Orçamento público impositivo e o fundo eleitoral
É possível vislumbrar um potente instrumento de democratização do orçamento público, a ser cada vez mais qualificado a partir do aumento da participação popular e controle social do gasto público.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Atualizado às 11:15
De acordo com o art. 2º1, da lei federal 4.320/64, que estatui normas gerais de Direito Financeiro, o Orçamento Público é a lei que contém a discriminação da receita e da despesa, de forma a evidenciar a política econômica-financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade.
Assim, o Orçamento Público Geral da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, iniciam-se com a elaboração pelo Poder Executivo de um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação do Poder Legislativo. A peça orçamentária deverá conter a estimativa de arrecadação das receitas para o exercício financeiro subsequente bem como a autorização para a realização de despesas.
O projeto de lei do orçamento anual é onde se identifica a destinação dos recursos que o Governo arrecada sob a forma de tributos. Assim, nenhuma despesa pública poderá ser realizada sem estar prevista no Orçamento Anual. Portanto, considera-se o Orçamento Público Geral, o coração da administração pública federal, estadual, distrital e municipal.
Portanto, o Governo é obrigado a encaminhar o Projeto de Lei Orçamentária Anual ao Congresso nacional até o dia 31 de agosto de cada ano (4 meses antes do encerramento da sessão legislativa). Acompanha o projeto, mensagem do Presidente da República, no caso do orçamento público da União, na qual é feito um diagnóstico sobre a situação econômica do país e suas perspectivas.
Entende-se, todavia, que o orçamento público é ato de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, onde, cada um dos Poderes elaborará sua proposta orçamentária e a encaminhará ao Poder Executivo para consolidação e posterior encaminhamento ao Poder Legislativo, com uma proposição única da Federação envolvida.
Com o advento das Emendas Constitucionais 86, de 2015 e 100, de 2019, a execução orçamentária sofreu algumas mudanças, estabelecendo uma nova relação entre o Poder Executivo e Legislativo. Referente à EC 86/15, que alterou a redação dos arts. 165, 166 e 198 da Constituição Federal, fez-se obrigatória a execução da programação orçamentária advinda de emendas parlamentares apresentadas e aprovadas na LOA. Nesse sentido, nota-se que o principal objetivo da EC 86/15 foi impor limites à discricionariedade do Executivo na execução do orçamento e, por conseguinte, prestigiar as emendas do Legislativo.
Assim, o Congresso Nacional deixa de ser mero autorizador do orçamento público, como pode ser verificado em parte da Nota Técnica 10/13, elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, anexada a PEC 565/06, que originou a EC 86/15 - ao afirmar que, "subjacente às propostas de dar um caráter impositivo à LOA ou de proteção das emendas parlamentares, está a percepção de perda gradativa de importância política do papel do Congresso Nacional na matéria orçamentária e financeira".2
Quanto a EC 100, de 2019, essa, por sua vez, torna obrigatória a execução da programação orçamentária proveniente de emendas de bancada de parlamentares de Estado ou do Distrito Federal, em 1,0% da receita corrente líquida, com alteração dos arts. 165 e 166 da CF; enquanto a EC 86/2015, contempla as emendas individuais relativas a 1,2% da receita corrente líquida.
Importante ressaltar, que uma parcela da previsão orçamentária para as emendas de bancada, é destinada para o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas - FEFC (fundo eleitoral), que foi criado em 2017 pelas leis 13.487 e 13.488, cujos recursos deste fundo é definido pela Lei Orçamentária anual.
Inicialmente, o projeto de lei orçamentário para o exercício financeiro de 2022, encaminhado pelo Poder Executivo, trouxe o valor previsto para o FEFC de R$ 2.127.519.773 (dois bilhões cento e vinte e sete milhões, quinhentos e dezenove mil e setenta e sete centavos). Com alteração da proposta, por meio de substitutivo e a derrubada do Veto Presidencial quanto ao aumento do valor anterior, a previsão de fundo eleitoral na Lei de Diretrizes Orçamentárias, foi de até R$ 5,7 bilhões para o ano de 2022.
Nesse sentido, o texto aprovado pela Comissão Mista do Legislativo, definiu que o reajuste do FEFC seria de 25% da verba da Justiça Eleitoral4. Atualmente, esses recursos oriundos do orçamento geral da União, são considerados uma das principais fontes de receita para realização das campanhas eleitorais após a proibição de doações de pessoas jurídicas. Contudo, após muita polêmica em torno dos valores, o Governo sancionou a lei com valor previsto para o fundo eleitoral R$ 4,96 bilhões para eleições de 2022.
