O julgamento antecipado de mérito e as variáveis envolvendo o eventual cerceamento de defesa
O texto pretende enfrentar as hipóteses em que o julgamento antecipado do mérito pode gerar discussão quanto ao cerceamento do direito de defesa.
quarta-feira, 19 de janeiro de 2022
Atualizado às 11:58
O objeto deste ensaio é analisar as situações em que o julgamento antecipado do mérito (JAM) gera a discussão prática relacionada ao cerceamento de defesa.
Trata-se de momento importante no procedimento comum, em que o órgão julgador indaga se o há condição para a imediata apreciação meritória, sem necessidade da produção de provas na fase instrutória.
O que importa na prática é a verificação se há a possibilidade de encerramento do feito no estado em que se encontra, com a extinção (total ou parcial - art. 354, do CPC) ou julgamento antecipado (total ou parcial - arts. 355 e 356, do CPC). Em caso negativo, há a necessidade de preparação para a fase instrutória, com o saneamento e organização do processo (art. 357, do CPC).
O que permite o julgamento antecipado do mérito (espécie do gênero julgamento conforme o estado do processo) não é o caso de ser a questão de direito e/ou de fato, nem a dispensa de produção de prova em audiência, e sim se a matéria probatória, acaso existente, já está devidamente produzida nos autos.
As situações jurídicas que permitem o julgamento meritório de forma antecipada podem alcançar, portanto, matéria de direito e/ou de fato já comprovado por prova documental pelo autor (na petição inicial - art. 320, do CPC), ou pelo réu (na contestação), além das situações que permitem a produção de prova antecipada (arts. 381-383, do CPC).
Nestes casos, o pedido (o objeto litigioso) pode estar pronto para julgamento, tendo em vista que inexiste matéria fática ou esta já está devidamente comprovada nos autos, inexistindo necessidade de adentrar na fase instrutória.
De outro prisma, no inciso II, a redação do art. 355, do CPC deixa claro que o que importa para o julgamento antecipado do mérito não é a revelia em si, mas sim a verificação se os efeitos em relação à matéria fática estão presentes (art. 344, do CPC).
Esta modalidade de julgamento deve ser precedida de análise cautelosa do magistrado, mesmo em caso de requerimento de produção de prova. Aqui está a pergunta central a ser analisada: o JAM, dispensando a fase probatória, pode ocasionar cerceamento de defesa e, eventualmente, a anulação da decisão pelo Tribunal?
Algumas variáveis devem ser enfrentadas: a) inexistência de questão a ser objeto de prova (exclusivamente de direito ou de fato já comprovado com prova documental ou produzida antecipadamente); b) existência de efeitos da revelia sem a petição de contraprodução probatória; c) prévia intimação das partes para indicação de provas e resposta negativa do autor; d) inexistência de prévia intimação do autor e julgamento improcedente por falta de provas dos fatos constitutivos de seu direito; e) inexistência de intimação do réu e procedência sem a oportunidade de indicação de provas.
Na primeira hipótese, o magistrado deve fundamentar, ao analisar o mérito dispensando a fase probatória, que a situação se enquadra expressamente no art. 355, I, do CPC. Quando o legislador afirma "não houver necessidade de produção de outras provas", está consagrando, em verdade, tanto as situações em que a questão é apenas de direito, quanto as de fato já comprovado, como a prova documental que deve, em regra, ser juntada à inicial (art. 320, do CPC) e à contestação.
Em caso de dúvida, deve o magistrado abrir a oportunidade de indicação das provas para, em seguida, decidir se realmente o caso desafia o julgamento meritório antecipado.
Vale citar passagem da Ementa do recente julgado do STJ (AgInt no AREsp 556695 / SC - 4ª Turma - Rel. Min. Raul Araújo - J. em 13/12/2021 - DJe 16/12/2021).
"Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide quando o Tribunal de origem entender adequadamente instruído o feito, declarando a prescindibilidade de produção probatória, por se tratar de matéria eminentemente de direito ou de fato já provado documentalmente"
No mesmo sentido, segue trecho da Ementa do Acórdão em AgInt no REsp 1.653.868/SE, Rel. Min. Moura Ribeiro - 3ª Turma J. em 18/03/2019, DJe de 20/03/2019).
"2. Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide, devidamente fundamentado, sem a produção das provas tidas por desnecessárias pelo juízo, uma vez que cabe ao magistrado dirigir a instrução e deferir a produção probatória que considerar necessária à formação do seu convencimento"
Quanto ao segundo item, vale apresentar uma premissa: nem sempre a revelia autoriza o julgamento antecipado do mérito. Em verdade, aqui o desafio também é analisar questão fática e a desnecessidade de produção probatória.
Por tal razão, aliás, que o art. 354, do CPC, menciona, além da revelia, a ocorrência dos efeitos processuais ligados à presunção de veracidade dos fatos, além da inexistência de requerimento de produção probatória, previsto no art. 349, do CPC.
Assim, em razão da incontrovérsia fática decorrente do efeito material, é desnecessária a fase probatória, sendo possível a resolução do mérito de forma antecipada (art. 355, II e 374, III, do CPC).
Contudo, mesmo neste caso, a antecipação da decisão meritória pode não ocorrer. Mesmo sendo revel, o réu pode se contrapor aos fatos alegados pelo autor e produzir prova, desde que compareça a tempo de evitar o julgamento antecipado (art. 349, do CPC).
A intenção maior da legislação processual de 2015, mesmo nos casos em que se admite julgamento por presunção, é tentar buscar a resolução do mérito. O réu revel pode tentar evitar maiores prejuízos processuais, com o comparecimento e contraprodução probatória, desde que se apresente rapidamente e antes do pronunciamento meritório por presunção.
Aliás, este já era o caminho traçado pela jurisprudência consagrada no tempo de vigência do CPC/73 (STJ- REsp 677.720- 3ª T - Rel. Min. Nancy Andrighi , J. 10.11.2005) e previsto expressamente na Súmula 231/STF, pela qual "o revel, em processo cível, pode produzir provas, desde que compareça em tempo oportuno".
A presunção de veracidade decorrente do efeito material da revelia, sempre que possível, deve ser afastada, permitindo o julgamento com as provas existentes nos autos, o que inclusive pode ser contrário à tese afirmada pelo demandante. Como bem entendeu a Corte da Cidadania, em julgados proferidos no ano de 2019:
"AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE ARBITRAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ALEGAÇÃO DE NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. REVELIA. NÃO IMPORTA PRESUNÇÃO ABSOLUTA DE VERACIDADE DOS FATOS. REVISÃO DO JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N.º 7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO VERIFICADO.1. Inexistência de maltrato ao art. 1.022, incisos I e II, do Código de Processo Civil, quando o acórdão recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões essenciais ao julgamento da lide. 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido de que a caracterização da revelia não importa em presunção absoluta de veracidade dos fatos, a qual pode ser afastada pelo julgador à luz das provas existentes (...)".AgInt no REsp 1816726 / RS - Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino - 3ª T - J. em 30/09/2019 - DJe 03/10/2019)".
- Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
José Henrique Mouta
Mestre e Doutor (UFPA), com estágio em pós-doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor do IDP (DF) e Cesupa (PA). Procurador do Estado do Pará e advogado.