O princípio da licença prévia para construir
O planejamento e o controle do aproveitamento urbanístico do solo operado por qualquer agente é dever constitucional da prefeitura.
sexta-feira, 11 de março de 2022
Atualizado às 11:26
1. No livro "Les principes d'urbanisme", Hubert Charles, antigo magistrado francês, destaca o princípio da autorização administrativa antes de qualquer construção imobiliária dentre os princípios que regem as autorizações individuais de utilização do solo urbano. Localiza a fonte desse princípio no art. L.421-1 do Código de Urbanismo francês. Este é o texto atual da norma, com adaptação ao nosso sistema, em vigor desde 2007: "As construções, mesmo que não comportando fundações, devem ser precedidas da concessão de uma licença de construir. Uma decisão do Conselho de Estado fixa a lista de trabalhos executados sobre as construções existentes bem como as mudanças de destinação que, em razão de sua natureza ou sua localização, devem ser igualmente ser precedidas da concessão de tal licença".
Não foi essa norma específica a que se referiu Hubert Charles porque, em 1993, vigorava na parte legislativa do Código de Urbanismo francês este outro preceito, mais curto, que tem o mesmo sentido básico: "Quiconque désire entreprendre ou implanter une construction à usage d'habitation ou non, même ne comportant pas de fondations, doit, au préalable, obtenir un permis de construire" ("Quem desejar empreender ou implantar uma construção para uso habitacional ou não, mesmo não comportando fundações, deve, previamente, obter uma licença de construir").
2. O fato é que tal princípio - afirmando a necessidade de autorização administrativa prévia antes do início de qualquer obra arquitetônica - permanece válido: qualquer intervenção no espaço urbano depende da concordância do Poder Público, concordância que se estabelece a partir da vinculação entre projeto arquitetônico e plano urbanístico. E no Brasil, onde tal princípio também existe com certeza (embora muito pouco trabalhado pela doutrina), como se manifesta? Em primeiro lugar, ele decorre do art. 30/VIII da Constituição Federal que estabelece a competência municipal para promover o ordenamento do território municipal mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Ora, ocupar o lote significa, em última instância, construir, lançar sobre o solo natural uma edificação. Portanto, a construção para ser legal há de ter licença da autoridade competente para analisar a inserção harmônica dela no contexto da cidade: esta autoridade é a municipal e a harmonia é ditada pelo plano local de urbanismo.
No entanto, será melhor falar-se, mais amplamente, em "atividade edilícia", ou seja, em princípio da licença prévia para atividade edilícia porque não se trata apenas de construção, mas também de outras atividades como reforma ou demolição, ambas de obras pré-existentes. Construção (ou reconstrução de edificações atingidas por sinistros), reforma ou demolição são obras materiais que dependem de licença edilícia porque impactam este sistema complexo que é a cidade: há interesse público nessas atividades, que precisam ser controladas como manda a CF.
3. Assim, são nos códigos de obras - leis municipais ou locais - que vamos encontrar as melhores traduções do princípio em nosso ordenamento jurídico. Por exemplo: o Código de Obras do Distrito Federal (Lei distrital nº 6.138/18) estabelece de modo claro e sintético no art. 22: "Toda obra só pode ser iniciada após a obtenção da licença de obras, exceto nos casos de dispensa expressos nesta Lei". Mais extensamente redigida, em Presidente Prudente, a Lei Complementar nº 234/18 (também Código de Obras), determina logo no art. 1º: "Toda execução de obras, construção, reforma, ampliação ou demolição no Município de Presidente Prudente será regida por esta Lei e deverá ser executada mediante aprovação de projeto técnico pela Prefeitura Municipal de Presidente Prudente e após obtenção do respectivo alvará".
No Município de São Paulo, o Código de Obras e Edificações (Lei nº 16.642/17) fixa o princípio ainda que de modo indireto, ao estabelecer, no art. 12, que: "A atividade edilícia depende de controle a ser exercido por meio da emissão de alvará, certificado, autorização ou registro em cadastro de acordo com o tipo de obra, serviço e equipamento a ser executado ou instalado, mediante procedimento administrativo e a pedido do interessado". Dois aspectos devem ser destacados desse texto: a norma fala genericamente de "atividade edilícia" e, de outro lado, está focada na ideia forte de "controle" que implica adequação ou harmonia com um dado padrão. Em comparação com as normas anteriores, veja-se que o texto paulistano e prudentino falam em "alvará" quando se sabe que este termo é abrangente e designa um consentimento do Poder Público em diversas outras hipóteses: a norma do Distrito Federal é que dispõe corretamente. Fala-se em "alvará" como se fala, por exemplo, em "decreto".
