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Open Health - Uma ideia que não se sustenta?

Qualquer medida que venha a permitir o melhor e mais fácil acesso às ações de saúde é extremamente benvinda, mas é o momento de se prestar grande atenção às medidas a serem adotadas e aos seus efetivos efeitos.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Atualizado às 10:08

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Jornais começaram a publicar a notícia de que o Governo estaria buscando implementar o chamado Open Health, com o objetivo de aumentar a concorrência na área de planos de saúde, aumentar a oferta de produtos e diminuir o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS),1 não estando muito claro, ainda, se essa alteração alcançaria apenas os beneficiários de planos individuais, ou não.2

Toda e qualquer medida que venha melhorar a oferta de planos, garantir coberturas contratadas e permitir um reajuste justo de preço, é benvinda; a dúvida que resta é se essa proposição do Governo teria esse condão positivo pretendido por ele.

A priori, e sem conhecer os exatos contornos da medida sugerida, e sem saber da existência de estudos de impacto socioeconômico e regulatório,3 é de se presumir que essa medida em estudo pelo Governo, além de não beneficiar o consumidor idoso ou doente (os mais expostos e presumidos, a priori, como "menos saudáveis"): [1] trará ainda maiores riscos ao equilíbrio econômico das operadoras com alta sinistralidade; [2]  é uma declaração antecipada de falência do SUS; [3] permitirá um aumento de mercado para as empresas de corretagem e/ou administradoras de planos de saúde, já tão beneficiadas desde a edição da Resolução Normativa ANS 196 (14/7/09);4 [4] é uma afronta à proteção prevista no Art. 14 da Lei Federal 9656/98,5 mitigando o conceito de seleção de risco; e, por fim, [5] estimulará a entrada  de players casuísticos e momentâneos, preocupados, naturalmente, mais com resultados econômicos imediatos.6

Por que isso? Em síntese:

[a]. Se o objetivo, como diz o Governo, é permitir que empresas venham a competir dando maiores vantagens para pessoas que não apresentam no momento, ou ao longo dos últimos anos, problemas de saúde, isso tenderá a fazer com que beneficiários "mais saudáveis"7 deixem as operadoras em que se encontrem em busca de um valor momentâneo mais barato. Quatro consequências aqui, a priori, e em tese, poderiam ser enumeradas: [1ª.]. A empresa que receber esse beneficiário "mais saudável" irá ter uma receita menor e, ao mesmo tempo, se tudo der certo, um risco menor (não se pode esquecer, por exemplo, que uma urgência ou emergência não tem idade, nem hora, nem carência...); [2ª.]. Esse beneficiário "mais saudável," com o passar do tempo, tenderá a ser de maior risco ou custo e, aqui, os reajustes desses beneficiários provavelmente estarão controlados, monitorados ou, de alguma forma, acompanhados pelo Governo ou suas autarquias e a tendencia será essa nova empresa, que pegou beneficiários "mais saudáveis", ver a sua sinistralidade aumentar e, necessitando de equilíbrio, tenderá a  limitar a cobertura (atraso em liberação, restrição de rede, entre outras) e buscar aumentar o preço dos novos entrantes, mas, aqui, terá dificuldade de vender e, ao mesmo tempo, os seus atuais beneficiários "mais saudáveis", serão buscados por outras empresa: é uma espiral de morte anunciada; [3ª.]. Não se pode esquecer que, ainda hoje, está vigente a regra de solidariedade intergeracional, através da qual a diferença entre o valor da primeira faixa etária e a última é de 6 vezes, sem distinção entre maior risco ou menor risco ("mais saudável" ou "menos saudável"), não restando claro da proposta se essa regra seria, ou não, também alterada; [4ª.]. A quarta consequência estaria na empresa que hoje vem mantendo consumidores "mais saudáveis" em sua carteira, e que seriam o alvo dessa concorrência pretendida pelo Governo. Essa empresa, atuando na regra de preço de 1 para 6 vezes, e não podendo recusar ou excluir consumidores, mantem, é curial, além dos "mais saudáveis," uma percentagem de idosos ou de pessoas com maior utilização ou risco, sendo os seus custos totais suportados através da mutualidade, ou seja: os custos, a sinistralidade, e a fixação de reajustes e preços, estariam levando em consideração esse mix de beneficiários. Cabe lembrar que na composição dessa sinistralidade, conceito basal na área de manutenção de equilíbrio financeiro de qualquer empresa planos de saúde, entram todas as receitas e todas as despesas médicas de todos os beneficiários, em sendo assim, o que o Governo estimulará com o Open Health é a diminuição da receita sem a diminuição da despesa: a empresa que "perdeu" esse bom beneficiário terá menos recursos para arcar com os custos daqueles beneficiários que ficaram e, com isso, a sua sinistralidade e risco aumentarão, como visto anteriormente. É o estabelecimento não de uma concorrência que traz melhoria para o sistema, mas, sim, de uma concorrência autofágica, casuística e destrutiva. Se, no Governo, a perda de uma receita ou o aumento do prejuízo não é problema, pois sempre se achará uma maneira de romper o teto de gastos ou se postergar pagamentos, na iniciativa privada um prejuízo constante é a morte certa (falência, insolvência, quebra, ou o nome que se queira dar) e essa morte certa é um ônus enorme para os beneficiários e para o próprio SUS; essa dinâmica se converterá, assim, em uma sinalização de aumento do risco Pais, tornando ainda mais difícil a atração de investidores de longo prazo na área da saúde suplementar.

