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Direitos temporários do entregador de aplicativo. Comentários à lei 14.297/22

O amplo e democrático debate sobre o trabalho por via de aplicativos é o caminho para que seja construída uma via de dignidade para os entregadores de app. A precarização, exposição e penosidade da atividade de entregas são aspectos latentes desta "nova" forma de trabalho.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Atualizado às 12:56

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Apresentação

Os entregadores de empresas de aplicativos (Ifood, Rappi, Uber eats, Loggi, 99food, Lalamove, Aiquefome, Cornershop, Clickentregas, dentre inúmeros outros), após várias reivindicações, conseguiram direitos e alguma proteção na relação com as empresas de aplicativos através da lei 14.297/22.

As empresas de aplicativos (empresas de app) possuem um contrato padrão, no qual os interessados em fazer entregas e os estabelecimentos comerciais aderem aos termos. É um contrato no qual nada pode ser discutido na prática, o típico contrato de adesão. O contrato entre os entregadores e a empresa de app é de parceria.

Há toda uma discussão na doutrina e na Justiça do Trabalho se os entregadores são ou não empregados das empresas de app. Há bastante controvérsia a este respeito e esta questão não foi tratada por esta lei, nada foi previsto em norma sobre a existência ou não do vínculo empregatício.

A lei 14.297/22 (publicada em 05/01/22) não reconhece o entregador de aplicativo como empregado, nem há direito trabalhista concedido. O que há na lei são alguns direitos e penalidades pelo descumprimento destes direitos. Certamente, a lei representa um avanço para os entregadores, pois até então estavam completamente à mercê do que fosse imposto pelas empresas de APP.

É fundamental chamar atenção que os direitos previstos são provisórios. A própria lei, no artigo 1º, informa que as medidas de proteção asseguradas valem durante a vigência da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus e que cessam com a declaração de término deste período. Desta forma, os direitos previstos são exigíveis e obrigatórios durante este período. Para que sejam elastecidos, deve haver nova previsão normativa.

O único ponto da lei vetado, pela Presidência da República, foi o direito do entregador ao acesso ao PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador).

Sem mais demora, passemos aos direitos previstos na nova legislação.

Seguro de acidentes obrigatório para entregadores

O entregador passou a ter direito de ter um seguro de acidentes, custeado pela empresa de APP, sem franquia (ou seja, que pode ser utilizado sem qualquer pagamento pelo entregador) para cobrir o acidente pessoal, morte ou invalidez provisório ou permanente.

A própria dinâmica das entregas indica alto risco de acidentes. O uso, principalmente, da motocicleta, expõe o entregador e a ausência de seguro o colocava em risco elevado sem qualquer contrapartida.

Há vários contratos de serviços que possuem seguros obrigatórios, a exemplo do contrato de estágio (lei 11.788/08) e seguro responsabilidade civil do transportador rodoviário de carga e seguro transporte nacional para embarcadores. Desta forma, o entregador de APP é apenas mais uma forma de serviços com seguro obrigatório e não o único.

Certamente, esta medida terá impacto nas empresas de APP, o que pode resvalar no custo da operação, elevação de taxas ou, até mesmo, encerramento de atividades em algumas empresas. Porém, não é correto exercer uma atividade de alto risco, lucrativa, sem que o mínimo de segurança seja oferecido.

O aplicativo de entrega Uber eats anunciou o encerramento de atividades em Janeiro de 2022. O encerramento nada tem haver com a lei nova, conforme notícias "o movimento faz parte de um reposicionamento global da empresa, que está revisando seu portfólio e fechando operações que não são rentáveis em vários mercados. O serviço segue ativo nos outros 45 países em que a marca opera atualmente"1.

Proteção em relação ao COVID

A empresa de app deve informar o entregador dos riscos, cuidados e prevenção ao contágio e disseminação do coronavírus, como também deve fornecer máscaras e álcool em gel ou material higienizante para uso durante os serviços. O custo é da empresa de app, mas o entregador poderá custear e tem direito de ser reembolsado.

