A natureza jurídica dos criptoativos e sua utilização nos contratos
Vamos ver se é verdade que os patinhos feios estejam se transformando em belos cisnes.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022
Atualizado às 08:41
- A bula deste artigo
Meus leitores poderão achar estranho essa ode que passo a fazer aos criptoativos, como se eu me tivesse convertido inteiramente a eles. Não, não é bem isso. Continuo com sérias desconfianças quanto à sua sustentabilidade no longo prazo, tratando-se de um universo econômico e jurídico ainda desconhecido (e por muito tempo), que já conta com milhares de "astros", todos os dias surgindo outros novos, em um processo contínuo e aparentemente inesgotável de um novo "big bang" a cada dia.
Primeiro, como se sabe, esses criptoativos não têm lastro, ou seja, bens do seu ativo que fundamentem a sua emissão e garantam o prometido, isto é, funcionar de alguma forma como um meio de pagamento. Ora, dirão os sábios, nem o dólar tem lastro, coisa de um passado já distante em que as moedas eram emitidas em contrapartida de depósitos em ouro nos tesouros nacionais. Isso é verdade. Desde muitas décadas o lastro das moedas é a confiança com que a honram seus emissores, duvidando-se que o Tesouro Nacional americano venha algum dia a mandar para casa de mãos vazias o portador de dólares por ele emitidos. O que vale para a aceitabilidade das moedas nacionais é a confiança que os detentores mantenham perante os emissores. E o PIB dos países que as emitem. Que o digam os venezuelanos.
Ora, as criptomoedas também não têm lastro, fundando-se a sua aceitação igualmente na mesma confiança. Acontece que as economias nacionais - contrariamente aos emissores de criptomoedas - têm longa história e a emissão de suas moedas se reveste de plena transparência. Além disso, quando as moedas nacionais entram em crise, providências podem ser tomadas para a solução dos problemas correspondentes, tal como o Brasil fez com a criação da URV em 1994, o marco inicial da redução drástica da inflação em que o país vivia.
Mas soluções exógenas estão fora do alcance dos emissores de criptoativos diante de crises externas à sua estrutura. Por exemplo, a bitcoin, o mais emblemático de todos eles, está em um momento de acentuada queda na sua cotação, que poderá ser ainda mais grave caso a crise que se desenrola na Europa a respeito da Ucrânia se prolongar ou, pior ainda, caso um confronto militar se estabeleça.
Como se costuma dizer, nas guerras, além da verdade que é a primeira vítima, ocorre a escassez de insumos e um deles na situação particular da Europa se localiza no campo do gás, cujo fornecimento poderá ser extremamente reduzido ou até mesmo cortado. Assim acontecendo, a eletricidade será grandemente afetada e a mineração das bitcoins poderá se tornar impossível em diversos países. Cheque mate, diriam alguns.
- Os patinhos feios que viraram cisnes
2.1. Natureza jurídica dos criptoativos
Mesmo reconhecendo os riscos que os criptoativos oferecem para os seus titulares, uma vez aceitos eles apresentam condições para uma utilização econômica relevante como veremos em seguida, a partir de sua natureza jurídica.
Como se sabe, os criptoativos têm sido objeto de discussões intermináveis. Elas na maioria das vezes não chegam a alguma posição conclusiva generalizadamente aceitável por causa do não entendimento de qual seja a sua natureza jurídica, da qual decorrem inúmeros efeitos, inclusive no campo dos contratos possíveis, segundo a conveniência dos interessados.
No sentido acima parece, inicialmente, que tem ficado claro que os criptoativos não são moeda porque não preenchem de forma cumulativa os seus três requisitos básicos, indissoluvelmente interligados: (i) meio de pagamento de curso forçado; (ii) moeda de conta; e (iii) reserva de valor.
Quanto a primeiro elemento, sabe-se que alguns países têm caminhado em tornar os criptoativos como meio de pagamento interno, a exemplo de El Salvador e (em parte) a Nova Zelândia, em um processo que tem sido denominado de criptoização1. Mas, evidentemente, essa opção é limitada ao âmbito restrito de cada país, não se prestando ao panorama negocial internacional. Quanto a El Salvador o FMI está fazendo pressão para que volte atrás em sua decisão, claramente por receio de crise que possa nascer naquele país, vindo a caracterizar-se risco sistêmico. Do lado privado, a moeda proposta por Elon Musk derreteu diante de pressões regulatórias que não foi capaz de enfrentar.
