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Escolha política? O que devemos aprender com o Chile no exemplo de formação paritária do governo e o poder-dever da inclusão

É preciso acelerar escolhas públicas justas para refazer as estruturas obsoletas de poder.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Atualizado às 08:18

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A notícia da composição do novo governo chileno trouxe ares de esperança quanto à vivência presente da democracia institucional, principalmente em razão da nomeação de mulheres em ministérios estratégicos, como o da Defesa Nacional, de Relações Exteriores e da Segurança Pública, por exemplo. Para este último, foi indicada Izkia Jasvin, jovem médica, com 35 anos de idade. Em 2015, Justin Trudeau, primeiro-ministro canadense, já havia cumprido sua promessa de campanha, e apresentou um ministério paritário. Mas o exemplo do Chile, nosso vizinho, é mais impactante, por decorrer de todo um movimento, desde a sua origem constitucional, de reconhecimento da importância da mulher na política. Além disso, concretiza-se em um continente mais machista. A apresentação da composição estrutural de cada novo governo revela muito de suas políticas e articulações, retratando seus valores e a tônica do porvir.

Apesar de ficcional, a série Borgen, disponível no Netflix, trata, em sua primeira temporada, do caminho de Birgitte Nyborg, na assunção do governo da Dinamarca, tornando-se a primeira mulher a liderar o país. Uma série de negociações partidárias são realizadas até que ela forme o novo governo, dentro das regras e dinâmicas do sistema adotado pela Dinamarca. A indicação é feita aqui para destacar como o jogo político de ajuste de interesses e ideologias diversos importa para acomodar o pluralismo e levar a decisões aceitáveis em uma democracia.

Também para relembrar que são naturais as negociações - lícitas - na formação de um governo, mesmo em um sistema presidencialista. A política é a arte de negociar o impossível1 e integra o seu sentido a busca por consensos viáveis, a fim de que as liberdades possam conviver. Afinal, o governo formado é para todos(as) e contemplar estruturalmente o máximo de partidos possíveis em sua condução aumenta, sem dúvida, a representatividade.

O amadurecimento da democracia institucional no Chile nos ilumina, já que as similaridades da história política e da formação do povo brasileiro e chileno têm uma base comum, perpassando o tipo de colonialismo e o recente passado ditatorial, que culminou em processo de redemocratização igualmente potente.

O que o vizinho chileno nos ensina, na apresentação do seu novo governo, é que não há mais espaço para escolhas políticas não isonômicas. Aliás, há lugar ainda para se falar de escolha em matéria de inclusão e exclusão?

É preciso acelerar escolhas públicas justas para refazer as estruturas obsoletas de poder. Se a escolha de um(a) presidente(a) ou um(a) primeiro(a)-ministro(a) relaciona-se diretamente com um processo eleitoral cujas normas podem ou não facilitar a paridade, a escolha política da composição dos ministérios também deve obedecer a essa lógica, justamente por se tratar de uma opção dentre várias possíveis: incluir ou excluir.

Recentemente, tivemos o exemplo das eleições das Diretorias da Ordem dos Advogados do Brasil. Como a composição das chapas precisava seguir as regras de paridade, atualmente contamos com o único conselho de classe, no Brasil, que conta com homens e mulheres, em igualdade, em sua composição. Apesar da natureza sui generis da OAB dentro da Administração Pública, já podemos ver um avanço claro nessa temática dentro de sua estrutura político-organizacional, que tem espaço também dentro da nossa Constituição. 

E incluir, até que se alcance a plena paridade em todos os espaços de poder, é a opção política válida em uma democracia institucional. Como já tivemos a oportunidade de analisar2, é muito paradoxal que os esforços para aumentar a participação da mulher concentrem-se apenas  na política representativa. É necessário que esses debates atravessem a composição de todas as instituições democráticas, pois há muito em comum no que concerne aos fatores que excluem as mulheres desses espaços.

Não parece sensata essa despreocupação institucionalizada ou uma atenção que concentre todos os esforços na inclusão política feminina apenas nas instâncias eletivas de poder. Por isso, temos destacado a necessidade de "avançarmos para o desenvolvimento e concretização da 'democracia institucional", como o Chile, que vem nos dando esse exemplo, desde sua decisão política pela paridade de gênero entre os(as) constituintes3.

