A inconstitucionalidade da lei 17.719/21 de São Paulo
A lei 17.719/21 é inconstitucional por extrapolar as normas gerais relativas à tributação das sociedades uniprofissionais (Decreto 406/68) e por violar o princípio da capacidade contributiva.
quarta-feira, 2 de março de 2022
Atualizado às 12:10
A Constituição Federal, no inciso III de seu artigo 156, outorgou competência aos Municípios e ao Distrito Federal para que instituam "impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar". Isto é, os Municípios e o Distrito Federal podem instituir ISS sobre serviços elencados em lei complementar, desde que não se tratem de serviços de transportes intermunicipal e interestadual e serviços de comunicação.
Em razão da necessidade de a matéria ser disciplinada por lei complementar, a norma que trata da tributação dos serviços prestados por sociedades uniprofissionais (in casu, o Decreto-lei 406/1968, mais especificamente os §§ 1º e 3º de seu artigo 9º1) foi recebido pela Constituição Federal de 1988 com o status de lei complementar - por força do § 4º do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ("ADCT") e da Súmula 663 do Supremo Tribunal Federal ("STF")2 -, disciplinando sobre normas gerais de tributação, pelo ISS, das atividades (serviços) das sociedades uniprofissionais.
Posteriormente, com a edição da lei complementar 116/2003, não houve disposição expressa quanto à tributação das sociedades uniprofissionais e que exercem atividades pessoais, de modo que as disposições do Decreto-lei 406/1968 permaneceram vigentes, tratando-se das normas gerais do regime de tributação, pelo ISS, das atividades exercidas pessoalmente por sociedades.
Assim sendo, as sociedades uniprofissionais se submetem à tributação fixa pelo ISS, de modo que o imposto é calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviço em nome da sociedade, aplicando-se alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância para a título de remuneração do próprio trabalho.
Com base nisso, o Município de São Paulo/SP, para as sociedades uniprofissionais (dentre as quais sociedades de advogados, médicos, enfermeiros, terapeutas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, veterinários, engenheiros, contadores, entre outras), disciplinou, por meio do § 1º do inciso II do artigo 15 da lei Municipal 13.701/033, sobre o regime de tributação do ISS fixo.
Ocorre que as leis ordinárias que tratam do regime de tributação das sociedades uniprofissionais devem respeitar ao disposto nos §§ 1º e 3º de seu artigo 9º do Decreto-lei 406/1968, sob pena de serem inconstitucionais.
Tanto é assim que o STF, quando do julgamento do Recurso Extraordinário ("RE") 940.769, julgado pela sistemática da repercussão geral, manifestou-se no sentido de que (i) o Decreto-lei 406/1968 foi recepcionado pela Constituição com status de lei complementar, (ii) a base de cálculo do ISS das sociedades uniprofissionais deve ser fixa e não pode compreender a importância paga a título do labor, e (iii) é inconstitucional a lei ordinária estadual que contrarie o Decreto-lei 406/1968.
Pois bem. O § 1º do inciso II do artigo 15 da lei municipal 13.701/03, anteriormente, previa que a base de cálculo do ISS para sociedades uniprofissionais como sendo o valor fixo (atualizado para 2021) de R$1.995,26 por profissional. Contudo, em novembro de 2021, o Município de São Paulo editou a lei municipal 17.719/21 que alterou a sistemática de tributação das sociedades uniprofissionais e passou a prever, para fins de fixação da base de cálculo do ISS, faixas de receita bruta mensal (não se tratando mais de base de cálculo fixa para fixação do valor do imposto devido).
Ocorre que tal disposição do Município Paulistano acaba por ser inconstitucional, visto que, em primeiro lugar, a Constituição, em seu artigo 146, disciplina sobre a necessidade de se expedir normas gerais de direito tributário para regulamentação de determinadas matérias (dentre elas, a delimitação das bases de cálculos de tributos, como se vê da alínea "a" do inciso III do mencionado artigo).