Mesmo com a previsão de emenda parlamentar e de emenda de bancada, o sistema normativo assegura considerável controle do processo legislativo pelo Governo a partir da reserva de iniciativa legislativa para matérias de relevo, inclusive com vedação de emendas parlamentares que impliquem aumento de despesas, bem como o próprio trancamento da pauta por medidas provisórias pendentes de apreciação, afora outros instrumentos e fatores relacionados à dimensão político-relacional.
Com efeito, embora tradicionalmente entendido como de caráter discricionário, a execução do orçamento público demanda uma renovada reflexão, em especial com a promulgação das Emendas nº 86/2015 e 100/2019, que traz ao debate a sistemática do orçamento impositivo, mas, sobretudo, porque a discricionariedade alcança somente as despesas de caráter não obrigatório, decorrentes da ordem constitucional e infraconstitucional estabelecida.
As chamadas despesas obrigatórias, de inclusão impositiva na LOA, como as despesas das áreas da saúde e educação, deixam assente o caráter mandatório de considerável parcela da execução do orçamento público, o que reforça a crescente restrição àquela corrente ideia de discricionariedade executiva da peça orçamentária.
A ampliação do chamado orçamento impositivo pode, a partir da redução da discricionariedade do Governo na execução da peça orçamentária, ampliar de alguma forma a qualificada defesa dos interesses públicos e na promoção dos direitos fundamentais.5
De fato, essa nova sistemática de obrigatoriedade de execução das programações decorrentes de emendas parlamentares individuais e de bancada, tem o potencial de alterar a correlação de forças sobre a definição de políticas públicas,6 de forma a realinhar e reequilibrar um modelo de mais efetiva atuação do Poder Legislativo, com todos os pontos positivos e negativos daí resultantes. Ainda que em um percentual reduzido (1,2% e 1,0% da RCL), esse novo cenário tem o potencial de influir na prática da gestão pública, ao estabelecer o dever de execução da lei orçamentária e a necessidade de justificativa administrativa no caso de eventuais impedimentos.
Em síntese, não se está aqui a defender propriamente o aumento de força dos Parlamentos a partir da sistemática das emendas parlamentares impositivas individuais e de bancada em matéria de orçamento público, mas sim o efetivo potencial de incremento qualitativo na participação da sociedade acerca da definição do orçamento público, de forma a garantir a execução das suas programações, com maior transparência na gestão do gasto público e o acompanhamento da sua execução.
Inegavelmente, a partir desse cenário, o Legislativo assumiu um papel relevante na execução das finanças públicas, ao tornar impositivo parte do orçamento público. Ainda que não se possa olvidar as diversas críticas endereçadas à sistemática das emendas parlamentares impositivas, em especial sobre a qualidade e relevância dos projetos apresentados, e mais firmemente à própria relação de inadequada reprodução de dependência de determinadas bases eleitorais, o fato é que também é possível vislumbrar um potente instrumento de democratização do orçamento público,7 a ser cada vez mais qualificado a partir do aumento da participação popular e controle social do gasto público.
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1 Art. 2° A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômica financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios de unidade universalidade e anualidade.
2 BRASIL. CONSULTORIA DE ORÇAMENTO E FISCALIZAÇÃO FINANCEIRA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. Nota Técnica nº 01 de maio de 2013. Orçamento Impositivo. p. 6. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/estudos/2013/nt10.pdf
3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2022/proposta/proposta.pdf
4 Art. 12 [...]
XXVII - Fundo Especial de Financiamento de Campanha, financiado com recursos da reserva prevista no inciso II do §4º do art. 13, no valor correspondente a 25% (vinte e cinco por cento) da soma das dotações para a Justiça Eleitoral para exercício de 2021 e as constantes do Projeto de Lei Orçamentária para 2022, acrescentado do valor previsto no inciso I do art. 16-C da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997; Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14194.htm
5 Sobre o tema, ver: OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração Pública democrática e a efetivação dos direitos fundamentais. Anais do Congresso Nacional do CONPEDI, Brasília, p. 6802-6821, 2008. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/gustavo_justino_de_oliveira.pdf.
6 Sobre o tema, ver: BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002; COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 35, n. 138, abr./jun. 1998. p. 39-48; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva; CATARINO, João Ricardo. Políticas públicas, mínimo existencial, reserva do possível e limites orçamentários: uma análise a partir da jurisprudência dos tribunais no Brasil. In: GOMES, Marcus Livio; ALVES, Raquel de Andrade Vieira; ARABI, AbhnerYoussif Mota (Coord.). Direito financeiro e jurisdição constitucional. Curitiba: Juruá, 2016. p. 115-144.
7 Para uma análise panorâmica da questão da democracia pela via do orçamento participativo no Brasil e também no Estado de Santa Catarina, consultar: AVRITZER, Leonardo; NAVARRO, Zander (Org.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003; LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn; BORBA, Julian (Org.). Orçamento participativo: análise das experiências desenvolvidas em Santa Catarina. Florianópolis, Insular, 2007.