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Boas práticas de governança e a insolvência no setor da saúde

A crise econômica trazida pela Covid-19 apresenta desafios ao setor da saúde suplementar que apontam a necessidade iminente de rever suas práticas de mercado ou, em vista do desequilíbrio financeiro, preparar-se para a eventual insolvência da operadora.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Atualizado às 13:02

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Os impactos econômicos da Covid-19 ainda estão longe da plena compreensão, mas diversos efeitos já são sentidos pelo mercado. Um deles é o aumento expressivo de pedidos de recuperação judicial1 e decretações de falência nos anos de 2020 e 2021. Considerando que 67,6% do tipo de contratação de empresas do mercado da saúde suplementar é constituído por planos coletivos empresariais, espera-se que o setor da saúde suplementar sofra os reflexos das dificuldades financeiras enfrentadas por essas empresas2. Esse cenário indica às operadoras de planos de saúde (OPS) a necessidade de adotar novas estratégias de gestão de carteira para reduzir o impacto da insolvência de empresas, como revisar velhas práticas e aumentar a participação de planos de contratos individuais.

Entretanto, outro lado desse fenômeno é o aumento da insolvência das OPS. A saúde é algo de notável interesse social, prescrita na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental e intensamente regulamentada. Isso inclui a saúde suplementar, setor de atividade das OPS3. Consequentemente, a insolvência das operadoras de planos de saúde é repleta de particularidades destinadas a preservar os destinatários do serviço socialmente relevante de atenção e assistência à saúde, às quais as OPS devem estar atentas.

Pontes de Miranda4 caracteriza a insolvência como um estado econômico em que uma pessoa - seja ela natural ou jurídica - encontra-se incapaz de satisfazer seus débitos, em razão de seu ativo ser menor que o passivo. Uma visão abrangente da insolvência revela um fenômeno bastante complexo. A pessoa é o elemento axial de um feixe de relações sociais, econômicas e jurídicas. Suas ações, por menor que sejam, representam o potencial de impactar a coletividade. Isso não exclui sua (im)possibilidade de atender às justas demandas de seus credores. Assim, o direito possui uma longa história de desenvolvimento de institutos da insolvência que buscam conter seu impacto, visando preservar o patrimônio e as relações de credores e devedores, bem como proteger outras partes interessadas.

A insolvência de OPS é uma das situações que demonstram quão delicado pode ser esse procedimento. Como pessoas jurídicas que prestam serviços a incontáveis beneficiários, sua ruína pode representar o desamparo de milhares. Atento à importância de preservar esses serviços a despeito da integridade financeira das OPS, o legislador previu um regime diferenciado para a insolvência das operadoras: conforme o artigo 23 e seguintes da lei 9.656/98 (a "lei dos planos de saúde"), as OPS não podem requerer recuperação judicial e têm como padrão a liquidação extrajudicial, hipótese em que a ANS toma as rédeas da OPS a fim de controlar seu desequilíbrio financeiro.

A liquidação extrajudicial é a decisão mais grave que pode ser decretada pela ANS, quando observadas a insuficiência das garantias do equilíbrio financeiro ou anormalidades econômico-financeiras ou administrativas que possam comprometer a continuidade ou a qualidade da prestação dos serviços aos beneficiários. A liquidação implica na indisponibilidade dos bens dos administradores da OPS liquidada, o que revela a gravidade da medida. Nesse caso, a função da agência reguladora abrange analisar a saúde econômico-financeira da OPS, identificar eventuais ingerências pelo corpo administrativo e determinar as medidas que considerar necessárias para a continuidade dos serviços devidos pela operadora. Ou, em último caso, requerer a conversão para o regime de falência ou insolvência civil.

Nos casos de falência ou insolvência civil, haverá a alienação de todos os bens penhoráveis da OPS insolvente a fim de satisfazer as dívidas para com seus credores. A diferença é que o instituto de falência se aplica às sociedades empresárias que administram os planos de saúde e veda a realização de qualquer atividade empresarial após sua decretação, enquanto a insolvência civil ocorre quando a administradora de planos de saúde não possui caráter empresarial, como no caso de cooperativas e associações.

Essas medidas são adotadas em maior parte através de orientações do liquidante, figura responsável por conduzir a OPS em liquidação judicial durante o processo. Cabe a ele acompanhar o estado econômico-financeiro da operadora, como seus ativos e passivos e seus processos judiciais em andamento. O liquidante deve tomar as atitudes previstas em lei para garantir a condução de suas atividades, como determinar o afastamento de administradores, conselheiros ou empregados da OPS que estejam desrespeitando suas determinações, ou a extensão da indisponibilidade patrimonial a gerentes e terceiros.

