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Exclusão de usuários de aplicativos de transporte e assimetrias relacionais

O espaço digital se manifesta sobre o mundo concreto e pode gerar impactos violentos sobre as relações econômicas, políticas e sociais. Ele não funciona à margem do conjunto de regras que nos constitui enquanto comunidade política.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Atualizado às 08:25

(Imagem: Arte Migalhas)

A virtualização de serviços essenciais ou de uso rotineiro, como transporte, aluguel residencial, alimentação, saúde e educação, transformou o modo como os indivíduos organizam as suas atividades e se relacionam comercial e socialmente. Ao mesmo tempo, como produto natural do processo de desenvolvimento tecnológico, as noções de conforto, bem-estar e praticidade se modificam e se naturalizam, exigindo que a nova forma de prestação desses serviços seja norteada por regras claras sobre as hipóteses em que alguém poderia ser impedido de ter acesso a eles.

A disrupção tecnológica e a oferta de serviços em escala se tornam menos atrativas quando as facilidades de cadastro e uso dos aplicativos não são equivalentes aos mecanismos ofertados quando surgem atritos relacionais entre usuários e prestadores de serviço. Enquanto a preocupação em simplificar o acesso se converte em atos básicos, como baixar o app e inserir dados cadastrais, não se verifica uma preocupação similar quando se trata da desativação de contas.

É o que ocorre, por exemplo, diante de problemas ligados ao código de conduta de plataformas digitais, em razão dos quais, mesmo sem conhecimento anterior, o usuário pode ser sumariamente excluído, sem oferta de realinhamento do comportamento, direito de defesa prévia ou, muitas vezes, sem fundamentação clara acerca do motivo da exclusão.

Em casos de problemas com o pagamento em aplicativos de transporte, geralmente, o restabelecimento do usuário se dá após uma burocrática e impessoal via crucis de apresentação de dados e documentos por e-mail. Ou seja, sem a simetria com a facilidade ofertada para cadastro e uso inicial do aplicativo. Quando a exclusão decorre de alegada violação ao código de conduta da comunidade, a situação pode ser ainda mais delicada porque, usualmente, não é enviado um aviso com a possibilidade de readequação do comportamento, além de não serem indicadas precisamente as condutas incompatíveis, muitas vezes nem mesmo diante da solicitação dos usuários. Ademais, e este é o ponto mais grave, não há um prazo para a reativação da conta na plataforma.

Tal cenário de insegurança, ainda que seja permeado por discussões acerca da natureza jurídica1 dos serviços prestados por aplicativos, revela a necessidade de que sejam assegurados mais direitos aos usuários, o que poderia ser facilitado no caso de o aspecto de serviço público ser evidenciado. Entretanto, a jurisprudência tem, reiteradamente, reconhecido que o caráter sui generis não sujeita as empresas às normas de direito público.

Ocorre que, mesmo que seja considerada a relação entre usuários, motoristas e plataformas de transporte como de natureza privada2, ela não pode desencadear uma situação de tamanha assimetria relacional. Na realidade, os parâmetros inerentes ao Estado de Direito3 e à eficácia horizontal dos direitos fundamentais revelam a invalidade de condutas sumárias, como a exclusão pouco clara e indefinida de contas.

Mesmo em se tratando de uma relação de consumo4 ou de uma relação privada de outra natureza, é necessário que o contrato entre as partes guarde equilíbrio. Desse modo, é preciso que as partes se sujeitem ao regramento geral, iluminado pela transparência das condutas, pela oportunidade de interferência humana e pela simetria na equação que põe, de um lado, a facilidade apresentada para a oferta e uso inicial do serviço e, de outro, o procedimento de exclusão ou reativação de contas.

Poder-se-ia argumentar que, por não se tratar de serviço ou produto essencial, o prestador teria mais liberdade para impedir o acesso do usuário e fixar o código de condutas. Esse argumento não afasta, no entanto, a constatação de que o critério de tratamento precisa ser claro, público e isonômico.

No caso específico do serviço de transporte por aplicativo, não têm sido incomuns as denúncias de bloqueios ou banimentos de motoristas e usuários sem a garantia do direito de defesa. Na verdade, a leitura do Código da Comunidade Uber5 já revela generalidades e abertura a indefinições sobre as regras e, principalmente, o procedimento de aplicação.

A empresa informa, por exemplo, que é possível perder o acesso total ou parcial à plataforma caso não seja seguida qualquer uma das diretrizes, o que pode incluir desde violações ao Código da Comunidade até "certos atos que você pode praticar fora da Plataforma da Uber, incluindo, sem restrição, informações de outras plataformas"6, caso determinado que eles ameaçam a segurança das pessoas ou prejudicam a marca, reputação e negócios da empresa. Além disso, resta clara a discricionariedade da plataforma para instaurar investigação, suspender contas e realizar julgamentos de condutas, sem que haja menção expressa ao direito à prévia comunicação, fundamentação ou defesa.

