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Os limites da quebra do sigilo médico segundo a legislação aplicável

O artigo traz de forma sucinta a legislação aplicada para situações que versam sobre o sigilo médico, além da responsabilidade decorrente da quebra do sigilo médico.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Atualizado às 08:03

(Imagem: Arte Migalhas)

Sigilo médico está relacionado ao dever de confidencialidade de informações médicas relacionadas ao paciente. O sigilo profissional é um direito do paciente, sendo um dever do médico mantê-lo, podendo, portanto, só ser quebrado mediante o consentimento por escrito do paciente ou mediante situações permitidas por lei.

O presente artigo traz de forma suscita a legislação aplicada para situações que versam sobre o sigilo médico, além da responsabilidade decorrente da quebra do sigilo médico.

"Prometo que ao exercer a arte de curar, mostrar[1]me-ei sempre fiel aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência, penetrando no interior dos lares, meus olhos serão cegos, minha língua calará os segredos que me forem revelados, o que terei como preceito de honra; nunca me servirei de minha profissão para comprometer os costumes ou favorecer o crime. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, goze para sempre a minha vida e a minha arte de boa reputação entre os homens; se o infringir ou dele me afastar suceda-me o contrário". (Hipócrates - 460 a.C).

Não há outra forma de iniciar o presente artigo que não com a passagem de Hipócrates, acima, reconhecido por muitos como o "pai da medicina". A passagem, do ano 460 a.C. demonstra com clareza o que pode ser considerado o início da compreensão e literatura sobre o sigilo médico e responsabilidade da profissão.

Atualmente, o sigilo médico se encontra em algumas frentes muito conhecidas para os operadores do Direito e outras para os operadores da Medicina, quais sejam, a Lei Geral de Proteção de Dados, o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código Penal, e a Constituição Federal, além dos mais conhecidos pareceres do Conselho Federal de Medicina e o Código de Ética Médica.

Iniciando-se das legislações de maior familiaridade para os médicos, expõe o Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/09) que "o médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei", sendo vedado ao médico "revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente."

A Lei Geral de Proteção de Dados, que recentemente passou a estar em plena vigência, divide os dados em dados pessoais e dados sensíveis. Para fins da relação médico paciente, pode-se considerar que os dados inerentes à relação são uma das espécies dos previstos "dados sensíveis" (dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural).

A norma, aprovada em 2018, teve sua vigência iniciada no ano passado mas só agora, a partir de agosto, as sanções para quem violar os direitos dos titulares de dados e as obrigações para quem coleta e trata registros entraram em vigor.

Sendo assim, a LGPD possui um rol de hipóteses que permite o legítimo tratamento de dados sensíveis. Dentre tais hipóteses, destaca-se no artigo 11, em que o tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer, dentre outras, para "a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária."

Infere-se que nenhuma das hipóteses elencadas permite ao profissional de saúde compartilhar dados referente ao estado clínico sem o consentimento do paciente. Frisa-se que a LGPD exclui de seu âmbito de aplicação o tratamento de dados pessoais realizados para fins de segurança pública e atividades de investigação e repressão de infrações penais. Nesta ordem de ideias, prevê o artigo 4: "Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais: III - realizado para fins exclusivos de: a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais", melhor abordadas adiante quando da análise sob a esfera penal.

Destaca-se, ainda, que a LGPD lista como possíveis sanções: advertência, multa (diária ou com limite de até 2% do faturamento da empresa), bloqueio dos dados pessoais objeto da violação, suspensão parcial do funcionamento do banco de dados e proibição parcial ou total do exercício da atividade relacionada ao tratamento de dados, questões geralmente relevantes, especialmente para hospitais e clínicas médicas.

Na seara criminal, pode-se citar o crime de violação do segredo profissional, ou seja, "Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem" e a violação de sigilo funcional, cujo crime ocorre ao "revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação."

De forma mais abrangente, temos que o Código Civil prevê a vida privada da pessoa natural sendo inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, devendo adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma, bem como o Código Processual prevê que a "parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se: IV - sua exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo;"

Não menos importante, também temos que a Constituição Federal prevê em seu artigo 5°, sobre os direitos e garantias individuais. Neste sentido, o inciso X dispõe que: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano moral ou material, decorrente de sua violação". Ainda sobre o tema, preceitua o inciso XIV da Carta Magna que "É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional".

Por derradeiro, ainda sobre a legislação que rege a matéria, a Lei n.º 13.979/2020 que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus exige o dever de notificação às autoridades sanitárias, as quais, por sua vez, deverão preservar o sigilo dos infectados.

Neste sentido estabelece o artigo 5º que: "toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de: I - possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus; II - circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus". E mais, o Artigo 6º prevê ser "obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.§ 1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende[1]se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.§ 2º O Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais".

Ou seja, em qualquer das frentes legais previstas, o sigilo da relação médico-paciente está fortemente protegido, sendo raras as exceções em que a regra pode ser suprimida ou afastada.

Mas afinal, o sigilo médico é absoluto ou relativo?