No tocante à qualidade de moeda de conta os criptoativos de maneira geral não se prestam a essa função, considerando que sua cotação é muito instável e, frequentemente, suas oscilações são de expressão considerável. Basta ver o que tem acontecido nos últimos dias com a cotação da bitcoin. Ela começou um processo acentuado de queda, tendo variado de R$366.667,00 em novembro de 2021 para R$197.613,00 na data de 2 fevereiro de 2022, ou seja, uma perda de 55%, verdadeiramente expressiva. Dessa forma, qualquer conta a partir da sua cotação revelará um índice diferente a cada dia. E, como dissemos acima, o perigo de sobrevir uma guerra na Europa, ainda que limitada, poderá fazer com que tal oscilação se torne muito mais forte e a tendência será para baixo porque os seus titulares procurarão portos mais seguros para a sua embarcação.
A questão de que os criptoativos não são seguros como reserva de valor é o resultado, precisamente, da variação intensa de suas cotações dado que, quando o titular precisa convertê-los em alguma moeda nacional para o fim da realização de pagamentos, poderá alcançar um montante muito mais baixo do que o do valor da sua compra. Sobre esse aspecto o brasileiro um pouco mais antigo conhece muito bem o processo de desvalorização extrema da moeda nacional em décadas passadas, o que foi um verdadeiro tormento principalmente para os sem banco.
Nem sequer os criptoativos são seguros e rentáveis como investimento no longo prazo, como acontece com as ações. Quanto a essas em dado momento a sua cotação pode encontrar-se em patamar inferior ao valor de sua compra pelo titular e isso não decorrente de uma situação interna ruim da companhia, mas por problemas de mercado. Mas em tais casos, quando se trata de uma empresa sólida, ela pagou dividendos em todos os exercícios anteriores, o que consistiu em uma renda efetiva.
É importante notar que tem havido amplo entrelaçamento dos criptoativos com diversos segmentos dos mercados financeiro e de capitais, trazendo preocupação para os reguladores. Isso tem se dado especialmente no que diz respeito a aplicações em empresas americanas de tecnologia, a bônus dos governos, ao petróleo etc., do que decorrem riscos imensuráveis2. Ou seja, para o bem e/ou para o mal, os criptoativos já integram diversos mercados que operam como microssistemas interligados e alavancagem em um mercado provoca a do, bem como a desalavancagem de um acarreta a do outro, segundo o temido exemplo do jogo de dominó. A esse respeito perguntamos, o que os Estados nacionais podem fazer?
O montante de criptoativos em circulação é tão volumoso que essa nova realidade passou já há algum tempo do ponto de não retorno, ou seja, aquela distância percorrida por um avião que não permite mais voltar ao aeroporto de origem porque faltará combustível para tal finalidade. Dessa maneira, a economia mundial e as economias nacionais terão de viver com essa realidade e procurar administrá-la na medida do que seja econômica e juridicamente possível.
O que nos interessa para os fins deste texto é que o Banco Central do Brasil - BCB - e a Receita Federal não tem considerado os criptoativos como moeda, sendo que esta última os trata com a natureza jurídica de ativos financeiros, conforme se verá em seguida.
Quanto ao BCB por meio do comunicado 25.306, de 19/2/14 ficou afastada cabalmente a natureza dos criptoativos como moeda, tendo afirmado aquele Órgão que as chamadas moedas virtuais nem sequer se constituem como moeda eletrônica.
Do lado da Receita Federal a Secretaria da Receita Federal do Brasil - SRB - publicou uma resposta a Solução de Consulta do Coordenador do Sistema de Tributação - COSIT- 214, de 2012.2021. Esse ato, a par de definir a tributação dos ganhos de capital, recorda a isenção existente para os ganhos de capital havidos por pessoas físicas, que não ultrapassem R$ 35.000,00 no mês, nos termos do item 1, da alínea "a", do inciso VI, do artigo 35, do Regulamento do Imposto Sobre a Renda ("IR"), aprovado pelo decreto 9.580, de 22/11/18 ("RIR").
Como se verifica, na dita Solução de Consulta a SRB não declara diretamente, que as cripto moedas são ativos financeiros, mas o faz indiretamente ao considerar tais entidades como bens passíveis de gerarem tributação do Imposto Sobre a Renda sobre os ganhos de capital na alienação de bens. Dessa forma, como todos os bens possuídos pelas pessoas físicas ou jurídicas são ativos, em se tratando de bens financeiros tornam-se ativos financeiros.
