Esclarecimento sobre o tema 210 de repercussão geral do STF e a convenção de Montreal
Judicialmente, em casos pontuais, excepcionais e em defesa da seguradora sub-rogada, até tem sido possível pôr em dúvida a própria Convenção de Montreal para o transporte de cargas. Mas não é seguro ou recomendável estabelecer esse posicionamento como regra.
sábado, 19 de fevereiro de 2022
Atualizado em 21 de fevereiro de 2022 07:53
Desde que o Tema 210 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal surgiu, defendo, acadêmica e profissionalmente, sua não aplicação imediata aos casos envolvendo transportes aéreos internacionais de cargas e aos litígios envolvendo seguradores sub-rogados.
Diz a tese, firmada com o julgamento do RE 636.331/RJ, que, em litígio de passageiro contra transportador aéreo por conta de bagagens extraviadas, no exclusivo contexto do transporte internacional, aplica-se a Convenção de Montreal, e não o Código de Proteção e Defesa do Consumidor. E, ao se aplicar a norma internacional, aplica-se também a limitação tarifada.
Pareceu-me bastante claro, para não dizer evidente, desde seu surgimento no cenário jurídico brasileiro, que o Tema 210 só incide nos casos de transportes aéreos internacionais de passageiros com extravios de bagagens, não nos de transportes de cargas, muito menos nos protagonizados pelos seguradores sub-rogados nos direitos e ações dos seus segurados, donos de cargas, vítimas de danos (provocados pelos transportadores aéreos).
Dizem alguns, apesar da clareza que afirmei, que o Precedente é replicável a todo e qualquer caso de transporte aéreo internacional. Discordei, discordo e sempre discordarei dessa forma de encarar o assunto.
Vou além: afirmo categoricamente que o entendimento é errado. Errado porque fere a ortodoxia dos Precedentes, que pretendem estabelecer no Brasil uma cultura das mais saudáveis, e porque desconsidera situações muito particulares, como a do transporte de carga e a do segurador sub-rogado nos direitos do segurado em ação de regresso. Sua indistinta aplicação poderá gerar grandes danos ao Direito e às vítimas de perdas anteriores.
Impossível falar em Precedente sem, ao mesmo tempo, considerar modulação, distinguishig, overrruling, simetria e conceitos afins. Ou se leva tudo isso em conta, quando da análise do caso concreto, ou o sonho da cultura dos Precedentes - algo de que até sou entusiasta -, tão importante para o fomento do ambiente de negócios, para a diminuição da judicialização, para a segurança jurídica, corre seríssimo risco de se converter em pesadelo.
Para minha satisfação, não são poucas as decisões, monocráticas e colegiadas, no mesmo sentido do que defendo: o Tema 210 não repercute imediata e indistintamente nos casos envolvendo transportes de cargas e/ou seguradores sub-rogados.
Satisfação que se tornou ainda maior quando os ministros da própria Suprema Corte começaram a decidir do mesmo modo, ainda que - por enquanto - monocraticamente.
Já expusemos em artigos publicados ou textos dirigidos aos colegas do mercado segurador o seguinte texto:
Abro aspas
"(...)
Por isso é que nos preocupa muito o Tema 210 nos litígios de ressarcimento em regresso demandados por seguradores de cargas. Estes não se ajustam em nada ao conteúdo e ao teor da decisão paradigma do julgado em repercussão geral. O fato de falarmos em cargas e em seguradores reclama uma atenção diferente.
Embora não pareça (para muitos), isso muda tudo (para todos). Tanto muda que o próprio Supremo várias vezes tratou de dizer que a situação deste caso é inteiramente distinta do precedente em que a transportadora busca encaixá-lo, à força de uma uniformização do essencialmente diferente, apenas para fugir do dever de indenizar.
Foi o que, por exemplo, entendeu o Ministro Alexandre de Moraes (ARE 1.146.801/SP), em momento posterior à fixação do tema 210 de repercussão geral:
"No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro."
E foi o que a Ministra Cármen Lúcia, no RE 1252909/SP, ressaltou, em distinguishing realmente exemplar:
"Inviável a aplicação do Tema 210 da repercussão geral, pois ausente identidade entre a matéria trazida na espécie e a tratada no Recurso Extraordinário n. 636.331, Relator o Ministro Gilmar Mendes. Na espécie vertente discute-se direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, não de limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais."
É exatamente como entende ainda a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Ag. Reg. no RE com Agravo 1.240.608/RJ, acórdão de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski:
"I - A discussão em torno de eventual direito de regresso para reparação de danos decorrentes de extravio de mercadoria em transporte aéreo internacional pago pela seguradora, não se submete ao Tema 210 da Repercussão Geral."