O parecer do CFM nº 5/2020 esclarece a questão, ao menos no que tange ao Conselho de Classe e às normas a ele aplicáveis, vejamos:

"Assim, o ordenamento jurídico vigente admite a possibilidade de os direitos fundamentais serem restringidos razoavelmente quando colidirem entre si. Essa colisão pode ocorrer de duas formas: (1) quando o exercício de um direito fundamental - por parte de seu titular - colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular (colisão autêntica ou em sentido estrito); (2) quando o exercício de um direito fundamental colide com princípios e valores que tenham por fim a proteção de interesses da comunidade (colisão sentido amplo)11." (...) Logo, não há dúvidas de que o direito ao sigilo médico ou à intimidade privada podem sofrer certa mitigação, pois em determinadas situações previstas em Lei (em sentido estrito) admite-se eventual restrição mínima desses direitos fundamentais. Entretanto, o que se sustenta é a impossibilidade da divulgação de resultados de exames, de forma a simplesmente garantir o direito à informação, se paciente (está ou não com a COVID19) sem motivo jurídico relevante, como uma investigação criminal, por exemplo".

Ou seja, via de regra, a quebra do sigilo médico ocorre apenas quando as informações dizem respeito ao interesse coletivo, situações que coloquem em risco terceiros ou a sociedade. A autodefesa do profissional, por sua vez, também justifica a quebra do sigilo. Por justa causa admite-se um interesse de ordem moral ou social que justifique o não cumprimento da norma. Em resumo, os motivos apresentados precisam ser capazes de legitimar a violação.

Partindo para o entendimento dos tribunais a posição da jurisprudência do STJ dispõe que: "o sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme depreende-se da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. A hipótese dos autos abrange as exceções, considerando que a requisição do prontuário médico foi feita pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida." (RMS nº 11.453/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, j. 17.jun.2003, g.n.).

Além das situações mais clássicas, como a informação de um crime ou a requisição judicial da informação, tem-se como exemplo de justa causa para revelação da informação médica, o caso de um candidato para o preenchimento de uma vaga para a função de motorista, portador de epilepsia. O médico do Trabalho deve comunicar ao gestor da área de Recursos Humanos para decidirem a respeito da não contratação do candidato para a vaga, já que a situação do candidato apresenta riscos para função que seria exercida.

Em resumo, são bastante específicas as situações que permitem que o sigilo seja quebrado, tais como: autorização expressa do paciente ou de seus responsáveis legais; notificação compulsória de determinada doenças transmissíveis; suspeita de abuso a idosos ou ao cônjuge; suspeita de abuso ou agressão infantil; suspeita de que o ferimento foi causado por ato criminoso; abortos criminosos; ocorrência de ferimentos por arma de fogo ou similares, suspeita de uso de entorpecentes.

Na dúvida, é importante que o profissional busque auxilio dos órgãos de classe para a definição da melhor conduta, haja vista o aparente conflito entre (i) os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada e, (ii) o dever de sigilo profissional, os princípios gerais de proteção à segurança pública e acesso à informação, solução que deverá ser analisada em cada caso concreto, observado os critérios de razoabilidade e probabilidade.

O sigilo também visa proteger que informações de pacientes cheguem ao conhecimento de pessoas que não tenham nenhuma relação com o caso, portanto, por mais que se trate de um paciente notório, popular, o médico não está autorizado a dar entrevista ou divulgar boletins sobre o seu estado de saúde sem o consentimento do paciente. De acordo com as normas e princípios que regem a categoria médica, é dever do médico se abster de fazer comentários, mesmo que os casos se tornem públicos.

Portanto, hospitais, clínicas, consultórios e até mesmo os médicos autônomos devem se cercar de todos os cuidados necessários, utilizando ferramentas seguras e soluções tecnológicas que não possibilitem o vazamento de dados de seus pacientes, principalmente na esfera virtual, o que tem sido mais comum atualmente. Os benefícios da tecnologia à saúde caminham juntos aos desafios. Além de sistemas eficientes quanto a segurança das informações de ordem médica a respeito do paciente, também é importante a postura do profissional. Discussão de casos via WhatsApp por juntas médicas, por exemplo, é importante que sejam anonimizados os dados do titular, preservando em sigilo a identidade do paciente, descrevendo apenas seu quadro clínico.

Como se pode concluir, o sigilo médico é extremamente relevante, já sendo um dos princípios basilares da relação médico-paciente, permitindo que este consiga expor seus problemas e confiar no tratamento indicado.

Deste modo, a quebra do sigilo médico deve ser avaliada de forma cautelosa, mediante uma justificativa plausível, sopesando os valores envolvidos e a real necessidade, mormente em razão da proteção legal das informações que possam ser compartilhadas, mitigando desta forma o risco jurídico e o exercício da medicina mitigando riscos nas esferas administrativas, cíveis e criminais.

Patrícia Aparecida de Souza Di Luca

Patrícia Aparecida de Souza Di Luca

Advogada sênior na UnitedHealth Group. Especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito.

Lucas Menicelli Lagonegro

Lucas Menicelli Lagonegro

Advogado no escritório ASBZ Advogados, Membro Efetivo da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo.

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