4. Portanto, o princípio da licença prévia para executar atividade edilícia faz parte, sem dúvida, do nosso ordenamento, decorre diretamente do texto constitucional mas só será declarado e exigido, formalmente, nos códigos de obras municipais. E tais códigos fixam tanto essa regra quanto suas exceções. Este será um ponto importante. Em outras palavras, o Município não poderia, por força do art. 30/VIII, dispensar a licença em todos os casos porque isto significaria não efetivar o planejamento urbano ao qual o ente local está obrigado pela CF. Por exemplo: uma edificação nova em lote não edificado - que será um caso típico de exigência - requererá, em qualquer caso, a obtenção da licença prévia que é expedida mediante alvará.
No entanto, de outro lado, nas múltiplas hipóteses daquela atividade, no caso de obras de baixo impacto urbanístico poderá afastar-se o princípio em nome da irrelevância da obra para a cidade, dispensando o controle. Ou seja, a obra causará impacto tão pequeno, que dispensa a necessidade da licença porque ela - a obra - não irá trazer consequências relevantes para o ordenamento da cidade. Por exemplo: colocação de grades e telas de proteção ou pintura interna. Nesse sentido, a legislação paulistana, na mesma lei, estabelece no art. 13/§ 1º um rol de atividades que são consideradas de baixo impacto, assim, v.g,. construção e demolição de obras complementares à edificação com área construída de, no máximo, 30,00 m²; construção de muro no alinhamento e de divisa; construção de muro de arrimo com altura máxima de 2,00m, etc.
O princípio, assim, admite exceções. Na França - que tem código nacional de urbanismo desde 1954 -, elas são as construções de pouca importância ou pouca duração ("faible importance" ou "faible durée"), listadas, às dezenas, no art. R421-2/5 do Código (como o muro de fechamento do lote, "clôture"). Tanto na França quanto no Brasil as listas das exceções são exaustivas. Mas é importante ressaltar que deixa de haver dispensa da licença em se tratando de sítios históricos ou de espaços protegidos por razões ambientais.
5. Professora da Sorbonne, Jacqueline Morand-Deviller, depois de definir o "permis" como "a autorização dada pela Administração Pública de levantar uma edificação apenas depois de se ter verificado a conformidade do projeto às regras urbanísticas", destaca as características dela, que se extraem do princípio geral da licença prévia. Vamos, aqui, comentar cada uma delas, sobretudo em relação com o ordenamento nacional:
a) universalidade e generalidade - o princípio vale para todas as pessoas e todas as edificações que se pretendam levantar no espaço urbano. Porém, diversos municípios dão certos privilégios para as edificações públicas, nos três níveis de governo. É o que faz a lei de zoneamento de Presidente Prudente ao dispor que "serão admitidos em qualquer zona os postos de saúde, centros de saúde, creches, ensino pré-escolar, escolas de ensino fundamental e médio, e órgãos da administração pública municipal, estadual e Federal". (art. 14 da LC 231/18). A norma parece claramente inconstitucional porque viola as características de generalidade e universalidade da licença vinculada ao plano mas o Ministério Público nunca a questionou.
