O dolo específico na nova lei de Improbidade Administrativa
O objetivo da LIA é enquadrar o agente desonesto e com vontade de lesar e descumprir à lei.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
Atualizado às 15:09
A publicação da lei 14.230/21 veio a alterar profundamente um dos principais dispositivos jurídicos de combate à corrupção no Brasil: a lei 8.429/92. Pode-se dizer, inclusive, devido à enorme quantidade de modificações, que temos uma nova lei de Improbidade Administrativa (LIA) em vigência a partir de agora. Das muitas mudanças que surgiram no novo regime jurídico do trato do problema da improbidade, uma se destaca não apenas pela novidade, mas, também, pela alteração na inclinação geral do instrumento no que tange à punição da vontade ilícita dos agentes públicos.
O objetivo desse texto é dar breve notícia sobre a exigência obrigatória de dolo específico, em todas as hipóteses legais, para a configuração da improbidade, conforme a redação da lei 14.230/21 que está em vigor e remodelou a antiga LIA.
A análise do elemento subjetivo característico da improbidade é de enorme importância nesse tema, na medida em que não se pode confundir ilegalidade com improbidade. De fato, nem todo ato ilegal é ímprobo. Além disso, o legislador não se preocupou em punir o agente público incompetente, mas, sim o agente desonesto. A vontade do agente público, portanto, sua disposição psíquica tendente à realização do ato de improbidade é essencial para a correta imputação e tipificação segundo à lei.
Na antiga redação da LIA, conforme a interpretação mais pacífica da lei 8.429/1992, existiam três formas, tipificadas legalmente no diploma, de improbidade, modalidades que persistiram no atual texto: atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (art. 10) e atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11).
O elemento subjetivo que deflagrará o elo de encadeamento lógico entre vontade, conduta e resultado, com a consequente demonstração do grau de culpabilidade do agente, pode-se apresentar somente sob duas únicas formas: o dolo e a culpa (GARCIA; ALVES, 2017:429).
Se por um lado, todos esses artigos de lei contemplavam a necessidade de dolo na conduta do agente, o art. 10, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial, também poderia ser caracterizado pelo elemento culpa segundo a antiga redação da lei 8.429/1992.
A improbidade administrativa é desonestidade administrativa, razão pela qual se apresenta como uma imoralidade qualificada, caracterizada pela existência de dolo que surge, no antigo texto da lei 8.429/1992, como elemento comum a todas as modalidades de improbidade previstas em lei, com uma exceção que também admitia a modalidade culposa: o art. 10, em que se contemplavam as hipóteses de improbidade que causam danos ao erário (SPITZCOVSKY, 2019:111).
Pelas alterações legislativas decorrentes da recente reforma, não mais é assim, tanto que só existe, presentemente, improbidade administrativa decorrente de ato doloso.
Com efeito, a lei 14.230/21 extinguiu a modalidade culposa de improbidade administrativa, com a retirada da expressão "culposa" do art. 10 da LIA. A atual redação dos arts. 9º, 10 e 11 da LIA exige a conduta dolosa do autor do ato de improbidade (NEVES; OLIVEIRA, 2022:5).
O §1º do art. 1º da LIA, com novo texto, não poderia ser mais claro:
"Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais".
Somente as ações com dolo é que estão sujeitas ao regime da improbidade, portanto.
Os parágrafos 2º e 3º do mesmo artigo vão até mais longe, pois caracterizam na letra da lei o conceito de dolo que está em jogo:
"§2º Considera-se dolo a vontade consciente e livre de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta lei, não bastando a voluntariedade do agente".
"§3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa".
Exige-se o dolo específico.
O dolo específico, especialmente para os fins de caracterização de ato de improbidade, é o ato eivado de má fé. O erro grosseiro, a falta de zelo com a coisa pública, a negligência, podem até ser punidos em outra esfera, de modo que não ficarão necessariamente impunes, mas não mais caracterizarão atos de improbidade (GAJARDONI; CRUZ; FAVRETO, 2022:46).
Com efeito, não basta mais, segundo correta interpretação da LIA, alegar que um ato é doloso, ou demonstrar que é ilegal. Sob o regime do novo diploma, é necessário se demonstrar a má-fé, uma intenção de lesar, alguma forma de conluio entre agentes (GAJARDONI; CRUZ; FAVRETO, 2022:48).
O dolo do agente para toda e qualquer conduta tipificada na lei de Improbidade Administrativa passa a ser específico: consciência + vontade + finalidade de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (GUIMARÃES, 2022:22).
A reforma legislativa sofreu alguns ataques, pois, facilitaria, em tese, práticas de corrupção e daria espaço para impunidade. Todavia, apesar de tal afirmação parecer válida após uma análise superficial do novo texto legislativo, é necessário lembrar que esse tem sido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça desde 1999. A referida corte, antes da reforma da lei, já entendia que para que seja caracterizada a improbidade administrativa é necessária a presença de ma-fé.
"De fato, a lei alcança o administrador desonesto, não o inábil, despreparado, incompetente e desastrado" (REsp 213.994-0/MG, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, DOU de 27.9.1999)
A jurisprudência tradicional do STJ, firmada a partir da antiga redação da LIA, entendia que bastava o dolo genérico para a configuração da improbidade. O §2º do art. 1º, da nova LIA, superou o entendimento jurisprudencial para exigir, a partir de agora, o dolo específico para a configuração de improbidade (NEVES; OLIVEIRA, 2022:6).
Inúmeros textos analisam a figura do dolo, especialmente na seara penal, mas é consenso que essa figura se propõe como uma vontade livre e consciente dirigida ao resultado ilícito, o dolo direto, ou quando o agente prevê o resultado ilícito, mas, ainda assim pratica a conduta, consentindo com o advento daquele, o dolo eventual (GARCIA; ALVES, 2017:429).
A culpa, por seu turno, é caracterizada pela prática de ato sem a devida atenção ou cuidado que se deveria ter ou prever para evitar o ato ilícito. E, sob o império da antiga lei 8.429/92, permitia uma abertura de interpretação dos atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (art. 10) muito larga e, por vezes, injusta.
O fato é que tudo leva a crer que a inclinação da nova LIA não é responsabilizar quem praticou ato imprudente e ineficaz na condução do exercício natural de uma função pública. Nem mesmo o ato impensado em suas consequências lesivas, ainda que voluntário e consciente. O objetivo é enquadrar o agente desonesto e com vontade de lesar e descumprir à lei.
A LIA vem, assim, sob a ótica do dolo específico, ao mesmo tempo que punir os agentes comprovadamente ímprobos, garantir que o exercício da administração pública não fique paralisado sob o risco de que a Lei de Improbidade Administrativa ao disciplinar com exagerado rigor o regime da probidade tornasse os agentes públicos inertes e inoperantes, ou, no mínimo os "pouco inovadores" no trato das políticas públicas, por medo de consequências legais de atos naturais da administração pública.
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GAJARDONI, Fernando da Fonseca; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo, GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; FAVRETO, Rogério. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2017.
GUIMARÃES, Rafael. A Nova Lei de Improbidade Administrativa Comentada. Leme: Imperium, 2022.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Comentários à Reforma da Lei de Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2019.
Rodrigo Suzuki Cintra
Bacharel em Filosofia pela USP. Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela USP. Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professor Titular da UNIP. Sócio do escritório Petrelluzzi & Cintra Jr