Em segundo lugar, apesar de não ter sido expedida lei complementar sobre a tributação das sociedades uniprofissionais, o Decreto-lei 406/1968, que trata do tema, foi recepcionado com status de lei complementar, por força do § 4º do artigo 34 do ADCT e da Súmula 663 do STF, de modo que as leis ordinárias não podem extrapolar o comando consignado no mencionado Decreto-lei, sob pena de inconstitucionalidade (tal como já reconhecido pelo STF quando do julgamento do RE nº 940.769, julgado pela sistemática da repercussão geral.
Por conta disso, em terceiro lugar, a lei municipal 17.719/21, que modificou as bases de cálculo das sociedades uniprofissionais (dispostas no § 1º do inciso II do artigo 15 da lei municipal 13.701/03), é inconstitucional por ampliar indevidamente a moldura fixada pelo Decreto-lei 406/1968.
Mas não é só. A referida lei municipal, além de instituir bases de cálculo baseadas na receita bruta das sociedades uniprofissionais (o que, por si, já viola o disposto no Decreto-lei 406/68), criou presunção indevida no sentido de que, quanto mais profissionais vinculados à sociedade, maior o seu "faturamento" individual.
Isto é, em uma sociedade com até 5 (cinco) profissionais, cada um "faturará" R$1.995,26 e, por conta disso, a base de cálculo do ISS será de 5x R$1.995,26. Contudo, em uma sociedade de mais de 100 (cem) profissionais, cada um deles "faturará", isoladamente, R$60.000,00, de modo que a base de cálculo do imposto será de 100x R$60.000,00.
Ou seja, a legislação presume, sem qualquer embasamento, que o mero fato de uma sociedade possuir um elevado número de profissionais possui uma receita "por cabeça" superior a uma sociedade que possui poucos sócios, o que não condiz com a realidade, visto que, ainda que haja um aumento na receita bruta da sociedade, isso não significa que o faturamento individual seja superior a depender de uma maior quantidade de profissionais habilitados.
Assim, o que se vê, é que a legislação se valeu de uma presunção que, além de não condizer com a realidade fática, viola o princípio da capacidade contributiva, insculpido no §1º do artigo 145 da Constituição Federal, sendo, portanto, confiscatório, visto que tal presunção acaba por tributar mais do que o critério econômico vinculado ao fato jurídico, incidindo sobre o patrimônio da sociedade uniprofissional.
Desta forma, conclui-se pela inconstitucionalidade da lei municipal 17.719/21, que modificou as bases de cálculo das sociedades uniprofissionais (dispostas no § 1º do inciso II do artigo 15 da lei municipal 13.701/03), seja por ampliar a moldura fixada nos §§ 1º e 3º de seu artigo 9º do Decreto-lei 406/68, seja por violar o princípio da capacidade contributiva, insculpido no §1º do artigo 145 da Constituição Federal, sendo, portanto, confiscatório.
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1 Art. 9º A base de cálculo do impôsto é o preço do serviço.
§ 1º Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.
[...]
§ 3° Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do § 1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável.
2 "Os §§ 1º do 3º do art. 9º do DL 406/68 foram recebidos pela Constituição"
3 Art. 15. Adotar-se-á regime especial de recolhimento do Imposto quando os serviços descritos nos subitens 4.01, 4.02, 4.06, 4.08, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5.01, 7.01 (exceto paisagismo), 17.13, 17.15, 17.18 da lista do caput do art. 1º, bem como aqueles próprios de economistas, forem prestados por sociedade constituída na forma do § 1º deste artigo, observadas as faixas de receita bruta mensal previstas no § 12 deste artigo.
[...]
II - quando os serviços descritos nos subitens 4.01, 4.02, 4.06, 4.08, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5.01, 7.01 (exceto paisagismo), 17.13, 17.15, 17.18 da lista do "caput" do artigo 1º, bem como aqueles próprios de economistas, forem prestados por sociedade constituída na forma do parágrafo 1º deste artigo, estabelecendo-se como receita bruta mensal o valor de R$800,00 (oitocentos reais) multiplicado pelo número de profissionais habilitados.
§ 1º As sociedades de que trata o caput deste artigo são aquelas cujos profissionais (sócios, empregados ou não) são habilitados ao exercício da mesma atividade e prestam serviços de forma pessoal, em nome da sociedade, assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da legislação específica.