Sentimentos x Direitos
Todos temos sentimentos e opiniões em relação às condutas dos demais cidadãos, o que não quer dizer que tenhamos o direito de condicioná-las ao que sentimos e pensamos. Para evitar essa confusão, é necessário entender o surgimento dos direitos e o que os justifica.
terça-feira, 4 de janeiro de 2022
Atualizado em 5 de janeiro de 2022 14:24
I - Introdução
A segunda metade do século XX foi marcada pela superação de preconceitos e ampliação do exercício de direitos sociais e políticos. As restrições remanescentes deixaram de ser fundamentadas em argumentos morais e passaram a depender de justificação objetiva.
Em sentido oposto, o início do século XXI é palco de uma gradual redução de direitos de manifestação e conduta por parte da maioria, constrangida a aceitar restrições baseadas nos sentimentos e interesses de grupos, que vem sendo tratados como direitos por partes da mídia e dos poderes instituídos.
Pessoas que se pretendem herdeiras de sofrimentos ocorridos há décadas ou até séculos, exigem que os demais arquem com o custo de privilégios compensatórios em prol de alguns segmentos caracterizados pela etnia, orientação sexual ou gênero. Também se julgam no direito de estigmatizar ou até mesmo impedir opiniões discordantes de tais privilégios.
Esse movimento de censura afronta um direito fundamental, expresso no art. 19, da Declaração dos Direitos do Homem de 1948, que garante a todos a liberdade de opinião e expressão e o direito de exercê-las sem interferência.
Não satisfeitos, os usurpadores do sofrimento pretérito ainda pretendem reescrever partes da história a partir da reavaliação dos seus principais personagens, embora não pelos fatos que geraram sua notoriedade. O foco da reavaliação é a ausência do enquadramento desses personagens nos valores morais atuais.
A consequência desse revisionismo fanático é a perda dos laços históricos que unem uma nação, o que parece ser o objetivo final dos revisionistas, uma vez que ninguém é capaz de se enquadrar nos valores morais de um futuro desconhecido. Também importa na negação da própria humanidade, que é essencialmente imperfeita e evolutiva.
Os revisionistas desconsideram que alcançamos os patamares econômicos, libertários e sociais em que vivemos graças à atuação dos seres imperfeitos do passado. Faremos o mesmo pelas novas gerações, desde que aceitemos nossas imperfeições e as divergências conceituais que delas decorrem, pois a evolução é fruto do debate, do empirismo, da convivência com o que nos desagrada, nunca do pensamento único, seja moral, científico, religioso, político ou jurídico.
Esse discurso vingativo vem prevalecendo nos meios acadêmicos e jornalísticos, a ponto de já ter gerado um inadequado sentimento de culpa em parte da população, que não tem qualquer responsabilidade pelo passado.
O efeito da proliferação dos mencionados privilégios compensatórios é o acirramento do ódio entre os setores da sociedade, pois são precedidos de injustas acusações e geram um espiral sem fim de aumento dos encargos sobre os que arcam com suas consequências.
Além disso, tem o efeito de lentamente reduzir a qualidade da formação científica e dos serviços públicos, principais focos de alocação dos privilégios, pois o mérito deixa de ser a principal referência. Também causam progressivos estorvos para a iniciativa privada, que se vê obrigada a compensar diferenças sociais que não causou, além de estimularem novas pretensões em prol de qualquer grupo que consiga construir algum argumento justificador.
II - A formação dos direitos
Todos temos sentimentos e opiniões em relação às condutas dos demais cidadãos, o que não quer dizer que tenhamos o direito de condicioná-las ao que sentimos e pensamos. Para evitar essa confusão, é necessário entender o surgimento dos direitos e o que os justifica.
Os grupamentos humanos primitivos começam a se organizar quando conseguem impor a cada indivíduo os deveres de respeitar a vida, a integridade física e os bens dos demais, além de aceitar a própria estrutura social que os estabelece. Antes da imposição de deveres não existem direitos, mas, apenas, desejos de preservação e aquisição.
Foi a restrição às liberdades abusivas que fez surgir o que consideramos direito, que é uma pretensão individual ou coletiva protegida pela sociedade organizada por ser considerada justa e socialmente adequada. Aos direitos se contrapõem os deveres, que são as correspondentes condutas de respeito e colaboração impostas pela sociedade aos indivíduos.
A evolução das estruturas sociais e a criação do que conhecemos como civilização trouxe a especialização de funções, os meios de pagamento e o progresso humano, mas, também, a excessiva concentração de poder no ápice dessas estruturas.
Em consequência, os direitos dos indivíduos passaram a depender dos interesses, desejos e sentimentos dos detentores do poder, sem necessidade de adequada fundamentação. A superação desse poder arbitrário, com retorno do poder decisório para a sociedade, tem como marcos as revoluções liberais inglesa, americana e francesa, que ocorreram nos finais dos séculos XVII e XVIII.
Esses movimentos formataram a ideia contemporânea de que o Estado é apenas a personificação da sociedade organizada e só pode agir dentro dos parâmetros estabelecidos na lei, aprovada pelos representantes dos indivíduos que a compõem.
III - A delimitação dos direitos
A garantia da legalidade para definição dos direitos e deveres foi um passo importante por ter garantido a objetividade, em substituição à subjetividade decorrente dos sentimentos de quem detinha o poder. Contudo, a legalidade, por ser formal, não é suficiente para justificar o conteúdo das leis.
