O velho doente de Goya: um olhar de superação e catequético
Goya, grande pintor espanhol.
terça-feira, 8 de março de 2022
Atualizado às 14:04
Dois anos atrás, impressionei-me com desenho do famoso pintor espanhol, GOYA.
Escrevi algo a respeito e resolvi me dedicar ao estudo de sua biografia e arte.
Fiz bem.
Estou encantado com a riqueza do seu trabalho. Em 5 de março de 2022, chegou às minhas mãos um excelente livro sobre seus desenhos.
Isso me fez lembrar do que escrevi dois anos antes e decidi compartilhar com os amigos leitores, aproveitando o tempo forte da Quaresma.
Segue, com meus agradecimentos antecipados pela gentil atenção.
Abro aspas:
Na última segunda-feira, por volta das 20h, horário de Madri, ao sair da Igreja de São Jerônimo Real, perto do famoso Museu do Prado, vi um painel muito interessante, cuja fotografia exibo.
Painel que expunha a imagem de um rascunho de Goya, grande pintor espanhol.
Após a Missa, havia admirado as lindas obras que edulcoram a igreja e ensinam a fé.
Ao deixar a igreja e passar ao lado do famoso museu, vejo o desenho rascunhado por Goya.
Que imagem!
Um homem desconhecido, comum, velho, presumidamente pobre, despido de quase tudo, inclusive saúde.
Homem apoiado em duas muletas rudes e que tenta, às duras penas, se locomover, arrastando seu corpo desconjuntado de um lugar a outro, sejam lá quais.
Estando o homem rascunhado estático no desenho, é possível ver o movimento lento, sofrido, mergulhado na dor, um arrastar pesaroso de si mesmo.
Nas pernas do velho rascunhado, débeis, no seu torso curvado, o peso visível do sofrimento.
A dor em imagem.
Eu sei o que é isso. Sim, eu sei, ainda que na periferia da debilidade física, eu pisei nos seus círculos indesejáveis.
Sei o que é querer se movimentar mais rápido e não conseguir. Sei o que é tropeçar e depender da bengala para não cair, batendo-a no chão com a força que se crava a estaca no peito de um vampiro. Eu também sei o que é cair na frente de todos, quando a bengala já não é bastante para socorrer a fraqueza.
Eu sei o que aquele homem sentia e imagino vivamente sua miséria.
Estava quase enveredando pelo caminho, sempre perigoso, da autopiedade - ainda que desproporcionalmente - quando deixei de ver o corpo e olhei o rosto do velho homem.
Tudo mudou em constrangedores e quase eternos segundos. É como se a luz da alegria partisse ao meio as trevas da tristeza.
Talvez a fotografia não exiba de modo justo a elegância do desenho, mas dou testemunho fiel: o rosto do homem não era de sofrimento, mas de resignação, esperança e, ouso dizer, docilidade e conforto.
Dizem que os olhos são espelhos do coração. Em realmente os sendo, os do velho não eram os de quem sofre, mas de quem transcendeu a própria miséria.
Olhar pacífico e enternecedor, olhar de quem transmite segurança na dúvida, coragem na adversidade, força na debilidade e mais um rosário de paradoxos benfazejos.
Não um olhar qualquer, mas o de quem tudo vê.
O de quem enxerga o mundo muito além das aparências e não tem inclinação para as lamentações.
Um olhar sem amargura, mas cheio de santificada tranquilidade.
No dia seguinte ao da solenidade da Apresentação do Senhor ao Templo, vi no olhar do velho de Goya a face do próprio Simeão, mestre da sabedoria, personificação da esperança.
O velho homem de muletas muito me falou sobre saúde, força e fé. Falou também de resignação e de como nenhum sofrimento pode tirar a paz interior.
A carne pode ser rasgada, os ossos esmagados, a dor excruciante, mas a ternura do coração há de imperar se houver no o sulco indelével da fé, amiga da verdade, carvão em brasa da fogueira inapagável do amor.
Em seu homem doente, Goya, talvez involuntariamente, exibiu poderosa catequese.
Nisso também reside o encanto da verdadeira arte, a que comunica o Belo e grita a Verdade.
Exagero? De modo algum. Beleza e Verdade são atributos de Deus.
A arte que não traduz Beleza e Verdade não pode como tal ser considerada.
A arte passa a ser mera crônica infeliz de visão míope da sua própria essência.
Termino com o suspiro que dei ao abaixar meu olhar para o chão, desviando-o do velho doente de Goya para seguir meu caminho.
Caminhei acompanhado da inquietação. O homem que me fez lembrar de Simeão também me recordou Davi, aquele que converteu o pranto em dança.
Não segui mais o caminho que pretendia.
Não, mudei a direção dos passos.
Subi de novo as escadas, tomado de novo ânimo.
Fui até audacioso, pois ignorei minha momentânea debilidade e deixei de por os dois pés em cada degrau e alternei a passada, subindo a escada como subia antes da cirurgia.
Voltei para a Igreja. Era necessário.
Lembrei que eu havia pedido para acelerar minha recuperação, mas esquecido de agradecer o sucesso da cirurgia.
Um tropeção na mesma escadaria pouco antes da Missa me fez mais inclinado a reclamar e pedir do que aceitar e agradecer.
Obrigado, Goya. Seu grafite e sua mão, seu talento, fizeram-me lembrar quem eu sou e no que acredito.
Escrevo para deixar o registro marmorizado na tábua do meu coração, muito mais doente e claudicante do que minha perna esquerda.
Em algum lugar sobrevoando o Oceano Atlântico, no início da madrugada de 5 de fevereiro do ano de 2020.
Paulo Henrique Cremoneze
Fecho aspas:
Espero que o texto nos ajude a pensar sobre nossas vidas, como as levamos e o que podemos sempre fazer melhor.
Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.