Embora a aludida Solução de Consulta trate da tributação das operações envolvendo criptoativos, realizadas por pessoas físicas, podemos, com bom grau de certeza, afirmar que o entendimento ali exarado se aplica também às pessoas jurídicas que realizem operações envolvendo esses bens. Os ganhos de capital correspondentes serão tributados por suas consequências contábeis nas pessoas jurídicas tributadas pelo regime do Lucro Real, e diretamente nas sociedades tributadas pelos regimes do lucro presumido e da micro e pequena empresa.
De forma aparentemente contraditória essa natureza de não moeda pode revelar-se muito mais útil para os usuários dos critoativos do que se eles se caracterizassem daquela forma. Como veremos, a versatilidade de sua utilização os torna instrumentos importantes para que diversos objetivos lícitos possam ser alcançados. O óbice mais importante não está no plano do direito, mas fático, dada a tão falada oscilação de suas cotações.
2.2. Aplicação da natureza dos criptoativos como ativos financeiros no campo do contrato
Na qualidade de ativos financeiros os criptoativos estão subordinados ao tratamento jurídico dados aos bens móveis imateriais. E como tal, eles podem ser objeto de todos os tipos de contrato referentes a essa natureza jurídica, como compra e venda, permuta, locação, aluguel, alienação fiduciária, garantia etc.
É marcante observar uma faceta favorável aos criptoativos no mercado internacional relativamente ao fato de que as partes estrangeira e nacional podem até mesmo manter contratos de longa duração ou de tempo indeterminado, por meio dos quais ficarão caracterizadas situações dinâmicas de saldos credores e devedores recíprocos, que se invertem ao longo dos acordos. Ora, essas relações são típicas do conhecido contrato de conta corrente (não bancária). Esse contrato é originado da reciprocidade de negócios entre comerciantes, mais tarde generalizado para os interessados em geral, conforme o ensinamento de Waldemar Ferreira3.
De acordo com o autor citado, as partes nesse contrato lançam as suas remessas em contas especiais, de crédito e de débito, estabelecendo-se a condição de credor e de devedor para cada um deles, conforme a evolução dos lançamentos, situação essa que somente se configura quando a conta é encerrada. Ou seja, no período intermediário entre o início dos lançamentos e o seu término não há obrigação a cumprir, atuando no caso o chamado princípio da indivisibilidade, que opera durante todo o tempo em que a conta é movimentada, considerado requisito substancial dessa modalidade contratual.
O contrato de conta corrente se encerra vencido o prazo que tenha sido estabelecido ou por meio da vontade das partes.
Dada, portanto, a sua natureza de bens móveis imateriais os criptoativos podem ser utilizados no plano territorial interno para todo e qualquer tipo de contrato inerentes a essa natureza, tanto nominados quanto inominados. Neste último caso, considerada a flexibilidade que se alcança na sua negociação virtual, a criatividade dos empresários fará nascer modalidades diversas de novas relações contratuais.
É claro que o risco da oscilação da cotação dos criptoativos consiste em um problema a ser enfrentado, podendo ser utilizado o contrato de hedge com o fim de restringir-se eventual perda para um dos lados. Esse termo é originado da língua inglesa e tem o sentido de cobertura, cerca ou limite, instrumento destinado a proporcionar determinado nível de segurança em negócios contra as eventuais ou mesmo certas oscilações de preço ou de valor das obrigações das partes.
Um dos casos mais comuns da utilização do hedge tem estado no campo do agronegócio. Por exemplo, um produtor agrícola pretende vender milho no mercado internacional, sabendo que diversos fatores (econômicos, monetários ou políticos) poderão afetar o preço dessa commodity ao longo dos próximos meses. Recorrendo ao hedge esse produtor lança um contrato de venda futura pelo preço da cotação atual que o satisfaz. No caso de o preço do milho baixar até o momento da colheita e da entrega ele terá garantido o seu lucro. Ser o preço subir ele deixou de ter um lucro maior, mas foi a condição para afastar o prejuízo da baixa do preço. Não é que ele tenha experimentado prejuízo, pois o preço da venda lhe proporcionou lucro quando a fez. Tão somente deixou de ganhar tanto quanto poderia, mas essa circunstância faz parte do risco normal dos negócios.
Observe-se, ainda, que há criptoativos cujo preço é referenciado ao dólar, acompanhando a cotação dessa moeda, caso em que os contratos correspondentes também poderão ser protegidos por meio do hedge, reduzindo-se dessa forma o risco de sua utilização.