Assistência financeira ao infectado pelo COVID

A infecção pela COVID, nos trabalhadores de aplicativo, inviabilizava a sobrevivência e até mesmo tratamento da enfermidade. A ausência de recursos financeiros empurrava para o Estado um grave problema social.

A nova lei prevê que o entregador infectado com atestado, laudo ou exame médico comprovando, tenha direito a receber assistência financeira da empresa de APP pelo período de 15 (quinze) dias. Este período pode ser ampliado em mais 2 (dois) períodos de 15 (quinze) dias cada, caso ocorra necessidade médica.

Durante o citado afastamento, deverá a empresa de aplicativo pagar ao entregador o valor da média dos últimos 3 meses de serviços prestados. Sem dúvida, esta é a medida de custo variável imprevisível. A circulação das entregas eleva o risco de contágio, como também o contato para entrega dos produtos ou mercadorias.

A lei não explica o procedimento para o exercício deste direito. Desnecessário burocratizar, basta o entregador fornecer o atestado, laudo médico ou exame positivado de COVID para receber o auxílio pelo período de afastamento.

Pela leitura do texto legal, é devido 1 (uma) média de 3 (três) mensalidades a cada 15 (quinze) dias de afastamento. Caso o afastamento concedido seja inferior a 15 dias, não há previsão de proporcionalidade, pelo que devido integral. O mesmo raciocínio é se o afastamento for superior aos três possíveis de 15 (quinze) dias cada, quando cessa o direito a qualquer recebimento. Logo, se o entregador ficar afastado 60 dias, receberá, no máximo, 3 (três) pagamentos da média mensal dos últimos 3 (três) meses de serviços.

Acesso a sanitário e água potável

Como cidadã, sinto vergonha, em comentar que é preciso uma lei para garantir o tratamento humano mínimo. Garantir, por meio de lei, o acesso a sanitário e água potável é quase que um retorno à Idade Média. Porém, há vários registros2 de que os estabelecimentos onde os entregadores buscam produtos negam acesso a banheiros, negam água e até mesmo negam o direito de permanecer dentro dos mesmos.

Até mesmo em Nova Iorque3 há registros de que os entregadores têm negado o direito de acesso a banheiros. O fenômeno de indignidade e desrespeito aos entregadores, tão necessários na pandemia e no cotidiano, denotam o pouco apreço ao valor social do trabalho nas democracias contemporâneas.

Os estabelecimentos, com a lei, têm obrigação legal de dar acesso a banheiro e água potável aos entregadores.

Regras contratuais sobre bloqueio, suspensão e exclusão do aplicativo

Os contratos dos entregadores com aplicativos, via de regra, não estabelecem claramente as regras para bloquear, suspender e até excluir o entregador. A arbitrariedade, no suposto contrato de parceria entre entregador e app, é unilateral, pois o entregador não tem instrumento nenhum de penalidade em face do aplicativo, que se apresentar falhas na parceria fica imune. O dever de lealdade e boa-fé deve existir em todo contrato, como também de transparência. Logo, nada mais correto que serem estabelecidas regras claras.

Para a penalidade de exclusão, rescisão do contrato entre entregador e app, além de ter regras claras, deve também vir acompanhada por um comunicado prévio de 3 (três) dias úteis com motivação que o fundamenta. Na prática isto protege o entregador e lhe confere meios de questionar, até judicialmente, a penalidade imposta. Este comunicado fica dispensado apenas quando foi praticada infração legal que coloque em risco segurança e integridade. Porém, o direito a motivação e justificativa permanecem, em qualquer hipótese.

Penalidade pelo descumprimento da lei

A própria lei estabeleceu apenas 2 (duas) penalidades: advertência e multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), por infração, em caso de reincidência. Desta forma, resta claro que toda infração receberá advertência. Apenas se a empresa de app ou o estabelecimento repetirem o cometimento da infração é que será aplicada a multa de R$ 5 mil.

