Desobediência civil - Aspectos constitucionais - Abusos dos governos brasileiros
O Direito Constitucional parece admitir a resistência pacífica como modo de desobediência civil em relação a um estado de coisas inconstitucional em situações de extrema injustiça.
sexta-feira, 21 de janeiro de 2022
Atualizado às 12:56
Não se encontra em livros de direito constitucional e teoria geral do Estado (no passado lecionei em ambas as cadeiras), a discussão de um instituto de direito constitucional importantíssimo que seria a análise da desobediência civil.
Não se pode perder o timming das grandes mudanças comportamentais pelas quais o mundo esteja passando, deixando de questionar certas verdades sabidas sem o conhecimento de que situações extremamente injustas (veja o estado de coisas inconstitucional que os tribunais tem analisado em diversos setores da vida dos cidadãos - problemas de cárcere inadequado às finalidades, demora na prestação da Justiça - Informativo STF 470 e por aí vai).
Antes, no entanto, de passar ao detalhamento dos conceitos elementares, importante ponderar no sentido de que o país atravessa um momento delicadíssimo sob a perspectiva das liberdades democráticas - fala-se em tolher a maioria em nome das minorias num ambiente completamente inamistoso entre correntes extremamente antagônicas - tudo pode, ou não, ao sabor das marés, ser tido como contra majoritário. Vale a máxima ipsos custodes quid custodiastes - e quem controla o controlador.
Políticos são eleitos para representarem os eleitores, mas o fato é que, a partir de institutos como a ADPF, partidos com dois ou três deputados, judicializam a tudo e paralisam projetos de leis, exercício de garantias e por aí vai. Longe estão os tempos de Montesquieu em que juízes seriam le bouche de la loi (a "boca" da lei).
Hoje o Poder Judiciário, sem deter mandato popular, acaba ganhando o protagonismo na interpretação das normas e, por vezes, modificam completamente o sentido de garantias legais e constitucionais, tudo em nome de atualização aos novos tempos e costumes.
Tome-se por exemplo, a questão do aborto, uma ADPF de partido nanico, pretende passar por cima da garantia do direito a vida, previsto na Constituição, como se o feto não estivesse vivo, logo não estivesse protegido pela ordem constitucional. E ao invés do Parlamento deliberar sobre isso, um corpo de notáveis avocado por uma representatividade de dois ou três deputados deliberará sobre a questão. Esse tipo de situação tem ocorrido a rodo nos últimos anos.
A regra de flexibilização de legislações injustas, portanto, forma, precedentes e eles devem ser levados em conta para todos os cidadãos em todos os setores - e não apenas para aquilo que o establishement deseja, mas deveria refletir os anseios da população.
E a falta de representatividade dos interessados, no caso, a população que não está tendo sua opinião levada em conta (apesar do Gramscismo cultural em que a opinião pública acaba sendo moldada pelo que grupos de interesses não conservadores querem) o fato é que a população nacional se encontra descontente com um grande estado de coisas.
Conceitualmente, o instituto implica numa forma de ação social manifestada como protesto político. Parte-se da premissa diante da qual ativistas passam à desobediência expressa a uma determinada lei, caso ela seja enxergada como injusta por um determinado grupo de pessoas. É uma ação caracterizada pela não-violência e visa a transformação social.
Essa ideia não é tão nova assim e já foi analisada na história em vários episódios importantes. No século XIX chamado Henry David Thoreau que manifestou sua insatisfação com os impostos cobrados para financiar a Guerra Mexicano-Americana (Civil disobedience, em inglês). Os americanos já haviam feito revoltas por conta do aumento do imposto do chá, antes disso.
Depois disso foi apresentado como resistência pacífica por Gandhi na libertação da Índia junto ao Império Britânico (a conhecida Marcha do sal de 1930 que deu influxo ao ato de autonomia em 1947), bem como nos protestos pelos direitos civis dos negros liderados por Martin Luther King, nos Estados Unidos.
Sem meias palavras, a desobediência civil é um instituto que pode ser derivado de um conjunto de princípios constitucionais que defende o desrespeito a uma lei por parte da população, se essa lei é vista como injusta, de modo que grupos minoritários, ou aqueles que não são ouvidos no processo político, encontram de participar dele e, portanto, é um instrumento que pode ser utilizado pelos cidadãos para garantir a sua cidadania, partindo de ações de protesto não violentas visando a promoção de justiça social.