O liquidante reporta todas essas informações à ANS, que inclusive pode decretar o afastamento de administradores da OPS ex officio. Caso a ANS constate que (i) o ativo da massa liquidanda é insuficiente para pagar ao menos metade dos créditos quirografários, (ii) o mesmo ativo for insuficiente para pagar as despesas administrativas próprias ao processo de liquidação, ou que (iii) há fundados indícios dos crimes previstos na lei 11.101/05, pode autorizar ao liquidante que requeira a falência ou insolvência civil da OPS. O requerimento imediatamente produz efeitos destinados a assegurar a integridade patrimonial da massa liquidanda: (i) a manutenção da suspensão dos prazos judiciais em relação à massa: (ii) a suspensão dos procedimentos administrativos de liquidação judicial, salvo aqueles relativos à guarda e proteção de seus bens e imóveis; (iii) a manutenção da indisponibilidade dos bens do corpo diretivo, gerentes e similares até ordem judicial que o revogue; (iv) a prevenção do juízo que emitir o primeiro despacho em relação ao pedido de conversão do regime.

Como indicam os dispositivos legais que apontam as hipóteses de afastamento de pessoas ligadas à administração da OPS ou de extensão das indisponibilidades de bens, inúmeras situações de agravamento da pressão exercida sobre a liquidanda e seus dirigentes e colaboradores derivam de falta de transparência da liquidanda ou do descumprimento das orientações do liquidante. Isso leva a crer que uma das melhores maneiras de evitar um processo traumático de liquidação extrajudicial - em especial para os possíveis afetados pela medida do liquidante - é de se adotar boas práticas de governança.

Podemos citar como algumas de suas modalidades o programa de integridade ou compliance, a gestão da qualidade, a auditoria interna e a gestão de riscos legais e financeiros. Nos programas de compliance, por exemplo, há uma estratégia de antecipação dos riscos e atendimento a requisitos legais e administrativos5. Nota-se que essas práticas implicam na autoimposição pela OPS de instrumentos que revelam sua adesão a boas práticas legais e administrativas e o reforço institucional de atendimento às expectativas sociais, econômicas e jurídicas. Nelas, podemos apontar duas melhorias importantes: uma OPS mais transparente para o liquidante, que pode identificar melhor os fatores de risco que deverão orientar sua atuação e eventualmente facilitar a restauração da operadora ao equilíbrio financeiro; e maior aderência da OPS às determinações do liquidante.

Ademais, as investigações internas podem identificar eventuais responsáveis por atos fraudulentos, imprudentes e negligentes, como crimes falimentares, que possam ter prejudicado credores. Essa informação é indispensável para tornar o trabalho do liquidante mais eficaz e não frustrar os esforços de associados e credores em obter seus valores de direito.

O liquidante é incumbido de uma relevantíssima função social: assumir o controle da OPS com vistas a restabelecê-la ao estado de solvência, de plena satisfação das pretensões de credores e beneficiários. E, na sua impossibilidade, proteger os beneficiários, identificar os responsáveis e fazer com que arquem com o ônus de ter colaborado para a derrocada da OPS. Boas práticas de governança são uma importante ferramenta para uma atuação mais efetiva do liquidante extrajudicial.

No Recurso Especial 1.845.214-RJ, A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente de forma favorável à ampliação das hipóteses de indisponibilidade dos bens de antigo membro do corpo diretivo de OPS.6 Segundo o § 1º do art. 24-A da lei 9.656/98, a indisponibilidade dos bens atinge membros do corpo diretivo que estiveram no exercício de sua função na OPS pelos últimos doze meses. Contudo, o juízo competente impôs medida cautelar à OPS, estendendo o prazo legal para um ex-conselheiro que havia deixado a posição há mais de doze meses.

No caso, o STJ decidiu pela manutenção da indisponibilidade dos bens - consequência imediata do processo de liquidação - entendendo que o juízo que o decretou recorreu aos meios necessários para averiguar, sob fundada suspeita, as responsabilidades, e garantir a responsabilização de todos os indivíduos que contribuíram para a insolvência da OPS. Seria encargo do juízo competente estender as hipóteses e a duração da indisponibilidade, dentro dos limites legais dos parágrafos 4º e 5º do artigo 24-A, conforme julgar essencial para assegurar a satisfação da finalidade da lei.