Sem essa compreensão de que a participação da mulher nos espaços de poder precisa ser considerada do ponto de vista institucional, talvez o Direito Eleitoral e o Direito Partidário fiquem anos a fio entre debates científicos e reformas legislativas que olham apenas para uma pequena parte do problema, que é a exclusão da esfera de representação política. Contudo, o problema é muito mais amplo e sua dimensão institucional precisa ser considerada. 

Estão sempre em estudos as alterações normativas pelas quais o Direito Eleitoral vem sofrendo com o intuito de incluir mais mulheres na política, o que potencializa sua função enquanto instrumento de transformação social. Mas essa missão não é apenas do Direito Eleitoral e Partidário. Também é um debate que precisa ser enfrentado pelo Direito Administrativo e, antes de tudo, pelo próprio Direito Constitucional.

Precisa-se lançar novos filtros para os legítimos debates em torno da formação de um novo governo, de quaisquer esferas federativas. Essas discussões e articulações devem girar em torno de quais mulheres e de quais partidos irão integrá-lo e não sobre a diversidade e a pluralidade. Logo, não há mais escolha quanto à paridade; e se não há mais escolha, não se trata mais de postura política, de livre opção. Trata-se de poder-dever.

Refutam-se, desde logo, argumentos de que não existiriam mulheres capacitadas a ocupar os cargos. As mulheres têm apresentado rendimentos profissionais e de resultados técnicos e científicos maiores que os homens, em média. O que há, a bem da verdade, é ausência de vontade em promover a equidade. E a inexistência dessa vontade, já na própria composição do governo, fala por si só.

A não paridade, além de não isonômica, é imoral. Imoral, pois não faz mais parte do da moralidade aceita e compartilhada, a desigualdade de gênero, principalmente, por escolha, e escolha de quem deveria e pode (poder-dever) promovê-la. Interesse público, para além de uma cláusula vazia com resquícios autoritários, que justifica as prerrogativas de superioridade do público sobre o privado, deve fomentar os valores previstos em nosso pacto constitucional, dentre eles a igualdade entre homens e mulheres na composição dos cargos públicos.

Essa ausência de paridade é igualmente constrangedora, pois mais da metade da população não tem sua perspectiva de ser e estar no mundo sendo ponderada nas decisões de cúpula, que vão influenciar na formação de políticas públicas, programas governamentais e até em leis, direta ou indiretamente.

As escolhas políticas não estão imunes ao cumprimento dos preceitos dos arts. 5º e 37, caput, da nossa Constituição Federal. Afinal, só encontram respaldo nos limites da moldura estabelecida por ela. A igualdade e a moralidade, às quais os agentes políticos estão submetidos, têm em seu núcleo de valor a paridade de gênero, valor que decorre de políticas e legislações nacionais e internacionais, das quais o Brasil é signatário.

Assim, cada chefe do Poder Executivo, aliás cada chefe na estrutura da Administração, tem o poder-dever da paridade de gênero na formação orgânica dos governos e a injustificada ausência é imoral e politicamente constrangedora. Somente um governo que não se importa com os custos políticos, sociais e econômicos negativos dessa exclusão se sente à vontade em suportar esse mal-estar cívico.

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1 SCOTT, Joan. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, 2005, p. 29.

2 Machado, Raquel; TELES, Jéssica; OLINDA, Vitória. Justiça eleitoral é masculina: Por mais democracia institucional e igualdade nas cortes. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/335977/justica-eleitoral-e-masculina--por-mais-democracia-institucional-e-igualdade-nas-cortes. Acesso em 19/01/2022.

3 Machado, Raquel; TELES, Jéssica; OLINDA, Vitória. Justiça eleitoral é masculina: Por mais democracia institucional e igualdade nas cortes. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/335977/justica-eleitoral-e-masculina--por-mais-democracia-institucional-e-igualdade-nas-cortes. Acesso em 19/01/2022.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Jéssica Teles de Almeida

Jéssica Teles de Almeida

Professora da UESPI e membro da Abradep.

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