Urgência para aquisição de bens e serviços essenciais para o combate a Covid-19 não afasta a necessidade de licitação
Se o Poder Público quiser contratar um bem ou serviço que entenda ser essencial e o caracterize como serviço contínuo para o combate ao coronavírus, não deve valer-se da contratação via dispensa, mas sim, instaurar um procedimento licitatório para garantir a aplicação das regras legais e constitucionais.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Atualizado às 13:36
A lei 14.124/21 dispõe sobre as medidas excepcionais relativas à aquisição de vacinas, insumos, contratação de bens e serviços de logística, de tecnologia da informação e comunicação, publicidade e treinamentos destinados à vacinação contra a covid-19.
O art. 2º desta lei autoriza a administração pública, direta e indireta, a firmar contratos por dispensa de licitação para aquisição de bens e serviços necessários para efetivar a política pública de imunização contra a Covid-19.
Dentre outros pontos excepcionais, a lei também autoriza a contratação de fornecedor exclusivo, mesmo que ele tenha sanção de impedimento ou de suspensão para celebração de contrato com o poder público para o ente contratado.
Se houver restrição de fornecedores ou de prestadores de serviço, a administração pode dispensar o cumprimento de um ou mais requisitos de habilitação.
O termo de referência e o projeto básico também podem ser feitos de forma simplificada e a estimativa de preços pode ser dispensada. Mas mesmo se for feita uma estimativa de preço, não há impedimento de contratar por valores superiores ao orçado em caso de oscilações e variações de preços. Para isso, basta que se comprove que houve uma negociação previa com os demais fornecedores e que seja motivado.
Todos esses aspectos legais advêm da lei 13.979/20, que trouxe as primeiras medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública internacional da pandemia do coronavírus. O reconhecimento do estado de calamidade pública se deu através Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, contendo várias medidas de flexibilização de licitações e contratos administrativos, enquanto durar a pandemia do coronavírus.
Desde então, a Administração Pública firmou uma série de contratos, via dispensa de licitação, para aquisições de bens e serviços que considera essenciais no enfrentamento da pandemia. Aqui está uma reflexão acerca da utilização desenfreada do instituto da dispensa, conquanto a regra legal/constitucional é que as contratações públicas sejam feitas mediante licitação.
Outro ponto de reflexão é a caracterização dos contratos firmados via lei 14.124/21 como sendo de natureza contínua. Mesmo que o objeto seja um bem ou serviço considerado essencial à saúde pública, o contrato firmado via dispensa de licitação não pode ser tratado como de natureza contínua.
Além da lei ter prazo de validade (válida até cessar o estado de calamidade pública decorrente do coronavírus), os contratos de serviços e fornecimentos contínuos admitem a dilação do prazo por até 5 anos1. Isso descaracteriza a urgência/emergência que justifica a dispensa de licitação2. Dessa forma, se um contrato pode perdurar por cinco anos, para garantir a lisura da contratação, o objeto deve ser licitado e não contratado de forma direta.
Sobre o assunto, vale rememorar o conceito de serviços prestados de forma contínua3, que são aqueles que, pela sua essencialidade, atendem a necessidade pública de forma permanente e contínua, por mais de um exercício financeiro, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público.
De acordo com o Tribunal de Contas da União4, "o que caracteriza o caráter contínuo de um determinado serviço é sua essencialidade para assegurar a integridade do patrimônio público de forma rotineira e permanente ou para manter o funcionamento das atividades finalísticas do ente administrativo, de modo que sua interrupção possa comprometer a prestação de um serviço público ou o cumprimento da missão institucional."
A necessidade permanente da execução do serviço, por si só, não é um critério para enquadrar o objeto como serviço contínuo, pois o que caracteriza o serviço com essa natureza é a sua prestação ininterrupta em face do desenvolvimento habitual das atividades administrativas, sob pena de prejuízo ao interesse público.
Por outro lado, os serviços considerados não continuados são aqueles que impõem aos contratados o dever de realizar a prestação de um serviço específico em um período predeterminado, podendo ser prorrogado, desde que justificadamente, pelo prazo necessário à conclusão do objeto. (vide IN 5/2017-MPDG)5
Ou seja, os serviços não contínuos são aqueles que têm como escopo a obtenção de produtos específicos em um período pré-determinado. Portanto, mesmo que aquisição de insumos e serviços para o combate ao coronavírus visem atender uma política pública que será prestada de forma permanente e contínua, não há como se contratar via dispensa de licitação, seja pelo caráter perene da lei, seja pela impossibilidade de se prorrogar um contrato emergencial por longos 5 anos.
O TCU, há muito tempo, já determina a escolha da "modalidade de licitação para a contratação de serviços a serem executados de forma contínua"6, justamente para garantir a lisura do contrato.
Sendo assim, se o Poder Público quiser contratar um bem ou serviço que entenda ser essencial e o caracterize como serviço contínuo para o combate ao coronavírus, não deve valer-se da contratação via dispensa, mas sim, instaurar um procedimento licitatório para garantir a aplicação das regras legais e constitucionais. Dessa forma, mesmo com a urgência para aquisição de bens e serviços de combate a covid-19, não se pode afastar as regras de licitação e optar por pela contratação direta.
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1 Lei 14.133/2021 - Art. 106. A Administração poderá celebrar contratos com prazo de até 5 (cinco) anos nas hipóteses de serviços e fornecimentos contínuos (...)
2 Lei 14.133/2021 - Art. 75. É dispensável a licitação: VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso;
3 Fonte: Instrução Normativa nº 2/2008 da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão
4 TCU. Acórdão 132/2008 - Segunda Câmara. Relator: Ministro Aroldo Cedraz. Data do julgamento: 12/02/2008
5 Fonte: https://www.gov.br/compras/pt-br/images/conteudo/ArquivosCGNOR/IN-n-05-de-26-de-maio-de-2017---Hiperlink.pdf
6 TCU. Acórdão 1913/2006 - Segunda Câmara. Relator Walton Alencar Rodrigues. Sessão 25/07/2006