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Lei 14.285/21, princípio da superposição e o risco da derrotabilidade das leis ambientais

A lei 14.285/21 trouxe mudanças quanto às denominadas áreas de preservação permanente. Este artigo busca apresentar uma visão crítica da aludida alteração, em especial frente ao contexto histórico de tragédias pela inobservância dos limites das APPs.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Atualizado às 09:14

(Imagem: Arte Migalhas)

No último final de semana de janeiro de 2022 repetiu-se a tragédia verificada em todos os anos no Brasil. Em Franco da Rocha-SP, um deslizamento de terra levou à morte 17 pessoas, sendo que o número total de vítimas por conta das chuvas fortes, apenas no estado de São Paulo, chegou a 31 pessoas, além das 5.548 famílias desabrigadas ou desalojadas, segundo levantamento da defesa civil.1

São tragédias que se repetem religiosamente. Basta lembrar o recente dezembro de 2021, quando o interior e o sul da Bahia registraram 24 óbitos, e mais de 91 mil desabrigados2; ou março de 2020, em que a Baixada Santista foi atingida por fortes chuvas, que ocasionaram deslizamento de terras e óbitos3; ou novembro de 2018, com o deslizamento no Morro da Boa Esperança, em Niteroí-RJ, levando a óbito 14 pessoas4. Impossível não lembrar a recente tragédia que assolou a região serrana do Rio de Janeiro, em janeiro de 2011, com 918 óbitos, 99 vítimas desaparecidas até hoje, e mais de 30 mil desalojados5. Igualmente, inesquecível a forte chuva de Santa Catarina, em novembro de 2008, que resultou no óbito de 135 pessoas, com 9.390 pessoas desalojadas6.  

Todos estes fatos apontam a imprescindibilidade do respeito às normas ambientais, em especial aquelas que definem as denominadas Áreas de Preservação Permanente, assim compreendida como "área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas" (artigo 3º, inciso II, da lei 12.651/12)7.

Contudo, mesmo diante deste contexto histórico, sobreveio a lei 14.285/21, que trouxe alterações ao Código Florestal, o que foi motivo de intenso debate e críticas na comunidade jurídica.

Antes de comentar referida alteração, cabe de início esclarecer que o artigo 4º do Código Florestal (lei 12.651/12) delimita os limites, nas propriedades rurais e urbanas, das Áreas de Preservação Permanente. Especificamente o inciso I, do artigo 4º, da lei 12.651/12, trata das larguras mínimas, nas propriedades em que há cursos d'água natural perene e intermitente, nas quais são estabelecidas verdadeiras limitações administrativas de uso da propriedade, limitação esta que varia entre 30 a 500 metros do leito, de acordo com a largura do curso d'água.

A reforma apresentada pela lei 14.285/21 mudou a redação do §10, do artigo 4º, do Código Florestal, permitindo que, em áreas urbanas consolidadas8, lei municipal ou distrital possam definir faixas marginais de limitação de uso da propriedade distintas daquelas estabelecidas no inciso I.

Cabe indagar: Teria o legislador atuado com acerto na aludida reforma, flexibilizando e permitindo aos municípios a definição de novas regras, menos rigorosas, referentes à proteção ambiental?

Acreditamos que a resposta não é simples, pois não se pode ignorar a realidade social brasileira, como a construção de grandes centros urbanos em Áreas de Preservação Permanente.

Mas, antes de prosseguir, é importante destacar: a reformar não fala de área rural, tampouco de projetos urbanísticos em implementação. Há uma restrição da medida, pelo legislador, para áreas urbanas consolidadas, isto é, há muito tempo implementadas. Há ainda limitações importantes nos incisos do aludido §10º, dentre elas a não ocupação de áreas com risco de desastres.

Retomando, porém, a indagação supra, parece-nos que a reforma trouxe a instituição de uma "derrotabilidade abstrata" das regras ambientais, ainda que excepcional, efetuada pelo legislador, o que não se apresenta para nós como melhor opção, pois pode levar a deturpações do caráter excepcionalíssimo da medida, em especial diante de interesses egoísticos.

A melhor interpretação parece-nos aquela apresentada pelo Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do tema 1.010, oportunidade na qual foi fixada seguinte tese: Na vigência do novo Código Florestal (lei 12.651/12), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu artigo 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

Em síntese, não pode haver espaço para "derrotabilidade abstrata", o que não impede adoção de medidas mitigatórias e compensatórias, considerando o caso concreto, em especial em situações jurídicas consolidadas e que não tragam riscos à vida, saúde humana.

Para justificar nossa posição, e valendo-se da analogia, cabe aqui tomar de empréstimo ensinamentos da física a respeito das propagações das ondas, que apresentam razões mais puramente lógicas, do que quânticas, facilitando sua transferência para o direito.

Diante da competência concorrente dos entes para legislarem sobre direito ambiental, poderíamos falar, analogicamente, numa pluralidade de emissão de ondas. Como cada ente emite uma onda (entenda, edita uma norma sobre mesmo tema), é inevitável o encontro destas ondas, gerando aquilo que a física chama de interferência, a qual é regida pelo denominado princípio da superposição.