Não está claro se a reincidência refere-se a qualquer norma prevista na lei ou considerada cada uma das possíveis infrações. Todavia, na dúvida, a interpretação deve favorecer quem está sendo penalidade/punido.

Considerações finais

Sem dúvida, a legislação representa um avanço protetivo para os entregadores de app, como também um resgate em sua dignidade e patamar mínimo civilizatório4. Todavia, é uma conquista de ocasião e temporária, pois válida apenas no período de emergência pandêmico.

A realidade do entregador de app oscila entre o cinismo de chama-lo de empreendedor e autônomo e o mau caratismo de atribuir a este trabalhador a vontade de não ser empregado. Enfrentar trânsito caótico, sol e chuva, aguardar em calçadas em frente aos restaurantes mais movimentados, sem água e sem banheiro, padecer de acidentes e adoecer sem qualquer proteção ou garantia, ficar a disposição horas a fio sem perspectiva ou certeza do serviço. E, por derradeiro, receber valores ínfimos pelas entregas, escravizados pela tomada do mercado pelas empresas mundiais de apps.

Algo precisa ser feito, e precisa ser feito com urgência. Como bem disse Henri Dominique Lacordaire "Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta".

O amplo e democrático debate sobre o trabalho por via de aplicativos é o caminho para que seja construída uma via de dignidade para os entregadores de app. A precarização, exposição e penosidade da atividade de entregas são aspectos latentes desta "nova" forma de trabalho. A ausência de direitos e de proteção jurídica é um problema social que demanda uma solução que favoreça a coletividade, sem que com isto desguarneça o entregador do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana.

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Salário mínimo e direito ao banheiro: a nova lei de NY para o trabalho de entregadores de app. Época Negócios, 24/09/2021. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2021/09/salario-minimo-e-direito-ao-banheiro-nova-lei-de-ny-para-o-trabalho-de-entregadores-de-app.html. Acesso em 07 Jan. 2022.

Sem banheiro e álcool gel: entregadores de app ignoram corona por sustento. UOL, 24/03/2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/24/sem-banheiro-e-alcool-gel-entregadores-de-app-ignoram-corona-por-sustento.htm. Acesso em 07 de Jan. 2022.

SUTTO, Giovana. Uber Eats encerra as operações no Brasil a partir de março. Infomoney. 06/01/2022. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/negocios/uber-eats-encerra-as-operacoes-em-restaurantes-no-brasil-a-partir-de-marco/. Acesso em 07 Jan. 2022.

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1 SUTTO, Giovana. Uber Eats encerra as operações no Brasil a partir de março. Infomoney. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/negocios/uber-eats-encerra-as-operacoes-em-restaurantes-no-brasil-a-partir-de-marco/. Acesso em 07 Jan. 2022.

2 Sem banheiro e álcool gel: entregadores de app ignoram corona por sustento. UOL, 24/03/2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/24/sem-banheiro-e-alcool-gel-entregadores-de-app-ignoram-corona-por-sustento.htm. Acesso em 07 de Jan. 2022.

3 Salário mínimo e direito ao banheiro: a nova lei de NY para o trabalho de entregadores de app. Época Negócios, 24/09/2021. https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2021/09/salario-minimo-e-direito-ao-banheiro-nova-lei-de-ny-para-o-trabalho-de-entregadores-de-app.html. Acesso em 07 Jan. 2022.

4 Expressão do Ministro Maurício Godinho Delgado em seu Curso de Direito do Trabalho, célebre e indispensável obra.

Dayse Coelho de Almeida

Dayse Coelho de Almeida

Advogada. Mestre em Direito do Trabalho PUC/MG. Conselheira da ASSAT/SE. Membro da Comissão Nacional de Direito do Trabalho da ABA e do MATI. [email protected]

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