A questão mais difícil é identificar quais são as pretensões individuais ou de grupos que podem ser definidas como direitos e quais devem se manter no campo da opinião. Somente a partir da identificação e prévia aceitação coletiva de tais pretensões é que se torna justo estabelecer as correspondentes condutas a serem impostas aos demais membros da sociedade, para que tais direitos sejam preservados ou obtidos.
Impor condutas antes de justificar a existência de direitos a serem por elas preservados importa em restrição indevida do direito à liberdade em prol de sentimentos e desejos não identificados pela maioria como direitos. Esse conflito revela a grande dificuldade na construção democrática das normas jurídicas, que é demonstrar até onde pode ir a lei.
O primeiro passo para justificar as normas é sua adequação à divisão básica estrutural de qualquer sociedade. O progresso civilizatório, que originou o Estado e as leis, decorreu essencialmente da delimitação dos espaços privados mínimos, representados pela vida, integridades física e moral, além da estrutura patrimonial essencial ao exercício de tais direitos.
Uma vez definido o espaço individual a ser preservado, surge a necessidade de delimitação mais complexa, decorrente do caráter gregário do ser humano, que é a demarcação dos espaços públicos, por onde os indivíduos circulam e interagem.
Os espaços públicos, sejam físicos ou virtuais, pertencem a toda sociedade e, por isso, devem ser de livre acesso, respeitadas as regras de urbanidade e preservação dos bens coletivos. Em razão da titularidade coletiva, a definição das regras de uso deve respeitar a vontade da maioria, representada pelos Poderes eleitos, ao contrário dos espaços privados, reservados aos indivíduos que neles interagem e protegidos da opinião da maioria.
Dois aspectos são essenciais tanto para a demarcação quanto para a gestão dos espaços públicos: utilidade social por eles atendida, que condiciona as condutas individuais com eles relacionadas; e a tolerância mútua que deve pautar essas mesmas condutas. Ou seja, respeito à lógica das estruturas e aos demais usuários.
O respeito à utilidade social acarreta a vedação de qualquer apropriação privada de espaços públicos, salvo se justificada pelo benefício coletivo, o que ocorre com a gestão comercial de vias públicas, parques e áreas de lazer, por exemplo. Também justifica a alteração do uso em prol das necessidades coletivas.
Assim, áreas de livre circulação de veículos podem ser transformadas em vias de pedestres por decisão do Poder Público, ainda que nenhum dos proprietários de imóveis nelas situados concorde. A proximidade e a intensidade de uso de um espaço público não criam direito sobre ele, que continua a ser regido pelo interesse coletivo prevalente.
A tolerância representa a própria essência da humanidade, a compreensão e aceitação das diferenças, sejam elas decorrentes de características ou de escolhas dos indivíduos.
Contudo, o dever de tolerar é naturalmente passivo e não acarreta a obrigação de suportar o custo das escolhas alheias, que deve recair sobre quem as faz. A transferência de tal custo a outros indivíduos ou ao conjunto da sociedade importa em imposição da escolha individual aos demais, ainda que de forma fracionária, o que colide com o próprio dever de tolerância que justifica a liberdade de escolha.
Assim como a tolerância nos impede de exigir que os demais se comportem de acordo com nossos valores, também importa em aceitar que as divergências são permanentes e não precisam ser suprimidas em prol da verdade que o Estado ou alguns grupos pretendam seja a oficial.
A característica essencial da tolerância como referência de convívio é a constante ampliação das áreas de concordância entre as condutas humanas. As áreas de discordância, externas a esse núcleo de entendimento comum, são essenciais para a troca de ideias e produção de inovações. Sem esse intercâmbio permanente, que só existe quando não há verdade oficial imposta, as áreas de interseção encolhem e se defasam, o que gera atraso em relação às sociedades mais flexíveis.
Outro aspecto da tolerância é aceitar que as estruturas são custeadas por todos e devem ser regidas por relações custo-benefício, exatamente para que possam ser o mais úteis e voltadas ao maior universo de usuários possível. Em consequência, ninguém tem o direito de impor à sociedade um aumento de custo apenas para se adequar às suas decisões, sejam religiosas, culturais ou de qualquer natureza.
Em síntese, não existe direito a restringir as manifestações alheias com base numa pretensa prevalência dos sentimentos de indivíduos ou de grupos sobre os demais. A consequência dessas crescentes restrições é a privatização do espaço público de interação, a pretexto de ampliar direitos, o que representa um retorno às restrições arbitrárias não democráticas.
Entretanto, tornou-se comum o discurso usurpador da liberdade, em grande parte fruto do indiscutível fracasso das ideologias coletivistas testadas no século XX. Resta aos seus defensores destruir o que deu certo e seu símbolos, sob o argumento da imperfeição.
Gerações que foram educadas acreditando na pretensa maldade de quem produz e emprega não entendem a lógica de estímulos e ajustes que fundam a economia produtiva e o progresso. Acreditam nas virtudes das constantes intervenções centralizadas, sem entender porque essa perda de liberdade faz com que a vida produtiva definhe e a pobreza se amplie.
A ausência desse raciocínio sistemático, que pauta a gestão democrática do espaço público, alimenta o desejo arbitrário de impor condutas com base nas mais diversas alegações. Já vivenciamos as desastrosas consequências dessas pretensões de uniformização da pureza e da virtude, tanto por parte do socialismo quanto do fascismo. O ressurgimento de ideias semelhantes em novas roupagens tende a gerar as mesmas consequências.