Voltado ao nosso tema, tendo em conta a natureza jurídica dos criptoativos, eles podem ser equiparados às commodities, para o fim de proporcionar segurança nas operações em que são utilizados mediante proteção também por meio do hedge.
Como se sabe, um dos apelos mais fortes dos criptoativos são relacionados a operações no plano internacional, considerando-se os diversos fatores de facilidade para a sua negociação no ambiente virtual da internet.
No sentido acima um empresário estrangeiro poderá enviar recursos para um destinatário nacional, discutindo-se se tal remessa deva passar pelo regime dos capitais estrangeiros no Brasil e pela realização das operações por meio de bancos autorizados a operar em câmbio, mediante a intermediação de uma corretora autorizada a operar nesse mercado. Vejamos.
Atente-se para o art. 1º da lei 4.131, de 3/9/62, que disciplina os capitais estrangeiros, do seguinte teor:
Art. 1º Consideram-se capitais estrangeiros, para os efeitos desta lei, os bens, máquinas e equipamentos, entrados no Brasil sem dispêndio inicial de divisas, destinados à produção de bens ou serviços, bem como os recursos financeiros ou monetários, introduzidos no país, para aplicação em atividades econômicas desde que, em ambas as hipóteses, pertençam a pessoas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior.
O regulamento da lei acima é objeto da Res. CMN 3.844, de 23.03.2010, que para fins de registro no BCB considera capital estrangeiro:
I - Investimento estrangeiro direto;
II - Crédito externo, inclusive arrendamento mercantil financeiro externo;
III - royalties, serviços técnicos e assemelhados, arrendamento mercantil operacional externo, aluguel e afretamento;
IV - Garantias prestadas por organismos internacionais; e
V - Capital em moeda nacional, nos termos da Lei nº 11.371, de 28 de novembro de 2006 (cujo art. 1º trata dos recursos em moeda estrangeira relativos aos recebimentos de exportações brasileiras de mercadorias e de serviços para o exterior)
Não sendo moeda, a única hipótese relativa a empréstimo em criptoativos concernente à lei e ao regulamento citados é a de serem considerados bens entrados no país sem o dispêndio inicial de divisas na qualidade de crédito externo, desde que destinados à produção de bens ou de serviços, como seria o caso do exemplo dado.
Mas apresenta-se uma forma operacional que afasta o enquadramento de capital estrangeiro supracitado. O empresário de que se trata toma emprestado criptoativos no mercado internacional e não os faz ingressar no país, mantendo-os em conta em seu nome no exterior. Examinando-se a Circular BCB 3.689, de 16/12/13 - que trata do capital brasileiro no exterior - parece que ela não agasalha o exemplo acima.
Em primeiro lugar, os recursos resultantes do empréstimo externo em criptomoedas e mantidos no exterior não correspondem evidentemente a uma transferência para fora, nem a investimento brasileiro no exterior, na forma da referida Circular. Observe-se que o seu art. 68 cuida registro dos empréstimos externos ingressados no País.
Pensemos em uma operação comum, realizada com criptoativos. Um investidor nacional (vamos usar esse termo pela ausência de outro melhor) adquire criptoativos no mercado interno, pagando em reais e os declarando perante a Receita Federal. De posse deles poderá usá-los, como disse, nos mais variados negócios, tanto no âmbito interno quanto internacional, ficando problemático aplicar à sua circulação o critério de fronteiras nacionais. Isto porque as operações correspondentes serão feitas por uma corretora especializada que verdadeiramente não tem uma sede em determinado lugar, a não ser pela necessidade formal de uma referência geográfica e regularização sob determinado ordenamento jurídico com o fim de tais operações não fiquem no mundo da marginalidade.
A velocidade intensa da negociação de tais bens, que podem circular entre vários proprietários por vários lugares do planeta terra no mesmo dia ou até em horas entra em choque com o mundo estável (ao menos relativamente) que conhecíamos há poucos anos, mas que agora é um passado que pode ser considerado distante. Isso implica fortemente nos direitos nacionais, que frequentemente se sentem verdadeiramente perdidos.
Veja-se que a circulação de valores calculados em bilhões de dólares transformados em criptoativos afeta as economias nacionais no início das operações correspondentes, quando eles resultam de aquisições em moedas locais, que se encontravam na disponibilidade dos seus titulares, que com elas podiam fazer tudo o que fosse licitamente possível. Desse momento em diante eles podem circular pelo mundo todo, dentro de sua redoma, havendo momentos em que seus proprietários façam mergulhos especulativos no mundo real negociando seus criptoativos por outros bens dentro de determinados períodos do seu interesse, podendo voltar a uma posição integral ou parcial naqueles bens.