No Brasil, em termos de reformas políticas, ninguém que não sejam os políticos acaba sendo ouvido - a discussão em torno do quociente eleitoral em que um candidato X com milhões de votos elege 10 deputados inexpressivos indiretamente é uma piada - isso é um modo de lotear o voto popular em torno de campeões para perpetuar raposas no cenário político - pessoas que não se elegeriam de outro modo.
O povo não é ouvido em termos de reformas administrativas (há casos e casos, obviamente, mas há um excesso abusivo de servidores em alguns setores e falta premente em outros - vejam a estrutura da Câmara e do Senado, atendendo cerca de seiscentas pessoas e a estrutura de municípios com centenas de milhares de pessoas, por exemplo - há grandes distorções). Igualmente está descontente com o sistema político, com o sistema eleitoral e com o sistema tributário caótico.
Tudo isso é desperdício indevido de dinheiro dos contribuintes e massacre da opinião popular desmobilizada. É importante considerar que o desrespeito à lei só é enquadrado dentro do conceito de desobediência civil quando movido por um sentimento de busca por igualdade ou justiça - o povo brasileiro necessita desta igualdade (bancos maquiam balanços dizendo que quando fizeram acordos, tiveram prejuízos - em verdade os acordos trazem à realidade os valores ajustados - mas ainda assim se usa isso para pagar menor contribuição sobre o lucro líquido, para ficar em um único exemplo, enquanto o funcionário público que ganha três salários-mínimos fica refém da arrecadação insana).
A desobediência civil não é meramente uma ação individual, mas sim uma ação coletiva de um grupo que visa, por meio dela, realizar uma transformação social, o que impede que se confunda desobediência civil com desordem ou anarquia - não se quer a ausência de poder, se quer preservar a ordem, mas não com a orientação pontual e injusta - a essência do instituto é a ausência de violência.
Thoreau, mencionado acima, questionava os motivos do porquê um cidadão deveria ser obrigado a cumprir uma lei que ferisse a sua consciência - ver o escândalo de um fundo eleitoral de mais de seis bilhões quando o anterior era de dois enquanto o país amarga dificuldades de garantir saúde ou a incolumidade da crise provocada pelas chuvas em vários Estados é ato de acinte.
Como apontado pelo mesmo autor, as instituições devem ser tidas como um exército permanente, porque, na sua visão, o homem que serve ao exército está servindo ao Estado como uma máquina e, portanto, está abrindo mão de sua própria consciência de seus valores.
Nesse ensaio Thoreau também manifestou seus motivos por recusar-se a pagar impostos para o governo americano, alegando que eles seriam utilizados para financiar a Guerra Mexicano-Americana, conflito travado entre 1846 e 1848, no qual os Estados Unidos tomou uma série de territórios que pertenciam ao México. Thoreau foi preso por essa recusa (via a guerra injusta, e via-a apenas como ferramenta que levaria à expansão da escravidão, outra instituição que ele considerava da mesma forma).
Assim este direito de desobedecer a normas com o intuito de exigir determinado comportamento do Estado; o que à primeira vista configuraria uma ilicitude, mas que posteriormente se tornaria justificável visto os fins a que se propõe, quais sejam, mostrar a insatisfação do povo, ou de um coletivo político em específico, frente à atuação estatal, que pode se dar tanto por meio de medidas legislativas quanto de medidas administrativas.
Neste sentido, haveria ainda um instrumento de participação política não explicitamente previsto na Constituição Federal, mas que decorreria de seus princípios e regime adotados.
Não se perca de vista que o momento que o país atravessa revela inúmeros desequilíbrios institucionais de todos os lados. A cada dia que passa um pouco de nossa liberdade vai ficando para trás e não fazemos nada - o país já se tornou uma célula de economia de índole comunista há anos (as pessoas não conseguem mais gerir seu patrimônio de modo independente, fazer planos gerenciais sem uma intervenção estatal gigante). Veja-se que, no ápice da pandemia, enquanto havia modelos e modelos alternativos para serem seguidos, como fizeram países desenvolvidos (vide Japão e Israel), governos estaduais autorizados pelo Supremo fizeram política de terra arrasada prejudicando sobremaneira o empresariado.
