Direito comparado em exercício
Da nulidade da cláusula de eleição de foro ou de compromisso arbitral não negociada individual e separadamente no contrato de transporte marítimo de carga: a experiência espanhola.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022
Atualizado às 07:47
Já há algum tempo que me insurjo contra a cláusula de eleição de foro ou de compromisso arbitral no estrangeiro em contrato internacional de transporte marítimo de carga.
Insurjo-me não por ser exatamente contra a adoção do foro estrangeiro ou da arbitragem, seja no Brasil, seja no exterior.
Muito pelo contrário. Como advogado, estou acostumado a atuar, direta ou indiretamente, no exterior.
O que Roma é para mim no campo da fé, Londres é no profissional.
Agrada-me, muito, por muitas e boas razões, atuar no exterior.
Do mesmo modo, vejo com bons olhos a arbitragem e espero sinceramente que ela se avolume no Brasil.
Minha insurgência dá-se por outro motivo: a manifesta e escancarada ausência de voluntariedade.
Onde se lê eleição de foro estrangeiro, leia-se imposição. Onde se vê compromisso arbitral, veja-se dirigismo arbitral.
No contrato internacional de transporte marítimo de carga, cujo instrumento (que mais do que um contrato, é um título de crédito) é de adesão, não há, a rigor, salvo em casos muito excepcionais, a manifestação de vontade do embarcador, muito menos a do consignatário (da coisa transportada).
Só - e somente só - o transportador expõe sua vontade e impõe seus termos e condições.
Não há negociação prévia de nenhuma das cláusulas.
Todas, absolutamente todas, são ditadas unilateralmente pelo transportador e impressas no anverso do Bill of Lading (título, em inglês, do instrumento contratual, que é essencialmente um título de crédito).
Por isso que a jurisprudência sempre considerou algumas das suas cláusulas como abusivas, portanto, ilegais (nulas de pleno Direito ou, ao menos, inválidas ou ineficazes).
Falo, em especial, das cláusulas de limitação de responsabilidade e de eleição de foro e/ou de compromisso arbitral.
Aqui, neste ensaio, deixo de lado as de limitação de responsabilidade, até porque nenhuma polêmica se lhe abateu nos últimos tempos e elas são inegavelmente ilegais, incompatíveis com o princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 944 do Código Civil.
Ocupo-me das de eleição de foro estrangeiro ou de compromisso arbitral porque, em virtude de equivocada interpretação do Código de Processo Civil atual, algumas decisões (felizmente, poucas) tem lhes emprestado validade e eficácia.
Para cortar o mal pela raiz e garantir o acesso à jurisdição nacional, direito fundamental, é que tenho reiteradamente escrito muita coisa sobre o assunto.
Alegro-me saber que meu entendimento - dada a rouquidão de minha voz - é amparado por pareceres de juristas poderosos como Ives Gandra da Silva Martins e (saudoso) José Manuel de Arruda Alvim (os quais uso frequentemente nos casos que patrocino ao lado dos meus sócios). Amparado também por artigos de muitos e qualificados colegas, como o do ilustre professor e processualista Fredie Didier Jr.
Todos esses grandes nomes do Direito brasileiro entendem que a garantia constitucional de acesso à jurisdição é inafastável senão por vontade expressa do jurisdicionado e, mesmo assim, somente nos casos envolvendo direito patrimonial disponível. Entendem, ainda, que a cláusula de imposição de foro estrangeiro ou de procedimento arbitral no contrato internacional de transporte marítimo de carga é abusiva, portanto ilegal.
E o Código de Processo Civil não mudou absolutamente nada. Reforçou - e merece aplausos por isso - a possibilidade de as partes escolherem em um contrato o foro estrangeiro ou a arbitragem, desde que de modo absolutamente voluntário, livre, desimpedido.
No negócio de transporte de carga nada disso ocorre. Raramente, embarcador e consignatário externam suas vontades e o foro estrangeiro ou a arbitragem se lhe são impostos goela abaixo.
A arbitragem padece ainda mais nesse contexto de adernamento contratual, pois a lei que a disciplina no Brasil não só enfatiza a voluntariedade como cuida da forma, exigindo clareza e transparência, demonstração efetiva de concordância com o compromisso.
Há previsão expressa de como a cláusula tem que ser tratada em contrato de adesão e ela é solenemente ignorada pelos transportadores. Daí, a flagrante ilegalidade, para não dizer inconstitucionalidade. Fala-se inconstitucionalidade porque não existe renúncia tácita ao exercício da garantia fundamental de acesso à jurisdição.
O jurisdicionado, pessoa natural ou pessoa jurídica, tem direito ao juiz natural, ao juiz imparcial, a ver o seu caso apreciado por quem tem a função primaz de dizer o direito e distribuir a justiça.
Esse direito só pode ser renunciado, em certos temas, por livre, formal, prévia e desimpedida vontade do interessado. Sem voluntariedade não existe arbitragem. Sem voluntariedade não se pode falar em eleição de foro estrangeiro.
Vai-se ainda mais além. Impor arbitragem ou foro estrangeiro é ferir direito humano fundamental (aplicável também às pessoas jurídicas neste caso), inalienável, já que a garantia de acesso ao juiz imparcial é prevista nas Cartas de Direitos Fundamentais da Europa e Interamericana.
