleito no ano de 2018, afirma que exercerá, em momento oportuno, seu direito de veto. Contudo, a perspectiva é que a aprovação seja rerratificada pelo Poder Legislativo, quando a pasta eventualmente vetada voltar ao congresso.
2.1 A polêmica sobre os jogos de azar no Brasil
O tema é polêmico, porquanto a atividade em si carrega forte estigma negativo noticiado pela mídia, em especial quando se fala do jogo do bicho e a guerra urbana promovida pelos chamados herdeiros da contravenção, ou seja, pessoa - normalmente da mesma família ou com afinidade de parentesco - que sucederam os contraventores das décadas passadas e hoje vivenciam conflitos armados na busca pelo controle do mercado ilegal dos jogos. Constituindo verdadeiras organizações criminosas, os herdeiros da contravenção acabam por promover mortes e violência nas maiores cidades do Brasil, notadamente no estado do Rio de Janeiro.
Outrossim, a sociedade é marcada pelo moralismo e a necessidade de influenciar na individualidade do cidadão, em especial quanto aos limites que os indivíduos possuem com as apostas, que podem eventualmente
ultrapassar o lazer lúdico e o entretenimento; causando, portanto, inegável efeito negativo. Assim, durante anos, a exploração de jogos de azar foi proibida, sob o argumento que os jogos ofereciam perigo para a coletividade, haja vista que essa prática abarcava nocividade e ultraje à moral e aos bons costumes, além da potencial lesividade à pessoa viciada nos jogos.
Em que pese o movimento de oposição, existem aqueles que defendem e apoiam com fundamentos diversificados: não é o fato de o jogo estar na ilegalidade que vai impedir o jogador patológico de jogar, assim como nenhum
outro vício deixa de existir pelo fato de ser proibido. Para os defensores desses jogos, os males decorrentes do jogo proibido estão diretamente relacionados à própria ilegalidade e que se trata de uma prática disseminada globalmente com diversos modelos de marcos regulatórios que a disciplinam, desde a tributação até os locais onde pode ser explorado e os requisitos que cada estabelecimento precisa seguir, gerando emprego e renda decorrentes de novas frentes de trabalho e, por conseguinte, desenvolvimento social.
Devido aos argumentos contundentes de ambos os lados, é certo que a matéria precisa ser amplamente discutida por diversos setores da sociedade e, em caso de validação, necessitará de intensa regulação.
2.2 O CONTROLE DA ATIVIDADE ECONÔMICA PRIVADA PELO ESTADO VIA MODELO REGULATÓRIO DAS AGÊNCIAS
Nesse sentido, importa esclarecer que a atividade de jogos e apostas é considerada de cunho econômico tipicamente privado, mas sujeita ao controle do Estado. O PL 442/91 apresenta as finalidades e diretrizes para a intervenção do Estado, por meio do modelo regulatório, e uma das principais é a "consecução do interesse nacional", de modo que a exploração sirva de instrumento de fomento ao turismo, à geração de emprego e de renda e ao desenvolvimento regional, coerentes com os objetivos fundamentais da república.
Em relação à organização do mercado, este será regulado e supervisionado pela União, por meio de "órgão regulador e supervisor federal", a ser definido em lei própria. Logo, o Direito Regulatório será um instrumento eficiente para acionar alertas em relação à prática abusiva, favorecendo, inclusive, a imposição de limites e controles na ação dos indivíduos, além de colaborar com a prevenção das práticas de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo, bem como complementado tipos penais, em seus preceitos primários, quando diante de lei penal em branco.
Atualmente, o que existe formalmente é a vedação da prática dos jogos de azar, conforme descrito na Lei das Contravenções Penais (decreto lei 3.688/41), que tipifica a matéria em seu capítulo VII ao dispor sobre contravenções relativas à polícia de costumes. Não obstante, a União tem o monopólio sobre a exploração das loterias, verdadeiros jogos de azar; assim verificados com uma simples análise do modus operandi de sua prática.
Hoje, é fácil se deparar com bancas do jogo do bicho nas ruas dos grandes centros urbanos do país, haja vista que o poder público, negligentemente, não empreende força estatal no combate a essa atividade. O jogo está sedimentado na sociedade brasileira e o mercado ilegal existe, restando uma repressão ineficaz. Na contramão, existem experiências bem-sucedidas no mundo, lugares onde o jogo de azar é legal e intensamente controlado por regulamentação própria eficiente.
Independente da discussão sobre o mérito, merece destaque o fato de o projeto de lei citar a necessária criação de uma agência reguladora específica para o setor e uma minuta de resolução com as regras concretas de conduta que serão exigidas dos estabelecimentos de exploração.
