Moralidade administrativa e o dever de honestidade no novo art.11 da lei de improbidade administrativa
O comportamento despertado pela confiança legítima que o administrado deposita no agente político ou no agente público deve prevalecer mesmo contra a lei.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
Atualizado às 08:26
Recentemente a lei de Improbidade Administrativa - lei 8.429/92 - sofreu profundas modificações mediante a aprovação da lei 14.230, em 25 de outubro de 2021, sancionada, sem vetos, pela Presidência da República, e publicada no Diário Oficial da União em 26/10/2021 (Edição 202/ Seção 1/página 4), data em que entrou em vigor (art. 5º).1
O art. 11 caput sofreu uma alteração importante, não apenas no aspecto de sua tipologia, mas também quanto ao elemento subjetivo do agente - que deve consistir em ação ou omissão dolosa - o que, de resto já era exigido por firme jurisprudência.
Como se sabe, a regra se apoia na norma constitucional do art. 37, caput que determina à administração pública direta e indireta de todos os níveis obediência aos princípios da de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)".
Contudo, tanto a lei velha como a lei nova, falam em violação a deveres: na antiga, eram mencionados os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. A lei vigente menciona os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade - desaparecendo o dever de lealdade às instituições.
Diante dessa verdadeira transubstanciação de princípios para deveres, urge conectar os deveres mencionados pela lei aos princípios referidos pela Constituição Federal. Ora, o dever de legalidade se conecta com o princípio da legalidade, no qual se pode entrever também o princípio da publicidade, e o dever de imparcialidade se liga ao princípio homônimo. A violação ao princípio constitucional da eficiência não foi considerada ato de improbidade administrativa.
Diante desse quadro, fica patente que o dever de honestidade tem ligação com o princípio da moralidade. A questão está em se saber qual o conteúdo desse princípio.
O princípio da moralidade administrativa foi introduzido no Direito Administrativo Francês por Maurice Hauriou, a fim de ensejar que o Conselho de Estado de França pudesse examinar aspectos do mérito do ato administrativo, que até então eram inexpugnáveis, cobertos pelo princípio da legalidade.
A moral administrativa de que falava o mestre de Toulouse, consistia na prática de ato administrativo com abuso ou desvio do poder: embora legal, se o ato administrativo não obedecesse a essas linhas morais, seria ilícito, porque feriria a moralidade administrativa. O ato administrativo, além de ser realizado conforme predispõe a lei, deve sempre ser praticado em prol do interesse público e, portanto, dentro do âmbito da moralidade administrativa, isto é, sem desvio ou abuso de poder.
Todavia, esse aspecto da moralidade administrativa - desvio ou abuso de poder - de que falava Hauriou, já era aceito pela doutrina brasileira muito antes da Constituição Federal de 1988 consagrar expressamente esse princípio. O ingresso na análise do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário pelo viés do desvio ou abuso do poder já era admitido, sem contestação.
Com a evolução dos conceitos e institutos do Direito Administrativo, admiravelmente ampliados pelos estudos e reflexões da doutrina a respeito do Estado de Direito2 novas técnicas e instrumentos para análise dos atos administrativos foram mais bem elaborados e passaram a ser incorporados aos princípios constitucionais (explícitos ou implícitos), de maneira a modernizar e atualizar sua incidência.
Ora, com base nessas premissas, é um verdadeiro retrocesso a exegese segundo a qual a Constituição de 88 teria inserido no universo jurídico todas as regras da Moral, isto é, o complexo de regras que são consagradas por determinada sociedade, em determinada época, e que orientam os homens em sua vida cotidiana, possibilitando uma convivência social harmônica e frutífera. Em geral, as regras e princípios morais não contam com uma sanção objetiva, exceto se forem positivados em regras jurídicas.3
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1 Como não houve alteração no número da lei, iremos diferenciar uma da outra adjetivando-as: lei velha e lei nova.
2 A respeito deve ser consultada a obra "O Estado de Direito", do autor francês JACQUES CHEVALLIER, traduzido pelo autor e por Augusto Neves Dal Pozzo, edição Fórum.
3 Evidentemente, a matéria não é tão simples. Mas essas premissas são suficientes para este estudo.
Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo
Advogado e sócio fundador do escritório Dal Pozzo Advogados. Ex-procurador Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.