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O Brasil decente apoia a Ucrânia

O noticiário político internacional desde o início do mês de fevereiro tem mostrado que inúmeros chefes de Estado do mundo livre revelaram incondicional apoio ao povo ucraniano pelas ameaças e evidências que então provinham da Rússia.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Atualizado às 08:54

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a sua inequívoca experiência no âmbito das relações internacionais, Henry Kissinger assevera, numa invejável síntese, que o diálogo para a solução das crises globais deve estar assentado nas relações diplomáticas, principal vetor de comunicação entre as potências soberanas, nas suas mais diferentes peculiaridades culturais, religiosas, econômicas, políticas e sociais. A deflagração de um confronto armado entre nações soberanas é o pior cenário que pode ocorrer no mundo moderno. É certo que a manifestação imediata de solidariedade e repúdio das nações contra os atos de guerra constitui, dentre muitos outros, considerável fator de pressão e de inibição sobre o exército que viola as regras da ordem internacional de convívio pacífico e harmônico (Henry A. Kissinger, World Order, New York, Penguin, 2015, pág. 72).

O noticiário político internacional desde o início do mês de fevereiro tem mostrado que inúmeros chefes de Estado do mundo livre revelaram incondicional apoio ao povo ucraniano pelas ameaças e evidências que então provinham da Rússia.

Iniciada a premeditada e sanguinária invasão da Ucrânia, não demorou muito para que fossem elas ratificadas de forma veemente. Os EUA providenciaram em brevíssimo tempo severas e inusitadas sanções a vários setores da economia da Rússia. O Presidente Biden conclamou os países aliados, especialmente, os da Europa, a reforçarem tal cerco econômico, ao qual prontamente aderiram, tudo para impedir o fluxo de moeda entre os bancos russos e o restante do mundo financeiro. Olaf Scholz, o chanceler alemão, foi aplaudido pelo parlamento reunido em Berlim, ao manifestar apoio irrestrito à Ucrânia: "o ataque russo à Ucrânia - disse ele - marca um ponto de virada. Ameaça toda a nossa ordem pós-guerra... Nesta situação, é nosso dever fazer o nosso melhor para apoiar a Ucrânia contra o exército invasor de Vladimir Putin...".

A Alemanha imediatamente negou-se à certificação do gasoduto Nord Stream 2, que já está concluído, impedindo o fluxo de energia da Rússia para a Alemanha. Para surpresa de muitos, indo além de todas as expectativas, a Alemanha adiantou-se, providenciando o envio de armamento destinado a suprir as inequívocas carências do exército ucraniano.

O presidente da França, Emmanuel Macron, lembrou que os aliados fizeram de tudo para evitar a crise na Ucrânia, mas que ela chegou. "Ao escolher a guerra, a Rússia não atacou apenas a Ucrânia... Decidiu realizar o mais grave ataque à paz e à estabilidade de nossa Europa em décadas... A liberdade da Ucrânia é a nossa... Esse ato de guerra será respondido sem fraqueza, com sangue frio, determinação e unidade".

O chefe do governo italiano, Mario Draghi, a seu turno, na mesma linha de atuação, declarou ontem (28.2), perante o Conselho de Ministros, que a Itália fornecerá material e equipamentos militares à Ucrânia para enfrentar a invasão russa.

A Espanha expressou unanimidade política e solidariedade de todos os seus cidadãos contra a invasão russa, propondo à União Europeia o fechamento de todos os portos marítimos continentais aos navios de bandeira russa ou propriedade de armadores desta nacionalidade que pretendam atracar, reabastecer combustível ou abastecerem-se de víveres em instalações portuárias da Europa comunitária. Esta proposta, que será estudada nas próximas horas, pretende apertar ainda mais o cerco de sanções a todos os níveis que as nações ocidentais, e especialmente as europeias, estão a utilizar como modo de pressão para que Moscou retire as suas tropas da Ucrânia invadida.

O Reino Unido, igualmente, condenou a ofensiva russa contra a Ucrânia e promete sanções coordenadas e ainda mais duras contra o país do presidente Vladimir Putin. Boris Johnson chamou os ataques de "horríveis" e afirmou que o presidente da Rússia "optou pelo caminho do derramamento de sangue e da destruição".