A legalização do jogo de azar no Brasil consiste em fato social relevante e reflete na formação da noção do Direito, porque faz surgir necessária e fundamental regulamentação como condição para sua existência. Com isso traz à tona a possibilidade real de punição àqueles que se mostrarem contrários às normas forjadas para preservação de bens jurídicos importantes para a vida social. Sendo certo que ilícitos existirão, necessária é a imposição de sanções adequadas, bem como aplicação de outras medidas destinadas à prevenção ou à repressão da ocorrência de fatos lesivos aos cidadãos.
Na oportunidade de sua elaboração e trâmite legislativo, o PL 442/91 expõe a criação de uma agência reguladora e, por isso, é imprescindível tratar do Direito Regulatório, parte integrante do Direito Administrativo, e que pertence ao ramo do Direito Público, tendo este por objeto as regras e princípios aplicáveis à atividade administrativa. Com isso, demonstra-se que limites deverão ser estabelecidos à administração pública no exercício da sua intervenção na atividade de jogos de azar, com o fim de evitar arbítrios sem fundamentação legal; além do fomento do principal objetivo que é a satisfação de direitos fundamentais e garantia da ordem econômica, na forma do art. 170 da Constituição Federal.
Logo, caberá ao Estado atuar, como "agente normativo e regulador", no mesmo sentido do art. 174 da CF/88, editando atos normativos, fiscalizando e aplicando sanções. Aos poderes executivo e legislativo caberá regular as relações dos indivíduos com a sociedade, definindo e aplicando normas, além de disciplinar as relações jurídicas delas derivadas.
Tratando-se da aplicação de sanções pela agência reguladora no âmbito de uma atividade privada com reflexos na coletividade, vale destacar que a missão do Direito Público é, também, limitar o controle do poder estatal, por meio do princípio da legalidade, evitando, por conseguinte, a concentração de poderes nas mãos de um mesmo órgão, resguardando aos administrados os bens jurídicos tutelados.
É certo que a administração irá se deparar com a necessidade de impor punições aos administrados, valendo-se de suas competências e na posição de supremacia frente aos particulares. Com o fim de assegurar a higidez da ordem pública e o eficaz funcionamento dos serviços que estarão a seu cargo, utilizará, por exemplo, dos poderes de polícia e hierárquico, em relação a terceiros e aos seus vinculados, respectivamente; conforme o caso concreto, ante a necessária preservação do interesse coletivo.
Nesse contexto, surge o Direito Penal administrativo que "tende ao estabelecimento das infrações administrativas, necessárias para o funcionamento da administração pública, e o seu adequado regime de sanções"1 - ferramenta a ser utilizada para punir, basicamente, comportamentos que infrinjam deveres de obediência ou de colaboração dos indivíduos para com a atividade dos entes públicos na busca do interesse geral.
Insta ressaltar que a sanção administrativa não se confunde com a do Direito Penal comum, visto que a função de punir das diferentes áreas do Direito é própria. Observa-se que, diante de um delito, como o de lavagem de capitais e uma infração administrativa, no âmbito dos jogos de azar, existirão punições distintas e independentes a serem aplicadas, pois no âmbito do Direito Penal caberá ao poder judiciário aplicar sanções destinadas ao combate dos delinquentes e, no âmbito do Direito Administrativo sancionador, caberá a administração pública controlar sua organização e eventual aplicação de sanção administrativa.
Ressalta-se, ainda, o fato de que o estabelecimento de uma agência reguladora no Brasil norteando as questões inerentes aos jogos de azar, com regras e imposição de sanções, deverá caminhar por trilhos regidos por princípios penais, tais como legalidade, tipicidade, culpabilidade, proporcionalidade, retroatividade da norma mais favorável e non reformatio in pejus; a fim de que sejam assegurados atributos ao ato estatal que validem eventual processo administrativo sancionador. Inclusive porque, a partir da CF/88, o Direito Administrativo passou por um importante processo de constitucionalização, visando a ser cada vez mais justo. Logo, na possibilidade desse novo cenário, havendo ofensas a bens jurídicos, as áreas do Direito trabalharão lado a lado.
2.3 A AGÊNCIA REGULADORA EM COOPERAÇÃO NO COMBATE AO CRIME
Outro ponto a ser destacado é o poder-dever da agência reguladora de informar aos órgãos de persecução penal indícios e/ou elementos relacionados com práticas criminosas, fomentando, através do envio de informações, investigações criminais, em verdadeira cooperação interinstitucional e até internacional, com o escopo de inibir a prática da lavagem de capitais, evasão de divisas, sonegação fiscal, terrorismo etc.
O PL que busca autorizar jogos de azar proíbe às operadoras desses jogos praticarem diversos atos, entre os quais: fazer publicidade ou propaganda de jogos e apostas com informações infundadas sobre probabilidades de acerto, associando o jogo ao êxito social ou à resolução de problemas financeiros ou que ofendam os contrários ao jogo; fazer publicidade ou propaganda com a participação de criança ou adolescentes ou a eles dirigidas; conceder adiantamento para realização de jogo; firmar parceria com empresas de crédito ou deixá-las atuarem em seu estabelecimento; manter máquina de jogo que funciona com cédulas ou moedas; pagar ou receber valores por meio de instituição financeira ou de pagamento não autorizadas a funcionar pelo Banco Central.