[b]. Com isso, aqueles que mais necessitam de uma cobertura (sejam idosos ou não) serão os maiores prejudicados. Esse prejuízo poderia ser atenuado se o SUS, de fato, fosse para todos e com a qualidade que dele se espera nos termos da Constituição Federal; porém não é isso o que acontece. Uma vez perguntaram como tornar um determinado serviço médico hospitalar em um serviço de referência de um plano de saúde, sem causar a sensação nos beneficiários de ser esse referenciamento uma restrição de direitos. Várias ideias sugiram, por exemplo, uns disseram para aumentar campanhas de marketing mostrando como o hospital era bonito, com muitos equipamentos de última geração, acessível e com bons médicos; outros, simplesmente, sugeriram tornar o acesso a ele obrigatório e preferencial e ver o que acontecia... Até que alguém disse o obvio: preste um bom e confiável serviço e tenha um ótimo e positivo relacionamento com a classe médica e os pacientes. Por que lembrar dessa história? Porque enquanto as pessoas estiverem tendo que buscar uma operadora de planos de saúde, sacrificando-se em extremo, isso será um sinal de que o SUS não está prestando um bom e confiável serviço, isso é sinal de que ele não tem um ótimo e positivo relacionamento com a classe médica e os pacientes. Por que lembrar dessa história? Porque enquanto as pessoas estiverem tendo que buscar uma operadora de planos de saúde, sacrificando-se em extremo, isso será um sinal de que o SUS não está prestando um bom e confiável serviço, isso é sinal de que ele não tem um ótimo e positivo relacionamento com a classe médica e os pacientes. O SUS é essencial não somente para a boa saúde do cidadão brasileiro, que o busca e que dele depende, ele é o maior fator de equilibro dos preços e das relações entre operadoras de planos de saúde e beneficiários: um sistema público funcionando e atendendo bem, a todos e em todas as suas necessidades, e sendo assim percebido, faria com que a cobertura privada fosse buscada como algo a mais e, não, como algo essencial. Essa não parece ser, entretanto a ideia do Governo, aparentemente, de um lado, mais preocupado em tirar pacientes do SUS do que os acolher e, de outro, menos preocupado com a integração de dados e uso de tecnologias (que consolidem o atendimento à distância, o uso mais racional do sistema, evitando redundâncias e desperdícios, e os riscos de falha ou fragilidade informação, essenciais ao tratamento do paciente), do que em transformar o sistema em uma estrutura mais efetiva de bom atendimento a menor custo.