b) caráter real - não existe um direito abstrato à licença: a licença é concedida, num dado momento, em função de certo lote identificado no projeto: é dizer: é concedida em função de certo lote e certo projeto. Isto significa aplicação de um princípio do Direito Urbanístico que diz que as normas urbanísticas são patrimoniais, ou seja, agarram-se ao solo e não ao titular dele. Não se pode conceder a licença senão a partir de um lote específico, de um projeto arquitetônico específico para aquele lote, sendo irrelevante para tal quem seja o seu proprietário;
c) conformidade às regras de urbanismo - diz o Código de Urbanismo francês que a autorização só pode concedida se o projeto atender às disposições legislativas concernentes "à implantação das construções, sua destinação, sua natureza, sua arquitetura, suas dimensões, seus equipamentos e a ordenação do espaço vizinho" (art. L. 421-3). No Brasil, a preocupação não é objetivamente tão extensa (não há, aqui, controle da qualidade do projeto arquitetônico, por exemplo), mas, por força do nosso federalismo trino, o projeto deve atender, de modo vinculado, às leis de urbanismo nacionais, estaduais e municipais;
d) independência às regras do direito privado - a licença edilícia não interfere com qualquer direito que outro tenha em relação ao imóvel. O art. 4º do COE paulistano, deixa claro no Parágrafo único - "O licenciamento de projetos e obras e instalação de equipamentos não implica o reconhecimento, pela Prefeitura, do direito de propriedade ou posse sobre o imóvel". Ou seja, a licença não é modo de aquisição da propriedade e, assim, se houver alguma disputa entre particulares a respeito da posse ou propriedade do imóvel, a obtenção da licença não modificará em nada esta disputa. Por isso que ela é concedida "sous réserve du droit des tiers" (Morand-Deviller);
e) relação entre licença e direito de propriedade - a licença decorre do direito de propriedade do lote. Assim, a edificação até o potencial construtivo básico do lote será gratuita e constituirá direito subjetivo do proprietário. Depois desse patamar é que há um descolamento parcial e o direito de construir deve ser adquirido da Prefeitura porque exatamente excede, ultrapassa, aquilo que é permitido para todos os proprietários dentro da mesma zona (v. art. 28 do Estatuto da Cidade que trata da outorga onerosa do direito de construir).
E caberia acrescentar a marca da definitividade porque a licença edilícia não é precária tal como é, por exemplo, a licença para instalação de quiosques, estandes ou cabines (todos expressão de arquitetura de obras efêmeras) em áreas privadas. Uma vez concedida, o proprietário do lote terá segurança de que pode iniciar e terminar as atividades materiais de implantação do projeto, ou seja, o levantamento da edificação. Entretanto, se demorar muito para fazê-lo, ou se interromper a obra, poderá ocorrer a "caducidade" da licença, ou seja, ela perderá a validade. Em São Paulo, o prazo de validade tanto do alvará de aprovação quanto de execução é de dois anos (quando expedidos em conjunto, quatro anos): depois desse prazo, a licença precisará ser "revalidada" de acordo com a lei urbanística vigente na data da "revalidação" - e que, na verdade, é uma nova licença.
6. Portanto, a conclusão é a de que (a) o planejamento e o controle do aproveitamento urbanístico do solo operado por qualquer agente é dever constitucional da prefeitura; por consequência, como regra, (b) qualquer pessoa que pretenda intervir no espaço urbano depende de licença da Prefeitura que irá verificar, previamente, a conformidade entre o projeto e o plano urbanístico, entre iniciativa privada pontual e lei de ordenação geral; (c) este princípio é geral mas, conforme o Município, admitirá exceções que precisam ser detalhadamente previstas porque são situações que, de acordo com a lei, não impactam de modo significativo o contexto urbano: são obras de pouca importância ou de baixo impacto que precisam ser listadas por configurarem exceções à regra. Fora disso, estamos diante da construção ilegal - aquela iniciada ou concluída sem a concordância prévia do poder público - que leva à sanção de demolição, sanção grave porque onerosa. O art. 133/§ 4º da lei do Distrito Federal, acima referida, determina a demolição imediata, mesmo sem processo judicial, em caso de construção ilegal sendo levantada em área pública: "Em obras iniciais ou em desenvolvimento em área pública, cabe ação de demolição imediata pelo órgão de fiscalização de atividades urbanas".
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1 CASTILHO, José Roberto Fernandes. Convite ao direito urbanístico e ao direito fundiário. São Paulo: Pillares, 2021.
2 CHARLES, Hubert. Les principes d'urbanisme. Paris: Dalloz, 1993.
3 Droit de l'urbanisme. Paris: PUF, 1997.
4 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 9ª ed. São Paulo: RT, 2005.
5 MORAND-DEVILLER, Jacqueline. La commune, l'urbanisme e le droit. Paris: LGDJ, 2003.
6 KALFLÈCHE, Grégory. Droit de l'urbanisme. 2ª ed. Paris: PUF, 2018.