A regra é a jurisdição nacional. O foro estrangeiro ou a arbitragem são as exceções. Em relação à arbitragem ainda há de se considerar a concessão que o Estado dá em o Direito ser exercido por meio distinto do jurisdicional, desde que observada a vontade da parte. Impressionante como tudo isso é tão óbvio, mas, infelizmente, tem que ser repetido à exaustão. O mundo atual é pródigo em desnaturar a obviedade e tornar não-questão em falsa questão.
Daí os muitos argumentos contrários ao reconhecimento da cláusula de imposição de foro estrangeiro ou de arbitragem em instrumento contratual de adesão, que, em verdade, nunca é demais repetir, é mais um título de crédito do que tal. Tenho, agora, mais um argumento jurídico, fundado em Direito Comparado.
Trago do curso de pós-graduação em Direito da Universidade de Salamanca, 48ª edição, disciplina de Direito Processual Civil e Arbitragem, algo muito bom e que será frequentemente usado em palestras, seminários, eventos, artigos, ensaios e, sobretudo, peças forenses.
Aliás, penitencio por não saber disso antes e agradeço à poderosa Universidade de Salamanca, a quarta mais antiga do mundo ocidental, com seus 804 anos, mãe de todas as universidades ibero-americanas, por me inculcar o especial gosto pelo Direito Comparado e aprender como fazer uso de seu conteúdo.
Falo, em especial, da Ley de Navegación Marítima del 2014, que introduziu no sistema jurídico espanhol disposição específica para inibir as cláusulas comprometedoras da jurisdição nacional.
Essa regra, contou-me importante jurista espanhol, nasceu dos anseios doutrinários e das respostas judiciais ao abuso contratual dos transportadores. Grande parte da comunidade jurídica espanhola se posicionou firmemente contra essas cláusulas, protegendo a dignidade dos direitos e garantias fundamentais.
Eis o que diz a lei:
Artículo 468. Cláusulas de jurisdicción y arbitraje.
Sin perjuicio de lo previsto en los convenios internacionales vigentes en España y en las normas de la Unión Europea, serán nulas y se tendrán por no puestas las cláusulas de sumisión a una jurisdicción extranjera o arbitraje en el extranjero, contenidas en los contratos de utilización del buque o en los contratos auxiliares de la navegación, cuando no hayan sido negociadas individual y separadamente.
En particular, la inserción de una cláusula de jurisdicción o arbitraje en el condicionado impreso de cualquiera de los contratos a los que se refiere el párrafo anterior no evidenciará, por sí sola, el cumplimiento de los requisitos exigidos en el mismo.
A taxatividade dos seus termos é bastante expressiva e não comporta qualquer dúvida ou interpretação enviesada. Entusiasmado - até envaidecido - por ver o que sempre defendi exposto em artigo de lei de um país com um dos melhores ordenamentos jurídicos do mundo, destaco o seguinte trecho: serán nulas y se tendrán por no puestas las cláusulas de sumisión a una jurisdicción extranjera o arbitraje en el extranjero, contenidas en los contratos de utilización del buque o en los contratos auxiliares de la navegación, cuando no hayan sido negociadas individual y separadamente.
O artigo da lei especial determina a nulidade da cláusula que não foi negociada individual e separadamente. Excelente, não? A medida do que acontece no Brasil pode e deve ser feita pela mesma régua da Espanha, sendo certo que, aqui, é a própria lei de arbitragem que assim dispõe.
Dizer mais é desnecessário. Trabalharei obstinadamente para introduzir no Direito brasileiro norma similar. Termino lembrando que em se tratando de litigante segurador sub-rogado (o que é muito comum) nos direitos do dono da carga (por conta do seguro de transporte), ainda mais absurda se revela a eventual imposição de cláusulas dessa natureza.
Ele, o segurador não é parte do contrato de transporte, sendo-lhe inaplicável o conteúdo deste. Seu direito não deriva da inexecução do contrato, mas do pagamento de indenização ao segurado, vítima do dano.
Ainda que o segurado tenha convencionado livremente a arbitragem, o que é raro, impossível ao segurador se submeter ao clausulado.
Além do que já exposto acerca da inexistência de renúncia tácita da garantia de acesso à jurisdição - direito fundamental - tem-se por ineficaz, ainda que válido, o ato do segurado com terceiro que, de algum modo, extinga ou minimamente prejudique o direito de regresso do segurador (art. 786, parágrafo 2º, do Código Civil).
O direito de regresso não pode ser esvaziado porque sua efetivação não interessa apenas ao titular imediato, o segurador, mas ao colégio de segurados, considerando-se o princípio do mutualismo.
Princípio que dá ao contrato de seguro um indelével selo social, sobre o qual se assenta a necessidade de sua especial proteção, o que inclui a busca do ressarcimento.
Por meio do Direito Comparado, da magnífica lei espanhola, um argumento a mais será somado aos esforços de se manter íntegro o uso da jurisdição brasileira, a que melhor trata em todo o mundo o Direito Marítimo.
Não é o primeiro, nem será o último texto, que concluo com as famosas palavras do dístico da Universidade de Salamanca, que cai muito bem ao presente contexto: "Decíamos ayer. Diremos mañana".
Eis um tema em que, a despeito dos meus interesses profissionais como advogado do mercado segurador, os quais confesso publicamente, em homenagem à transparência, deposito minhas mais absolutas e acadêmicas convicções. Mesmo se um dia eu parar de advogar, manterei o entendimento presente. Falava isso ontem. Falo, hoje. Falarei amanhã.
Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.