A guerra falida contra as drogas e o cenário social: a comparação jurídica da Constituição Federal de 1988 com a lei de drogas 11.343/06
A Constituição Federal de 1988 preconiza diversos direitos e garantias fundamentais, pelos quais serão comparados com a lei de drogas (11.343/06), desde quesitos basilares como a educação, saúde e lazer, até o sistema carcerário falido que coloca o Brasil em 3º lugar no ranking de encarceramento mundial.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
Atualizado em 24 de março de 2022 10:38
Caro leitor, esse sistema pérfido, algoz e hipócrita, pelo qual estamos inseridos, possui diversas vertentes, pelos quais destrincharemos algumas posições, sociais, jurídicas, econômicas e políticas, para entender qual a finalidade punitiva do crime de tráfico de drogas.
O Brasil, após a implementação do tráfico de drogas como crime inafiançável, em nossa Constituição Federal de 1988, posteriormente a assinatura em 1984 com a Declaração de Quito, dramatizou e problematizou mais ainda nosso problema social, com a seguinte redação do artigo 5º, inciso XLIII, da CF/88: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem".
A partir desta percepção jurídica, às consequências realísticas transformaram o Brasil em líder do ranking de encarceramentos em relação aos países da América do Sul e o 3º lugar no ranking de encarceramento mundial, em que a denúncia percorre o sistema carcerário falido, sendo a superlotação um dos diversos problemas que somam a lista das violações à dignidade da pessoa humana, o que contraria os próprios princípios constitucionais, tendo em vista que o sistema não possui nenhum tipo de estrutura para a ressocialização, muito menos para condições mínimas de sobrevivência. Relacionando o estudo com a realidade, o cenário social é de celas lotadas, sujas, pouco ventiladas, racionamento de água, comida azeda e em pequena quantidade, dificuldades para atendimento médico, homicídios, dentre outras crueldades.
A lei de drogas (11.343/06), editada para que houvesse a diferença entre o usuário e o traficante, apenas contribuiu para a aplicação da seletividade penal, ampliando o número de encarcerados no Brasil e contribuindo para o caos social instaurado, sendo que cenário social se enquadra em jovens de 18 a 29 anos, negros e periféricos, encarcerados. Dados do IFOPEN classificou que entre 2006 a 2018, após a aplicação da lei de drogas, o número da população penitenciária aumentou em 500%.
O que a superlotação do sistema carcerário falido provocou? Apenas o sofrimento das mesmas vítimas de um passado não tão distante. Caro leitor, o nosso sistema punitivo é a maior expressão do racismo estrutural, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, os negros são as vítimas em 75% dos casos de morte em ações policiais; pretos e pardos correspondem a 64% dos desempregados e 66% dos subutilizados; e a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco. Os dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que, em 2019, os homens corresponderam a 95,1% do total da população encarcerada, sendo que grande parte dos encarcerados encontram-se em situação de prisão provisória ou preventiva.
A comunidade negra, oriunda de um passado e presente de sofrimento, genocídio e etnocídio, vítimas de preconceito e racismo diariamente, estão como protagonistas de uma história sangrenta que é noticiada até os dias atuais. Este é o cenário social inegável, sejam pelas experiências cotidianas, jornais, histórias, dados, etc.
O sistema é algoz, pérfido e hipócrita, diante disso, demonstrarei como a literalidade da Constituição Federal de 1988 não passam de palavras que não possuem usualidade para nosso povo, se não vejamos, o que preconiza os princípios constitucionais: a dignidade da pessoa humana; construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados; a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Essa é apenas uma transcrição de direitos que são violados diariamente, por um Patriarcado que pouco se importa com vidas, ou com a sua sociedade civil. Para clarear o estudo, coleciono o que a Juíza Dra. Marcia Lucia Karam, traduz em seu entendimento jurídico, em que, a política de guerra às drogas não apenas falhou em proibir o acesso a substâncias, como causou mais danos do que o próprio consumo de drogas em si. Ora, não teríamos tantas pessoas encarceradas ou mortas se não fosse essa guerra falida que o Estado proporciona contra sua própria sociedade.
Afirma a juíza que, além da legislação ser inapta a reduzir de fato o acesso a tais substâncias, a política de proibição acrescenta danos muito mais graves do que os causados pelas substâncias proibidas, sendo o maior desses danos, à violência. A magistrada alude que o Brasil possui 30 homicídios por 100 mil habitantes, ou seja, trata-se de um índice altíssimo e boa parte desses homicídios acontece nas disputas do mercado ilegal, nessa guerra às drogas que mata muito mais que as próprias drogas, como já mencionado.
A finalidade relacionada com este conteúdo é social, preconizado pelos princípios constitucionais já mencionados neste estudo, que infelizmente não são usuais, sejam pela falta de políticas públicas ao desinteresse do Estado em solucionar estes problemas cotidianos. Tal fato é embasado na sutil expressão do Estado em negligenciar, omitir e perpetuar todo esse conjunto de fatores que transformam a sociedade civil num aglomerado dominado pela opressão de um Estado-Polícia e um Estado-Juiz.
O crime de tráfico de drogas como já exposto, encarcera um determinado tipo de pessoas, pelas quais encontram-se nas periferias e comunidades, sendo os protagonistas a comunidade negra do Brasil, o que coloca, mais da metade da sociedade, ou seja, 54% da nossa população, em situação de vulnerabilidade, opressão, encarceramento e morte.
A violência propiciada pelo Estado é o que faz esse sistema funcionar, afinal, com a finalidade normativa de redução do uso de entorpecentes e a diminuição da criminalidade, o cenário social pelo qual estamos inseridos demonstra na verdade a violação de corpos, má gestão, falta de políticas públicas, falta de estruturas basilares como saúde, educação, moradia, lazer, encarceramento em massa, seletividade penal, etc.
A questão refletida se sobrepõe a própria aplicação das normas, beneficiando e prejudicando determinados grupos sociais, isso nos demonstra que a justiça se permeia em um emaranhado frágil, detentor de poder, visando à dominação, extermínio e continuidade das catástrofes sociais cometidas à violação de vidas, patrocinada pelo Estado, por meio da guerra falida ao combate das drogas.
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BARIONI, Murilo. A descriminalização da maconha no Brasil. Tese de Conclusão de Curso. São Paulo, 2021.
BRASIL. Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 (Lei de Drogas). Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília: Presidência da República. [2006]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2006/lei/l11343.htm
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
KARAM, Maria Lucia. Proibições, Riscos, Danos e Enganos: As Drogas Tornadas Ilícitas. Lumen Juris. Vol. 03. São Paulo, 2009
http://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418
https://carceraria.org.br/combate-e-prevencao-a-tortura/dina-alves-o-carcere-e-a-maior-expressao-do-racismo