Na Rússia de 1917 não se suprimiu a propriedade da noite para o dia - se o fizessem os comunistas teriam sido mortos pela população - foi dia a dia, como está sendo feito hoje - sufocando a sociedade centavo a centavo, hora a hora.
Veja-se, para ficar em um exemplo, a carga tributária ao fim do Governo Militar (não estou defendendo nem apoiando antes que se venha reclamar disso) - algo em torno de vinte por cento - hoje passa de quarenta por cento (o dobro). E ninguém fez nada, pois foram valores ínfimos, pouco a pouco - vamos didaticamente por outro exemplo - antes de 1988 tinhamos apenas a TRU - Taxa Rodoviária Única, não pagávamos pedágio, não pagávamos IPVA, não pagávamos taxa de licenciamento, veio a Constituição de 1988 com uma ordem tributária canhestra (de esquerda mesmo, mas uma esquerda tenebrosa) e os mencheviques (maioria na acepção literal do termo cunhada pela Revolução de 1917 - ou os que se arvoram social democratas nos dias de hoje) e bolcheviques (minoria da linha brucutu que tomou o poder na Rússia pelo controle da armas, das artes, da educação), passou não só a mudar a taxa - antes destinada apenas a estradas e rodovias em imposto (para o governo aplicar onde quisesse, menos em estradas), nos empurraram alguns pedágios, sempre aumentados ano a ano - em quantidade e valor, colocaram taxas de licenciamento, de vistoria, DPVAT (cada ano em um valor mais aleatório que outro, fixando fundos de reserva bilionários, geridos sabe-se lá como) e fomos aceitando - quase vivemos o drama da venezualização em 2015 - fantasma que parece vir nos assombrar em 2022 e vamos consentindo.
O Governo Federal (não estou defendendo mas constatando) zerou os tributos federais sobre combustíveis - sentimos isso no bolso? Não porque no dia em o Presidente reduzia cinco por cento, o Governo do Estado (e aí foram vários governadores) aumentava cinco e meio. E assim vamos levando.
Imagine-se isso nos governos FHC, Lula e Dilma, para ficar nos exemplos menchevique e bolchevique (quando tudo foi regulado, taxado, regulamentado, etc) Imagine quanto sobraria a mais no seu bolso cada vez se não tivéssemos permitido a guinada à esquerda no país. Se isso tivesse sido revertido para a população não estaria escrevendo esta análise, mas o fato é que isso foi perdido para a corrupção, estando os índices do IDH cada vez piores.
Não sou contra impostos sou contra a corrupção - o imposto pago em vinte e cinco por cento já seria mais do que suficiente, não tivéssemos que dividir isso com o tal establishment. Daria e sobraria para investimento. Mas uma população intencionalmente mantida sem cultura e sem educação adequada não percebe isso.
Não se pode, obviamente, de modo inconsequente sair por aí, defendendo o descumprimento das leis em geral, mas quando a ordem constitucional é descumprida de modo geral por governos nem um pouco preocupados com a proteção da propriedade e da liberdade negocial (garantias constitucionais) que, de modo sub-reptício, criam modos e modos de confiscarem lenta e gradualmente a riqueza e a prosperidade de um povo, se tem que este possa estar legitimado a se insurgir contra modos arbitrários de expropriação (como, por exemplo, usar normas de trânsito não para a segurança do indivíduo mas para espoliar o cidadão, por vezes o mais pobre, com multas injustas colocando controles de velocidade em locais incompatíveis com os limites de trânsito).
O próprio STF, em mais de uma oportunidade, defendeu a incidência da tese da desobediência civil, por exemplo, em favor do MST (veja-se por exemplo Mandado de Segurança 22.965 1), então porque não se pensar numa revolução pacífica do empresariado contra condições econômicas absurdas, por razões eleitoreiras quando há outras alternativas possíveis, contra a carga tributária escorchante e que asfixia a empresa ou contra a regulação absurda e abusiva da vida do cidadão.