O entendimento da Terceira Turma reforça a teleologia do regramento específico da lei 9.656/98: proteger os interesses dos beneficiários de planos de saúde. Conforme apontado por Nancy Andrighi, a prestação de serviços privados de saúde suplementar possui "inegável relevância econômica e social".7

Em complemento à decisão, a existência de boas práticas de governança teria aprimorado o processo de apuração das responsabilidades do corpo diretivo. As informações coletadas mediante os processos de investigação e auditoria internos poderiam tornar mais eficaz a adoção de medidas de combate à insolvência, seja pelo liquidante, pelo juiz, ou pelo próprio corpo administrativo da entidade.

A crise econômica trazida pela Covid-19 apresenta desafios ao setor da saúde suplementar que apontam a necessidade iminente de rever suas práticas de mercado ou, em vista do desequilíbrio financeiro, preparar-se para a eventual insolvência da operadora. Uma das maneiras de fazê-lo é a adoção de importantes instrumentos de governança corporativa. Esses instrumentos estimulam a transparência da empresa para com as partes interessadas e a adesão a normas tanto internas quanto legais. Eles também podem tornar a atuação de liquidantes mais ágil, racional e eficaz, e o processo de apuração de responsabilidades menos traumático para todos os envolvidos.

Ademais, são práticas com grande potencial de aprimorar a restauração das OPS ao estado de integridade financeira e funcional. Resta ao setor refletir a respeito da sua responsabilidade como provedor de serviços de saúde, cujo papel social, a despeito de sua finalidade lucrativa, está na proteção da vida de seus beneficiários e de seu bem-estar físico, mental e social.

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DEUNGARO, Eduarda. O aumento no número de falências de empresas pode afetar as operadoras de saúde? Blog XVI Finance. 9 de abr. 2021. Disponível em: Acesso em 17 de ago. de 2021.

HIGÍDIO, José. Pedidos de recuperação judicial não param de crescer. 4 de abr. 2021. Acesso em 17 de ago. de 2021.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo 27: Concurso de credores em geral: Privilégios. Concurso de credores civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

SAAD-DINIZ, Eduardo; URBAN, Mariana. Análise qualitativa sobre a implementação dos programas de compliance no Brasil (2014-2019). Revista dos Tribunais, v. 1027. ano 110'1. p. 41-65. Disponivel em: https://www.academia.edu/49349674/SAAD_DINIZ_and_URBAN_Analise_qualitativa_sobre_os_programas_de_compliance_no_Brasil. Acesso em: 18 ago. 2021

STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp 1.845.214 - RJ 2019/0318217-9. Relator: Min. Nancy Andrighi. Data de Publicação: 22/04/2020.

ZIROLDO, Rodrigo Romera. GIMENES, Rafaela Okano. CASTELO JÚNIOR, Clóvis. A importância da Saúde Suplementar na demanda da prestação dos serviços assistenciais no Brasil. O Mundo da Saúde, 2013, v. 37, n. 2, p. 216-221.

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1 HIGÍDIO, José. Pedidos de recuperação judicial não param de crescer. 4 de abr. 2021. Acesso em 17 ago. 2021.

2 DEUNGARO, Eduarda. O aumento no número de falências de empresas pode afetar as operadoras de saúde? Blog XVI Finance. 9 de abr. 2021. Disponível em: Acesso em 17 de ago. de 2021.

3 ZIROLDO, Rodrigo Romera. GIMENES, Rafaela Okano. CASTELO JÚNIOR, Clóvis. A importância da Saúde Suplementar na demanda da prestação dos serviços assistenciais no Brasil. O Mundo da Saúde, 2013, v. 37, n. 2, p. 216-221.

4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo 27: Concurso de credores em geral: Privilégios. Concurso de credores civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 55-56.

5 SAAD-DINIZ, Eduardo; URBAN, Mariana. Análise qualitativa sobre a implementação dos programas de compliance no Brasil (2014-2019). Revista dos Tribunais, v. 1027. ano 110'1. p. 41-65. Disponivel em: https://www.academia.edu/49349674/SAAD_DINIZ_and_URBAN_Analise_qualitativa_sobre_os_programas_de_compliance_no_Brasil. Acesso em: 18 ago. 2021. p. 4.

6 STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp nº 1.845.214 - RJ 2019/0318217-9. Relator: Min. Nancy Andrighi. Data de Publicação: 22/04/2020.

7 Ibid. p. 10.

Daniela Nalio Sigliano

Daniela Nalio Sigliano

Mestre em Dir. Processual Cível. Especialista em Dir.Tributario. MBA/USP Adm. Empresas. Especializada em Recup. de Crédito e investigação patrimonial FBI. D. Médico e bioética pela Harvard University.

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