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Greves no contexto da pandemia: uma revisitação necessária

Os novos paradigmas trazidos pela pandemia, no qual chocam-se interesses e direitos coletivos, notadamente na área da saúde pública, exigem novas reflexões sobre os movimentos grevistas.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Atualizado às 10:11

(Imagem: Arte Migalhas)

Conforme amplamente divulgado na imprensa e canais oficiais das entidades sindicais, foi decidido que, a partir do dia 19/01/2022, a categoria dos médicos de São Paulo, deflagraria um movimento grevista incensado pelos impactos que a pandemia do Covid-19 gerou, especialmente no aparelho público de saúde médica e hospitalar.

Como principais motivos que fundamentavam a medida extrema: ausência de diálogo efetivo com o Poder Público na implementação de medidas que combatessem o alto número de afastamentos médicos de profissionais, além da exaustão e esgotamento que o biênio pandêmico vem causando na linha de frente da assistência médica e hospital, mais ainda na rede pública de atenção primária.

No entanto, sem entrar no mérito da legitimidade das reivindicações, é necessário indagar se, no presente momento, a deflagração de movimento paredista, pela categoria dos médicos, é a alternativa mais adequada e razoável, dado o quadro de recrudescimento das contaminações e a maior demanda por atendimento na rede pública de saúde.

O problema não é de fácil solução e, antes de se perquirir sobre quem - ou quê - estaria certo ou errado, o objetivo, aqui, é propor uma reflexão sobre a necessidade de compreensão desse fenômeno à luz dos novos paradigmas trazido pela pandemia, esta, ao que tudo indica, ainda longe do fim.

O direito de greve é constitucionalmente assegurado e seu exercício deverá observar a regulamentação trazida na lei 7.783/89, a chamada "lei de greve".

Em seu artigo 1º, está previsto que "É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender".

A lei não traz conceitua o que seriam os interesses que serão defendidos, mas atribuiu aos trabalhadores a capacidade e prerrogativa (juntamente com os sindicatos) de sobre eles decidir, articulando, se necessário, formas de defesa, efetivação, convencimento etc., no bojo da negociação coletiva, também reconhecida como direito fundamental, estimulando sempre o diálogo.

Assim, essa aferição é tomada de forma casuística, analisando-se, por exemplo, as pautas de reuniões, assembleias, lista de reivindicações, atendimento total ou parcial das pretensões, maior ou menos disposição das partes em negociar etc.

Basicamente, com destaque no setor privado (aplicação a priori da lei 7.783/89), os interesses ligam-se, geralmente, à reivindicação por melhorias nas condições de trabalho, sejam ligadas a aspectos tangíveis (reajustes, benefícios, plano de saúde, cumprimento de obrigações já firmadas anteriormente, em sede de norma coletiva, seja acordo ou convenção coletiva, a depender de sua abrangência) ou intangíveis (combate à discriminação e ao assédio moral, regras de conduta, políticas de saúde, segurança).

Assim, a análise da deflagração e posterior desenvolvimento dos movimentos paredistas, a rigor, não apresenta maiores problemas, eis que circunscrita à movimentação de atores em espaços bem definidos.

E não se pode esquecer que o sistema único de saúde é gerido, em grande parte, por meio da celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Públicos e organizações sociais, ou seja, entidades oriundas do terceiro setor que contratam sua força de trabalho, no regime da CLT e, por isso, sua atividade - que nem mesmo é econômica, mas instrumental - ficar inviabilizada.

No entanto, em tempos recentes, o que se tem verificado, notadamente após a pandemia do Covid-19, é que, muitas vezes, os interesses trazidos pelas categorias profissionais não estão necessariamente vinculados a ações ou omissões dos empregadores, mas a atos de terceiros.

E o caso da greve dos médicos bem ilustra essa situação, pois, conforme é notório, a pauta não está ligada a atos dos empregadores (as organizações sociais, no caso), mas a atos de terceiro (Administração Pública), ultrapassando-se, assim, os limites da relação de emprego propriamente dita.

Vale dizer: os interesses eleitos na pauta de reivindicações estão vinculados a questões de políticas públicas no enfrentamento da pandemia, desbordando, assim, do âmbito da relação privada travada entre categoria e empregadores.

Essa parece ser uma tendência que implica, necessariamente, numa compreensão mais expandida sobre os interesses defendidos, espraiando-se fora do âmbito da relação de emprego, muitas vezes motivados pela ação ou omissão de terceiros, especialmente do Poder Público - e que impactam nas relações privadas, gerando, assim, a necessidade urgente de análise dos efeitos negativos ou positivos nesse contexto.

Um exemplo é inevitável: ainda que legítima (do ponto de vista dos interesses a defender), é inevitável que, ocorrendo a paralisação dos médicos, o atendimento público será totalmente inviabilizado, gerando graves prejuízos à população, especialmente a mais carente, num momento de demanda crescente pelos serviços públicos (essencial, ressalte-se) de assistência médica e hospitalar.

Vale notar que, recentemente, em discussão que envolvia os elementos aqui apresentados, com destaque para os graves efeitos que a paralisação resultaria na área da saúde, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo concedeu liminar à organização social que empregava médicos, assegurando a manutenção de, pelo menos, 90% da força de trabalho, sob pena de multa diária (autos do Dissídio Coletivo de Greve 1000090-43.2022.5.02.0000).

O direito de greve é um pressuposto democrático e reflexo de alguns dos maiores primados constitucionais, isso é inegável. Ainda, como instrumento protegido para concretização na luta dos trabalhadores, deve ser preservado, maximizando a melhoria das condições sociais, econômicas e o próprio direito à negociação coletiva.

No atual cenário, porém, é necessário que esse fenômeno seja revisitado, pois, especialmente em situações extremas como a pandemia de Covid-19, a contextualização dos movimentos exige novas reflexões de trabalhadores, empregadores, Poder Público etc.

O constante diálogo e, sobretudo, a implementação concreta da boa-fé nas negociações coletivas, tudo com vistas à melhor preservação do interesse público e da continuidade de execução das políticas públicas de saúde são, pois, primados que devem centralizar a adoção de medidas extremas. É necessário, pois, a busca por alternativas que, igualmente, preservem o acesso da população a um sistema de saúde pública adequado, eficiente e universal.

João Armando Moretto Amarante

João Armando Moretto Amarante

Advogado-sócio do escritório Mendonça, Merigui, Amarante e Trapanotto Advogados. É especialista em Direto e Processo do Trabalho (PUC/RS e IICS/CEU), Direitos Humanos e Filosofia (PUC/PR) e MBA em Gestão de Pessoas (USP). Autor da obra "Lei de greve comentada" (Ed. Almedina).

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