Enquanto escrevo este artigo, recebo a notícia do meu Amigo e ilustre Professor Miguel Reale Júnior de que, segundo o periódico El País, a Ucrânia acaba de obter apoio do Parlamento Europeu para ingressar na União Europeia.

Nota-se outrossim que empresas privadas multinacionais, em brevíssimo espaço temporal, aderiram às providências tomadas pelos governos liberais no isolamento da Rússia. Facebook, Google e YouTube anunciaram que estão implementando estratégias para impedir que os meios de comunicação estatais russos monetizem suas plataformas. A FedEx e a UPS interromperam as entregas de encomendas para a Rússia.

Demonstrações com expressivo número de manifestantes tomam conta das ruas em vários países europeus (em particular, Alemanha e Espanha) para protestarem contra o governo do Kremlin.

A Fifa e a Uefa suspenderam a seleção e times de futebol da Rússia de todos os torneios oficiais, inclusive da Copa do Mundo do Catar, em reposta aos ataques bélicos.

Do lado de cá do Atlântico, observa-se que a Argentina, o Chile, a Colômbia, o Paraguai e o Uruguai condenaram, sem quaisquer rodeios, a invasão da Ucrânia pelas forças armadas russas.

No Brasil, a despeito do gritante silêncio do Planalto, entre os primeiros a se manifestarem em prol da Ucrânia, destaca-se o general Hamilton Mourão, nosso vice-presidente, que não titubeou em declarar que o Brasil "não concorda com a invasão do território ucraniano".

A missão brasileira na ONU votou a favor da resolução do Conselho de Segurança, no sentido de condenar a ação militar da Rússia.

Não é preciso dizer que, nesse contexto, qualquer brasileiro que tenha um pingo de decência tem por dever republicano criticar os atos de guerra perpetrados pelo ditador Vladimir Putin.

Não obstante, como muito bem enfatizado pela jornalista Eliana Cantanhêde, em oportuno artigo intitulado Dicotomia ou esquizofrenia?, estampado nesta data (1.3), no Estadão: "O mundo acompanha, estupefato, a dicotomia insana do Brasil diante da invasão russa na Ucrânia, que terá drásticas consequências por toda a parte. O presidente Jair Bolsonaro diz uma coisa, o Itamaraty faz outra. Ele anuncia 'solidariedade à Rússia e a 'neutralidade', mas o Brasil votou contra a Rússia na ONU e o chanceler Carlos França corrigiu ontem na Globo News: a posição do Brasil 'é de equilíbrio, não de neutralidade'...".

Além desse comportamento paradoxal - que, aliás, lhe é peculiar - o presidente Jair Bolsonaro, enquanto passa o feriado de carnaval no Guarujá, aludiu, em tom debochado, à eleição do mandatário ucraniano Volodymyr Zelensky: "O povo [ucraniano] confiou num comediante o destino de uma nação. Ele [Zelensky] tem que ter equilíbrio para tratar dessa situação aí...".

De fato, Volodmir Zelenski era um artista cômico que virou um político improvável, tornando-se um legítimo líder que a Ucrânia jamais imaginou que precisaria.

Steven Erlanger, especializado em diplomacia internacional, descreveu que, vestido com uma camiseta verde do exército, com a barba por fazer, Zelenski  teve a coragem de inspirar ucranianos a "lutar por seu país - e os europeus a ver a Ucrânia sob uma luz diferente, como uma vítima de agressão que luta bravamente por independência, liberdade e democracia... A recente resposta de Zelenski a uma oferta americana de tirá-lo da Ucrânia - 'preciso de munição, não de uma carona' - provavelmente ficará na história do país, quer ele sobreviva ou não ao ataque..." (The New York Times, 28.2).

É preferível, pois, um comediante que se tornou um verdadeiro estadista, do que um presidente que continua sendo um blefe - para dizer o menos - aos olhos do mundo!

José Rogério Cruz e Tucci

VIP José Rogério Cruz e Tucci

Advogado, professor titular sênior da faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e ex-presidente da AASP.

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