Esse tipo de inconsistência tem impactos econômicos mais diretos quando se está diante da suspensão de contas de profissionais. Nessa linha, a Associação dos Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amasp) denunciou, no ano passado, que a Uber teria excluído, de forma sumária e sem aviso prévio, 15 mil motoristas7. Em resposta, a empresa contestou esse número e informou que teriam sido suspensas cerca de 1,6 mil contas, em razão de "comportamentos que prejudicam intencionalmente o funcionamento da plataforma e atrapalham outros motoristas e usuários que apenas desejam gerar renda ou se deslocar."8

É certo que a plataforma necessita ter controle para moderação de condutas, sobretudo para evitar situações que possam implicar insegurança para as pessoas ou violação de direitos. Existem, porém, elementos essenciais para que seja legítima a forma de se realizar o controle do cumprimento das regras de comunidade.

Conforme os relatos noticiados no caso das contas desabilitadas, a empresa justificou que a exclusão das contas decorreria do excesso de cancelamentos de corridas por parte dos motoristas parceiros. A despeito de reconhecer o direito ao cancelamento de corridas, a prestadora considerou que o "abuso desse recurso configura mau uso da plataforma9", o que justificaria a desativação das contas.

Ainda que não se examine o mérito da decisão em cada caso, a análise do procedimento adotado revela dificuldades de diferentes níveis: inicialmente, questiona-se a ausência de um dispositivo que preveja a hipótese e defina o que seria exatamente o abuso no direito ao cancelamento; em segundo lugar, a exclusão dos motoristas parceiros, sem que tenha havido prévia notificação e possibilidade de readequação da conduta, implica prejuízo notório ao direito de defesa e à transparência e previsibilidade exigidas na relação contratual.

Importa que as empresas definam, tornem públicas e sigam um conjunto claro de regras de comunidade. Mas não apenas isso. A dinâmica de funcionamento do espaço digital pressupõe que os usuários tenham acesso aos dados a eles relacionados, incluindo aqueles que deram causa à suspensão ou exclusão de suas contas. A transparência, coerência e previsibilidade sobre os procedimentos e critérios utilizados para as decisões das plataformas é indispensável10.

O espaço digital se manifesta sobre o mundo concreto e pode gerar impactos violentos sobre as relações econômicas, políticas e sociais. Ele não funciona à margem do conjunto de regras que nos constitui enquanto comunidade política. É preciso enfatizar e aproximar as condutas das plataformas daquilo que foi erigido para afastar o arbítrio e a violação de direitos individuais.

_________

1 Outras considerações sobre a natureza jurídica dos espaços digitais podem ser consultadas em MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos; FERREIRA, Desirée Cavalcante. Limites à intimidade e responsabilidade nos espaços públicos digitais: análise da possibilidade de bloqueio de contas de usuários por agentes públicos. Interesse Público - IP, Belo Horizonte, ano 23, n. 130, p. 129-152, nov./dez, 2021.

2 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 449/DF, decidiu que "o motorista particular, em sua atividade laboral, e protegido pela liberdade fundamental insculpida no art. 5º, XIII, da Carta Magna, submetendo-se apenas a regulação proporcionalmente definida em lei federal, pelo que o art. 3º, VIII, da Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e a Lei Federal 12.587/2012, alterada pela Lei 13.640 de 26 de março de 2018, garantem a operação de serviços remunerados de transporte de passageiros por aplicativos."

3 SUZOR, Nicolas. A constitutional moment: How we might reimagine platform governance. Computer Law & Security Review, Volume 36, 2020.

4 Trata-se de uma típica relação de consumo, pois as partes enquadram-se nos conceitos de consumidor e fornecedor constantes nos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. A parte Ré é responsável por oferecer serviços de transporte particular por meio de aplicativo, intermediando a comunicação online entre passageiros e motoristas, agindo, portanto, como fornecedora de serviços e participando da cadeia de consumo (ART. 18 do CDC). Enquanto que os usuários da plataforma de transporte, disponibilizada pela parte Ré, são qualificados como consumidores do serviço de mobilidade, razão pela qual resta evidenciada a incidência, nesta relação jurídica, das prerrogativas previstas no Código de Defesa do Consumidor. Precedente desta Turma Recursal: TJPR - 2ª Turma Recursal - 0009751-63.2019.8.16.0021 - Cascavel - Rel.: JUIZ DE DIREITO DA TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS HELDER LUIS HENRIQUE TAGUCHI - J. 10.12.2019.

5 UBER. Código da Comunidade Uber. Última alteração: 08/05/2021. Disponível em:  https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?country=brazil&lang=pt-br&name=general-community-guidelines. Acesso em: 15 fev. 2022.

6 Ibidem.

7 TECMUNDO. Uber é acusada de excluir 15 mil motoristas sem aviso prévio. 27/09/2021. Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/mercado/225789-uber-acusada-excluir-15-mil-motoristas-aviso-previo.htm. Acesso em: 15 fev. 2022.

8G1. Uber exclui motoristas por cancelamento constante de corridas. 24/09/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/24/uber-exclui-mais-de-15-mil-motoristas-por-cancelamento-constante-de-corridas-diz-associacao.ghtml. Acesso em: 15 fev. 2022.

9 Ibidem.

10 Nessa direção, tramitam, no Congresso, projetos de lei que visam, precisamente, regular esse cenário e dispor sobre a comunicação prévia do bloqueio, suspensão ou exclusão de prestadores de serviços de transporte ou entregas das plataformas digitais, como o PL 3.185/2021.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Desirée Cavalcante Ferreira

Desirée Cavalcante Ferreira

Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional. Advogada. Membro da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB, da Comissão Especial Brasil/Onu de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE e do Observatório de Violência Política Contra a Mulher.

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