Ressaltando que essa é, mesmo, a jurisprudência recente da Suprema Corte, imediatamente posterior ao Tema 210, a Ministra Rosa Weber, no RE 1.196.955/SP, reforçou os termos do acórdão que a precedia e condenava a transportadora ao ressarcimento integral, asseverando que a limitação de responsabilidade de forma alguma poderia afetar a seguradora sub-rogada:
O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de inaplicabilidade do leading case objeto do Tema 210 à hipótese em que discutido mero direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, razão pela qual não se divisa a alegada ofensa aos dispositivos constitucionais suscitados.
O ministro Luiz Fux, na relatoria do acórdão do AG.REG. no AI 822.191, seguido pelos outros Ministros, também distingue muito bem um caso de outro:
"Por outro lado, destaco a existência de distinção entre o caso sub examine, que versa sobre danos decorrentes de falha na prestação de serviço de transporte aéreo de cargas e o consequente direito de regresso decorrente de contrato de seguro, e o leading case objeto do Tema 210 da repercussão geral (RE 636.331, Rel. Min. Gilmar Mendes), em que controvertida a limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais, não se aplicando à espécie, por conseguinte, a tese firmada no referido precedente."
O tiro de misericórdia, por assim dizer, foi disparado pelo Ministro Gilmar Mendes - exatamente o relator da decisão paradigma (a que gerou o tema de repercussão geral), que expressamente disse que o Precedente não se aplica aos casos envolvendo cargas e seguradores sub-rogados:
ARE 1331340 / SP
Decido.
O recurso não merece prosperar.
No caso, verifico que o Tribunal de origem, ao examinar a legislação infraconstitucional aplicável à espécie (Código Civil/2002), consignou que o caso dos autos distingue-se da matéria debatida no tema 210 da repercussão geral, posto que, neste paradigma, discutiu-se o direito de indenização pleiteado em caso de extravio de bagagem por transporte de passageiros quando estes são os destinatários finais do serviço prestado, enquanto que o caso dos autos se refere ao direito de regresso de seguradora que pagou indenização em razão de danos decorrentes do extravio de mercadoria no transporte aéreo de carga em situação em que a empresa contratante do seguro não é a destinatária final das mercadorias.
Logo, é simplesmente impossível se basear no entendimento prevalente do STF para afastar a integralidade da indenização. Ele justifica precisamente o contrário, e múltiplas vezes, por mais que o CDC não prevaleça sobre a Convenção de Montreal (Varsóvia), aliás a única coisa que foi realmente firmada no Tema 210. Nem a limitação de responsabilidade foi estendida a todo e qualquer caso. Nem o critério da especialidade foi visto como absoluto."
Fecho aspas
Celebradas as conquistas, faz-se necessário agora esclarecer algo muito importante e a que rogo a detida e generosa atenção.
Tudo o que defendo, até com base no que o Poder Judiciário até aqui decidiu, é que o Tema 210 não se aplica imediatamente a todo e qualquer caso de transporte aéreo internacional. Os casos de transportes de cargas e/ou demandados por seguradores sub-rogados não se submetem com facilidade ao inteiro teor da decisão de repercussão geral.
Isso não quer dizer que a Convenção de Montreal não seja aplicável, até porque não se questionada que ela vige, incorporada que está ao ordenamento jurídico brasileiro.
Insisto: o Tema 210 não é aplicável automaticamente aos casos de transportes de cargas e pleitos de ressarcimento em regresso promovidos por seguradores sub-rogados (o que se fala de forma cuidadosa e condicional, já que o assunto ainda é polêmico no cenário judicial), mas a Convenção de Montreal não deixa de regular a matéria.
Tudo ou quase tudo o que diz respeito ao transporte aéreo internacional (de pessoas e de cargas) encontra respaldo nela.
A norma da Convenção sobre a qual mais cabe discussão é a que trata da limitação de responsabilidade do transportador aéreo (também conhecida por limitação tarifada).
Se a limitação de responsabilidade incidirá ou não em um caso concreto é tema de debate acalorado e dependente de circunstâncias, fatos, documentos e mais um monte de diferentes coisas.
Esses limites tarifados não são automaticamente transpostos para a situação que envolve a seguradora sub-rogada, pois, além das excludentes da própria Convenção, não se encontra exatamente na mesma condição que o segurado. Também porque a limitação indenizatória se choca com o princípio da indenizabilidade irrestrita.
Ponto importante: judicialmente, em casos pontuais, excepcionais e em defesa da seguradora sub-rogada, até tem sido possível pôr em dúvida a própria Convenção de Montreal para o transporte de cargas. Mas não é seguro ou recomendável estabelecer esse posicionamento como regra.
Ressalvada, pois, a questão da limitação de responsabilidade a depender das circunstâncias do caso, a incidência da Convenção como um todo deve ser sempre considerada. Tanto para os transportes aéreos de pessoas como os de coisas (cargas), desde que internacionais.
Daí a importância de regulações de sinistros muito boas, do diálogo constante e harmônico entre seguradores, corretores de seguros e segurados, da coleta de documentos, para que o ressarcimento integral venha a ser conquistado mesmo com a incidência da Convenção de Montreal.
Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.