Segundo o princípio da superposição, o encontro de duas ondas provocadas num sistema linear é representado pela soma algébrica da amplitude destas ondas, que se cruzam. Exemplificando, se A está na ponta de uma corda e B está na outra ponta da mesma corda, e cada um provoca uma onda na corda, o encontro destas ondas irá gerar uma onda equivalente à soma das duas anteriores provocadas. Em síntese, pela superposição a interferência construtiva resulta necessariamente na soma, não no aniquilamento das ondas.

O mesmo raciocínio deve ser aplicado às normas ambientais, pois a mesma energia/fase (entenda como o mesmo fundamento constitucional) direciona a atuação de todos os entes federativos, qual seja: necessidade de proteção do meio-ambiente e da função social da propriedade.

Neste ambiente jurídico - diferente da física, que admite ondas com fases contrapostas -, não há espaço para interferência destrutiva, mas apenas para a interferência construtiva. Isto porque, como dito acima, a proteção do meio-ambiente é o fim comum dos entes políticos, fim comum e único.

A atuação dos municípios nos termos do autorizado pela lei 14.285/21 viola a própria lógica supracitada do princípio da superposição: se todos os entes federados tem o dever constitucional de proteção ao meio-ambiente, as normas por eles editadas devem somar-se para alcançar este objetivo, sendo que eventuais normas contrárias a este fim, por serem geradoras de uma interferência destrutiva na construção do fim constitucional, estará eivado de inevitável inconstitucionalidade.

Atento à realidade social brasileira, parece-nos ter almejado o legislador trazer maior segurança jurídica às situações consolidadas no tempo, e sem risco à integridade das pessoas. Afinal, a realidade social não pode ser ignorada: imagine a aplicação literal do Código Florestal na cidade de São Paulo, por exemplo, na marginal dos rios Pinheiros, Tietê, Tamanduateí (margeado pela Avenida do Estado).

Mas, não obstante a preocupação do legislador, entendemos novamente que a alteração não foi melhor caminho. Pois, não se faz "derrotabilidade" de normas de imensa importância no plano abstrato. Se "derrotabilidade" pode haver, esta tem que se dar à luz do caso concreto, frente à multiplicidade e a complexidade de variantes da realidade, que foge da capacidade da previsão em abstrato. Derrotabilidade se faz judicialmente, de modo excepcional, amparado em laudos técnicos, com participação popular e de instituições vocacionadas a tal fim (associações, ONGs, Ministério Público, etc). Não se delega importante função exclusivamente a municípios, muitos dos quais sequer possuem condições técnicas para apurar a real gravidade da situação concreta.

Há uma grave violação ao princípio constitucional da proporcionalidade, na sua dimensão da vedação à proteção deficiente, demonstrada historicamente.

A alteração ainda merece profundas críticas, pois ao se estabelecer uma "derrotabilidade abstrata" gerou profundo equívoco na compreensão do caráter excepcional da medida, podendo levar municípios ao atropelo das normas ambientais, mesmo em situações não autorizadas pela reforma.

Desta forma, não obstante o debate existente na comunidade jurídica sobre as alterações promovidas pela lei 14.285/21, entendemos que em matéria de direito ambiental deve ser aplicado o princípio da superposição, frente à competência concorrente dos entes políticos, de modo que apenas haverá espaços para interferências construtivas (maior proteção ambiental) pelos municípios, sob pena de vício de inconstitucionalidade. Mostra-se ainda inconveniente a criação de uma "derrotabilidade abstrata", frente aos sérios equívocos interpretativos que esta norma pode gerar, além da evidente incapacidade de compreensão em abstrato pelo legislador das múltiplas realidades envolvidas nos casos concretos, gerando proteção deficiente a valores constitucionais caros, e mais importantes que a propalada segurança jurídica.

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1 Dados disponíveis em: Bombeiros resgatam último corpo após deslizamento em Franco da Rocha, e número de mortos pela chuva chega a 18 | São Paulo | G1 (globo.com). Acessado em 06/02/2022.

2 Dados disponíveis em: Sobe para 24 o nº de mortos por causa das chuvas na BA; mais de 91 mil estão desabrigados ou desalojadas e 629 mil afetados | Bahia | G1 (globo.com). Acessado em 06/02/2022.

3 Dados disponíveis em: Mais um corpo é encontrado em área de deslizamento em Santos | Santos e Região | G1 (globo.com). Acessado em 06/02/2022.

4 Dados disponíveis em: 14 pessoas morrem em deslizamento em Niterói; buscas seguem | Rio de Janeiro | G1 (globo.com). Acessado em 06/02/2022.

5 Dados disponíveis em: Confira imagens marcantes da tragédia de 2011 na Região Serrana do RJ | Região Serrana | G1 (globo.com). Acessado em 07/02/2022.

6 Dados disponíveis em: Após desastre com enchentes de 2008, Blumenau cria mecanismos para prevenir novas catástrofes | Santa Catarina | G1 (globo.com). Acessado em 07/02/2022.

7 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acessado em 10/02/2022.

8 A lei 14.285/21 também alterou o conceito de áreas urbanas consolidadas, que passou a ser designada da seguinte forma: XXVI - área urbana consolidada: aquela que atende os seguintes critérios: a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; b) dispor de sistema viário implantado; c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços; e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: 1. drenagem de águas pluviais; 2. esgotamento sanitário; 3. abastecimento de água potável; 4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e 5. limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos. Disponível em: L12651 (planalto.gov.br). Acessado em 07/02/2022.

Maicon Natan Volpi

Maicon Natan Volpi

Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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