[c]. Por fim, aqui, se de um lado os idosos e doentes ficarão mais expostos; se, de outro, os "mais saudáveis" serão "disputados" por empresas (que terão limitações para reajustar os preços no futuro) e irão sofrer os mesmos riscos no futuro; se o SUS não está atendendo ou dando a segurança necessária às pessoas, para que elas deixem o sistema privado; a pergunta que fica é: quem ganhará com essa medida?

Concluindo, qualquer medida que venha a permitir o melhor e mais fácil acesso às ações de saúde é extremamente benvinda, mas é o momento de se prestar grande atenção às medidas a serem adotadas e aos seus efetivos efeitos, através de uma escorreita análise dos seus impactos socioeconômicos. O SUS e o sistema privado não são antagônicos, porém, cada qual tem que, efetivamente, ocupar o seu lugar e exercer o seu papel, cabendo às operadoras de planos de saúde um papel essencial de inovação, agilidade e qualidade de atendimento, devendo ela ser buscada pelo cidadão não por necessidade, mas por livre opção em busca de um serviço diferenciado.

___________

1 Veja, por exemplo, as seguintes reportagens: [a] Jornal o Globo de 20/01/2022: "Open Health': Plano do governo de compartilhar dados de planos de saúde não é simples, dizem especialistas". Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/open-health-plano-do-governo-de-compartilhar-dados-de-planos-de-saude-nao-simples-dizem-especialistas-1-25361288, visitado em 21/01/2022; e [b] Jornal Valor Econômico de 19/01/2022: "Governo estuda MP para criar o 'open health'". Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/01/19/governo-estuda-mp-para-criar-o-open-health.ghtml, visitado em 21/01/2022.

2 Beneficiários de Planos individuais estariam em torno de 8.912. 157, sendo que, desse total, cerca de 2.540.000 seriam de beneficiários com idade igual ou maior do que 60 anos. Pesquisa realizada em 21/01/2022 no site http://www.ans.gov.br/anstabnet/cgi-bin/dh?dados/tabnet_br.def.

3 O estudo de impacto regulatório está expressamente previsto na Lei Federal 13.874, de 20/09/2019, que assim dispõem no seu Art. 5º:  "As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.   (Regulamento) Parágrafo único.  Regulamento disporá sobre a data de início da exigência de que trata o caput deste artigo e sobre o conteúdo, a metodologia da análise de impacto regulatório, os quesitos mínimos a serem objeto de exame, as hipóteses em que será obrigatória sua realização e as hipóteses em que poderá ser dispensada." Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm, visitado em 21/01/2022. Essa Lei foi regulamentada pelo Decreto 10.411, de 30/06/2020, sendo que o Regimento Interno na ANS, inclusive, indica de quem será a responsabilidade pela coordenação da análise (ANS - Resolução Regimental 01, de 17/03/2017 - Art. 13, VIII, d).

4 Referida Resolução Normativa regula as Administradoras de Benefícios.

5 Referido Art. 14 assim dispõe: "Em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde".   

6 Em um passado longínquo, antes do Plano Real e antes da regulamentação dos contratos de plano de saúde, era comum serem oferecidos planos por valores absolutamente inexequíveis, os quais, após atraírem o consumidor, não entregavam o prometido ou eram sujeitos a grandes reajustes de preço. Quando esses reajustes não eram suficientes, as empresas simplesmente quebravam deixando o consumidor ao relento.

7 O conceito de "mais saudável" é um conceito absolutamente impreciso, vago, dubio e preconceituoso. Aqui, ele parece estar sendo utilizado para significar, casuisticamente, aquele que pouco usa a cobertura do plano ou aquele que teria uma idade propensa a menores custos (o não idoso, ou a mulher que ainda não alcançou o período fértil, por exemplo).

Henrique Freire de O Souza

VIP Henrique Freire de O Souza

Adv. Pós Dir. Econômico-UFRJ, Privado - UFF, Civil Constitucional-UERJ. LLM Intl Legal Studies- GGU. Curso de Finanças-Alumni COPPEAD e Mediating Disputes-Harvard. Links: IABA-WAML-IBERC-CDMSOABRJ

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