Entenda-se especulação como uma necessidade presente nos mercados, de forma a lhes dar liquidez, permitindo que os agentes neles entrem e saiam, comprando e vendendo na busca da realização de interesses legítimos. Sem especuladores os mercados teriam enormes dificuldades para o seu funcionamento regular porque em determinado momento faltariam vendedores e em outro momento faltariam compradores, com prejuízo geral.
Dessa maneira a permeabilidade dos mercados de criptoativos com aqueles do mundo chamado real é uma necessidade já que, pelo visto, se não podemos viver sem eles, vamos ao menos regular as maneiras pelas quais possamos viver com eles. E nesse sentido é claro que os reguladores dos mercados financeiro e de capitais deverão buscar soluções viáveis, dentro de suas competências respectivas, nunca se esquecendo de que, apesar de chuvas e trovoadas, vivemos sob o império constitucional da liberdade de inciativa. Mas esse, felizmente para mim, não é problema que me cabe resolver.
Como diria alguém, da mesma forma como quanto às bruxas: não acredito neles (como forma de expressão), mas que existem, existem e temos de conviver com isso.
No caso particular do Brasil, como as declarações da titularidade de tais bens é feita anualmente junto à Receita Federal como ativos financeiros qualquer que seja o seu valor, não nos preocupando aqui que as questões tributárias. Por outro lado, cabe aos seus titulares fazerem declarações ao Banco Central do Brasil, anualmente, quando o seu valor for igual ou superior a US$ 1 milhão ou o seu equivalente em outras moedas; ou trimestralmente, quando o seu valor for igual ou superior a US$ 100 milhões, ou o equivalente a outras moedas. Ou seja, enquanto a Receita Federal está ocupada com o micro, o BCB se volta para o macro, isto é, com valores realmente expressivos cuja movimentação possa afetar os interesses nacionais, eventualmente dando lugar a evasão de divisas, crimes de ocultação de dinheiro ou bens e de outras naturezas.
Dentro ou fora do limite acima, o empresário titular de criptoativos pode utilizá-los livremente segundo os seus interesses em negócios lícitos de diversa espécie, mas ainda e não se sabe por quanto tempo, jungido a uma legislação ineficaz porque está desligada da realidade presente. Ou seja, o que se nos depara é que está em vigor uma legislação erigida na década de 60 do século/milênio passado, época em que praticamente não se falava em globalização. Essa legislação buscava proteger a economia brasileira, buscando atender interesses relevantes internos, válida a seu tempo, mas que certamente hoje necessita de urgente atualização, tantas foram as mudanças nos fundamentos econômicos em geral e relativamente ao funcionamento dos mercados financeiro e de capitais em todo o mundo.
Na análise de questões jurídicas atinentes a esse mundo novo os reguladores e o Judiciário sempre agirão de forma conservadora, não somente porque são resilientes a mudanças, especialmente as mais bruscas, como também porque devem zelar pelos interesses públicos que se colocam debaixo de suas competências. O processo evolutivo aperfeiçoador continuará se dando na forma tradicional: tese, antítese e síntese, até se chegar a uma situação estável.
Vamos em frente, mas, enquanto isso não acontece, os empresários e investidores têm à sua disposição instrumentos novos, de natureza virtual, para a realização lícita dos seus interesses. Lembrem-se que os antigos comerciantes (hoje empresários) sempre deram à luz novos negócios e o direito renovou-se com elas, sendo o exemplo clássico o da criação das letras de câmbio, que os permitiu ladear o direito canônico e o local, transitando livremente entre as fronteiras nacionais das repúblicas italianas.
Vamos ver se é verdade que os patinhos feios estejam se transformando em belos cisnes.
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1 Troca de uma moeda nacional por um criptoativo.
2 Vide a respeito "FMI vê risco de criptomoedas em mercados emergentes", Jornal Valor Econômico de 01.02.2022.
3 Sobre o assunto vide Waldemar Ferreira in "O Contrato de Conta Corrente", Tratado de Direito Comercial, vol. 9º, O Estatuto Obrigacional do Comércio e os Títulos de Crédito", p. 56 e segs.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.
Renato Stephan Pelizzaro
Advogado especializado em Direito Tributário. Membro do GIDE. Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.