Hoje, nessas pautas ditas contra-majoritárias, o empreendedor, sobretudo o pequeno, se vê ilhado, assoberbado de armadilhas para todos os lados, restando impossibilitado de garantir minimamente seu sustento e de sua prole. Seria realmente de se pensar que grupos como estes estejam se tornando cada vez mais dignos de reconhecimento de incidência do instituto em casos como o de empresas transportadoras (o empreendedor do transporte escolar, o movimentador autônomo de cargas) que tenham que se adequar a inúmeras normas de Artesp e Antt (ninguém é contra a segurança no trânsito, mas se é contra a utilização do sistema de proteção como meio de arrecadação transversa e fonte de extorsão de propinas no velho sistema de criar dificuldades para vender facilidades).
E esse raciocínio vale para qualquer setor da economia onde os pequenos empreendedores atuem. Aliás, basta não se esvair em corrupção que o dinheiro púbico daria para que o país fosse transformado. Se o MST seria digno da proteção do Pretório Excelso em desobediência civil por atos de invasão, também são dignos de proteção setores do empresariado que são vítimas deste estado de coisas inconstitucional em que vivemos (outro instituto atípico do direito constitucional sobre o qual comentarei em outra oportunidade).
Os exemplos são inúmeros - Prefeituras que autorizam loteamentos irregulares depois tiram adquirentes de boa-fé das áreas, sem qualquer indenização ou contra-prestação com o beneplácito do Ministério Público e rigor judiciário.
No Estado de São Paulo, para ficar em um caso particular, recomendo que se busque o que vem sendo feito na Comunidade de Ibiúna em que famílias que ocupam a mesma área há séculos, estão sendo retiradas de propriedades a fórceps (o Estado de São Paulo tem impedido transporte escolar na área que cercou obrigando famílias a terem que por seus filhos para andarem quilômetros e quilômetros a pé ou a desocuparem áreas que o Estado diz que conseguiu reconhecer devolutas, acabando com festas folclóricas e tradicionais, demolindo casas de interesse histórico sem consulta ao CONDEPHAAT e por aí vai).
Esse tipo de comportamento que pode ser dito como totalitário, no mínimo não democrático, põe em jogo a fragilidade do Estado de Direito e apontam que, do ponto de vista histórico, não mais se vive em um estado de liberdade, mas em algo que se aproxima a passos largos de um sistema comunista de expropriação (O Estado tudo pode), o que passaria a legitimar que o país fosse passado a limpo com movimentos de grupos minoritários atingidos (os pobres pequenos proprietários de Ibiúna, os donos de van escolar, o dono do fiat Uno que paga uma montanha de dinheiro em relação ao preço do carro, em IPVA, licenciamento, DPVAT e ainda é multado em quase cinco salários mínimos porque passou a 45 km/h numa área que permitiria o fluxo a 60, mas foi limitada em 40 para que o Município arrecade e por aí vai).
O sistema econômico previsto na Carta Política, em nossa ordem econômica, seria justamente o capitalista, diante do estabelecimento de princípios como a livre concorrência e a livre iniciativa, havendo proteção constitucional à propriedade privada (artigos 5º, caput, 1º, inciso IV e 170, inciso IV todos da Constituição Federal). Sobre o tema, o quanto ponderado por José Afonso da Silva, em relação a tanto, dizendo muito em pouco:
[...] a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário. Daí por que a iniciativa econômica pública, embora sujeita a outros tantos condicionamentos constitucionais, se torna legítima, por mais ampla que seja, quando destinada a assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social
Segundo André Ramos Tavares, a respeito da liberdade de contratar, enquanto fundamento deste direito de uma livre iniciativa:
A liberdade de contratar envolve: 1) a faculdade de ser parte em um contrato; 2) a faculdade de se escolher com quem realizar o contrato; 3) a faculdade de escolher o tipo do negócio a realizar. 4) a faculdade de fixar o conteúdo do contrato segundo as convicções e conveniências das partes; e, por fim 5) o poder de acionar o Judiciário para fazer valer as disposições contratuais (garantia estatal da efetividade do contrato por meio da coação).
No país deste tipo de incerteza e de todo tipo de esperteza, governantes devem tomar cuidado com o tipo de reação constitucional em desobediência civil que podem estar gestando pelos parâmetros já admitidos pela própria Suprema Corte. Lúcidas e ainda pertinentes as ponderações a respeito das Catilenárias - Quosque tandem abutere patientia nostra - em tradução literal - isso representa mais ou menos a ideia no sentido de que, até quando aguentará a nossa paciência. Trago isso para uma reflexão em torno do tema, nada mais.