Além das proibições mencionadas, também tipifica crimes: explorar qualquer forma de jogo sem atender aos requisitos da lei: reclusão de 2 a 4 anos; fraudar, adulterar ou esconder resultado de jogo ou pagar prêmio em desacordo com a lei: reclusão de 4 a 7 anos e multa; permitir o ingresso de menor de 18 anos em recinto de jogo ou que ele participe de jogos: detenção de 6 meses a 2 anos e multa; realizar transações financeiras com empresas de jogos eletrônicos estrangeiras: reclusão de 4 a 7 anos e obstruir os trabalhos do órgão fiscalizador: reclusão de 1 a 3 anos e multa.
Outra tarefa importante que caberá à agência reguladora dos jogos de azar será a sua contribuição na tipificação de condutas criminosas, realizando verdadeira simbiose entre os campos do Direito Público Administrativo e Penal, como já acontece na técnica legislativa da norma penal em branco.
O referido fenômeno demonstra que, excepcionalmente, a norma administrativa auxiliará na tipificação de delitos complementando o preceito primário da norma penal - anotando-se que só a União pode legislar sobre Direito Penal (art. 22, I, da CF/88) - conforme aconteceu, por exemplo, com o art. 268 do Código Penal ao ver a conduta criminosa perpetrada após o descumprimento da medida sanitária preventiva determinada pelo poder público, através de regulamentos e portarias oficialmente publicados, durante a pandemia do covid-19.
Deste modo, ao órgão regulador, caberá trazer complementação à tipificação de crimes, consistindo na possibilidade de adequação da conduta ao tipo penal quando depender da descrição da norma administrativa editada.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dado o explicitado, infere-se que, através do modelo regulatório das agências, conforme previsão expressa no art. 174 da CF/88, pretende o Estado definir o futuro dos jogos de azar no país. Isto porque o PL 442/91, ao determinar a criação de um marco regulatório dos jogos de azar, busca controlar a atividade privada, via criação de uma autarquia com regime jurídico especial, dotada de autonomia administrativa e financeira, revestida de poder de polícia, normativo e fiscalizatório; atuando com caráter técnico apto a controlar e organizar o setor.
Além disso, almeja-se que a atividade regulatória pretendida trabalhará em parceria com outras áreas do Direito, especialmente com a Penal, fornecendo aos órgãos de persecução penal informações relevantes, bem como expedirá diretrizes que integrarão normas incriminadoras. Ou seja, pretende-se, no futuro, inibir diferentes espécies de crimes ligados ao segmento dos jogos por meio de um trabalho de cooperação interinstitucional e internacional da agência com os demais entes.
Por fim, buscou o legislador, então, controlar o mercado privado fixando limites e garantindo a irradiação dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, priorizando maior eficiência no setor privado dos jogos de azar no país, através da intervenção do Estado, via modelo regulatório.
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1 "Tiende al estabelecimento de las infracciones administrativas, necessarias para el funcionamento de la Administración Pública, y a su adequado régimen de sanciones" (Derecho Administrativo: doctrina, legislacion y jurisprudencia. 4.ed. Cidade do México: Libreria de Manuel Porrua S.A., 1949. 1.2, p. 1.125)
2 https://www.camara.leg.br/noticias/854027-plenario-conclui-votacao-do-projeto-que-legaliza-jogos-de-azar-veja-como-ficou-o-texto/
3 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15460
4 https://www.camara.leg.br/noticias/854137-exploracao-de-jogos-sem-autorizacao-previa-estara-sujeita-a-penalidades/
5 https://www5.trf5.jus.br/documento/?arquivo=Sancaes+Administrativas+e+princ%EDpios+de+direito+penal+-+RIPE.pdf&tipo=p2603
6 https://download.uol.com.br/files/2021/12/2384344147_parecer_plenario_pl44291_felipecarreira_v5.pdf
7 https://www.migalhas.com.br/depeso/1007/agencias-reguladoras,
8 ARAGÃO, Alexandre Santos de, 1969- Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico / Alexandre Santos de Aragão.- Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 19 e ss.
9 JESUS, Damásio E. de, 1935- Direito Penal, volume 1: parte geral / Damásio E. de Jesus.-28ª ed. rev.- São Paulo: Saraiva, 2005.
10 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Novo perfil da regulação estatal: Administração Pública de resultados e análise de impacto regulatório / Rafael Carvalho Rezende Oliveira. - Rio de Janeiro: Forense, 2015.
11 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo / Rafael Carvalho Rezende Oliveira. - 6ª ed. rev., atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.